O cinema limítrofe de David Lynch segundo Rogério Ferraraz - PARTE 1 | |||||
Cesar Zamberlan - Quando você começou a estudar o cinema de David Lynch? Rogério Ferraraz - Essa história é antiga. Comecei a estudar David Lynch na minha graduação. Fiz jornalismo na Unesp, em Bauru, de 1992 a 1995, e comecei a trabalhar com Lynch no trabalho de conclusão de curso. No TCC, eu e um amigo escolhemos dois artistas plásticos e dois diretores de cinema: Dalí e Magritte, Buñuel e Lynch. A gente estava abordando os dois como cineastas surrealistas, apesar de o Lynch ser bem posterior ao movimento surrealista. Escolhemos como tema a questão do sujeito, como eles retratavam o sujeito. Nós trabalhamos bastante os elementos cênicos, como metáfora da condição humana, da constituição do que chamamos de Eu-surreal: palco, cortina, essas coisas que apareciam bastante na obra dos quatro artistas. Esse assunto não se esgotou no TCC. Fiz, então, mestrado na Unicamp, também tratando do Lynch, só que agora estudando a questão do surrealismo, como ele atualizava alguns conceitos do surrealismo na obra dele e se existia relação da obra dele com a vanguarda francesa, com Man Ray, com Duchamp. Descobri que o Lynch foi estudante de Belas Artes e que é pintor. Comecei então a pesquisar e defendi o mestrado só sobre essa questão do surrealismo. Só que aí ficou meio vazio, ficaram faltando coisas, porque o universo dele era rico demais e o surrealismo não dava conta de tudo. Depois do mestrado da Unicamp, eu vim para a PUC, trabalhar com a Lúcia Nagib, que tinha participado da minha banca na Unicamp. Nós conversamos e resolvemos continuar com o Lynch, mas abrangendo outras coisas, vendo quais eram as influências principais dele, não só o surrealismo, como que as artes plásticas influíam no universo dele, como que a música interferia no universo criativo dele etc. E discutindo e revendo os filmes dele, eu levantei uma hipótese, que é a do cinema limítrofe. CZ – Que hipótese é essa? RF – É a de um cinema que está entre fronteiras. Ao mesmo tempo em que ele faz um cinema experimental ele também faz um cinema ligado a certas narrativas convencionais clássicas. Ele consegue prender o espectador com certas artimanhas da narrativa clássica e, ao mesmo tempo, tem esse outro lado experimental, ligado às vanguardas. Essa é a peça chave da pesquisa do doutorado, mas é uma pesquisa que já vem lá de trás. Fiz a conclusão de curso de graduação em 1995, o mestrado em 1998 e o doutorado em 2003. CZ – “Cidade dos sonhos” é de quando? RF – 2001. CZ – Então você trabalhou com todos os filmes dele até hoje. RF – No doutorado, trabalhei com todos, inclusive os curtas. Érico Fuks – Inclusive o “Twin Peaks” feito para TV? RF - Também. Trabalhei até com uma série chamada “On the air”, que foi feita para a TV e que só teve alguns episódios. Lógico que não fiz uma análise muito detalhada dos curtas e das séries, uma análise “close reading”, não dissequei especificamente um filme inteiro, mas acabei analisando todos na parte que me interessava, selecionei alguns traços que se repetiam no cinema dele, parti daí. EF – Quando você fala de cineasta de limite, de fronteira, que tipo de fronteiras são essas. Fronteiras que o cinema clássico estabelece ou mais ligadas à compreensão do público? Porque o Lynch trabalha com outros tipos de fronteiras, psicológicas inclusive. RF – Sim. Trabalho com isso, principalmente quando analiso “Cidade dos sonhos” e “A estrada perdida”, mais esses dois filmes que os outros. E, quando falo fronteiras, é justamente isso. Esses filmes pegam o espectador, que tem uma idéia fixa do que é o cinema, do que é uma narrativa cinematográfica, do que é um pólo dramático, de como ele se estabelece, de como se estabelece o perfil de cada personagem, e o Lynch parece que leva esse espectador pela mão até um determinado momento, como se aquela fosse uma narrativa clássica e, de repente, ele solta o espectador. E o espectador fica perdido ali naquele meio. Só que não completamente perdido, porque ele viu todo aquele início, ele foi, digamos, carregado até ali. Isso que é interessante, porque o espectador tem certas ferramentas, tem um repertório que serve até um determinado momento e, a partir dali, ele se sente perdido. E o espectador tenta voltar, reconstruir o filme a partir do referencial que ele tinha, mas já não consegue mais. Então, o espectador tem que construir outro referencial na cabeça dele para entender aquele filme. Cid Nader – Esse aspecto psicológico vem de leituras que o Lynch faz, de um apreço dele pela psicanálise. RF – Ele adora ler textos psicanalíticos, não só textos teóricos, mas relatos de análises. Em “A estrada perdida”, ele parte de um termo psicanalítico, que é fuga psicogênica, que é o que o personagem do Bill Pullman tem. Isso vem da psicanálise, ele tirou isso de um estudo psicanalítico. Agora, se você conversa com ele e pede para ele fazer uma análise da obra dele, ele foge. Ele se recusa a entrar na análise psicanalítica da própria obra. Fora isso, ele gosta de brincar também. Ele coloca certos elementos que a crítica ou os teóricos tentam dar um sentido maior e, na verdade, é uma brincadeira dele. Ele faz muito isso. Todo mundo, por exemplo, quando sabe que eu estudo David Lynch vem perguntar, pra mim, o que significa aquela caixinha do “Cidade dos sonhos”. O que tem dentro daquela caixinha? Ora, cada um preenche aquela caixinha com o que quiser. A mesma coisa serve para a caixinha de “A bela da tarde”, do Buñuel, que o cara levava lá para o bordel. Você nunca vê o que tem dentro. Você a preenche com a sua imaginação, com a sua leitura, com o seu repertório, com o que você quiser. O Hitchcock tinha muito isso também e o Lynch é muito ligado a Hitchcock. CZ – Você citou o Hitchcock e o André Bazin tem uma definição do cinema dele que faz sentido aqui. Ele diz que o Hitchcook leva o espectador na corda bamba para segurá-lo no momento exato em que ele imaginava cair, trazendo-o de volta. Acho que isso também se aplica ao cinema do Lynch? RF – Tem uma diferença, o Lynch não traz de volta. Em “A estrada perdida” acontece isso, termina o filme você está completamente tonto, mas ele não te busca. O Hitchcock fechava tudo, o Lynch não fecha. Em alguns momentos, ele até fecha, mas pode ser um fechamento irônico. No “Veludo azul”, ele fecha de uma forma irônica, totalmente irônica. Você não sabe se aquilo está realmente acontecendo. Aparece um close de um passarinho comendo um besouro, mas o passarinho é um robozinho. Fecha, mas continua sendo irônico. A ironia também te deixa em suspensão. EF – Você considera “História real” como um filme à parte dentro dessa proposta estética? Todo mundo o exclui por ser um filme mais linear. RF – Ele é linear em termos da cronologia da história, mas tem elementos que retomam outras obras do Lynch. Em termos visuais, tem uma coisa, assim, de textura da pele. A própria história... ela é baseada em fatos reais, mas parece irreal. EF – Mas, nesse filme, fica claro do que trata a história, nos outros você não sabe exatamente do que o filme fala. RF – Você ficou curioso para saber o que aconteceu entre os dois irmãos? Qual foi o motivo da briga? Isso é contado no final? Não, eles ficam só olhando o céu. O filme inteiro é para aquele momento, mas, quando eles se reencontram, acaba o filme. Tem certos elementos que são típicos do cinema do Lynch. Aquela personagem, a filha do Alvin Straight, é uma coisa, ela não consegue pronunciar direito as palavras. Aquilo causa uma angústia. O início do filme, com aquele plano do gramado, a câmera vai subindo, passeando, aquilo lembra muito “Veludo azul”, tem algumas referências. Mas, a diferença básica entre esse filme e os outros, e isso eu escrevo na minha tese, é que, nesse, ele não escreveu o roteiro. Ele sempre escreve o roteiro de seus filmes, esse é o único que ele não escreveu, então isso marca uma diferença. Está certo que o roteiro é da esposa dele, que é também montadora dos filmes dele. Ou seja, marca uma diferença, mas, ainda assim, é uma pessoa muito próxima a ele e ao cinema dele. Mas, eu acho que o filme que se distingue mais não é o “História real”, é o “Duna”. É um universo que não tem muito a ver com o universo dele. Ele não teve domínio sobre o filme, o corte final do filme não foi dele e isso modifica o trabalho dele porque o trabalho dele é autoral. CZ - Na entrevista que você fez com ele, ele fala sobre isso? RF – Não. Na verdade, nem toquei nesse filme. Tive só uma hora com ele. Então tive que selecionar o que eu queria para a minha tese. Mas isso aparece em quase todos os livros sobre o cinema dele, inclusive no livro mais importante, que é um livro de entrevista chamado “Lynch on Lynch”, editado pelo Chris Rodley. Nesse livro, ele deixa claro que, a partir do “Duna”, ele só aceitou projetos nos quais tivesse a decisão sobre o corte final. CN – A gente até esquece que foi ele que dirigiu “Duna”. RF – É. E depois, ainda teve uma história curiosa: quando o “Duna” foi passar na TV, houve uma nova alteração em cima daquela que já havia sido feita pelo Dino de Laurentiis, o produtor. E aí, o Lynch se recusou até a colocar o nome dele no filme. Tanto que na TV o filme foi exibido sem o nome dele, não ia escrito David Lynch, aparecia como diretor Alan Smithee, que é aquele pseudônimo que os diretores norte-americanos colocam quando não querem se identificar. EF – Eu participei de um debate uma vez sobre David Lynch e foram trazidos alguns temas que eu não sei se você trabalhou . Não sei nem se concorda com eles, mas uma coisa que me chamou a atenção nesse debate é que foi dito que o Lynch procurava atores parecidos com ele para os papéis principais, atores fisicamente parecidos com ele naquela fase da vida dele, o Bill Pulman, Kyle Maclachlan. Isso procede, você já ouviu isso em algum lugar? RF – Eu acho que o Kyle até pode ser, mas o Bill Pulman não. Eu pensei nisso em relação ao Kyle por causa da personagem dele em “Twin Peaks”, como Dale Cooper, porque, ali, ele está de fato lembrando o Lynch, pela vestimenta, pelo cabelo, o topete que o Lynch usa. Mas, os outros? O Bill Pulman? Acho que não. Nem fisicamente, nem a caracterização deles é parecida com o Lynch. Eu discordo disso. CZ – É um cinema que possibilita tantas leituras, é tão aberto a múltiplas leituras que você deve ter se deparado com teses bem estranhas? RF – Sim, com certeza. Análises que iam pelo lado psicanalítico, mas falando mais sobre homossexualismo. Cada coisa! E pode até existir, mas você precisa mostrar, provar isso dentro do filme, não adianta você acreditar numa coisa e empurrar aquilo para o filme. Se o filme traz aquilo para você, e você consegue comprovar, ótimo. Há pouco tempo veio um filósofo esloveno para o Brasil, o Slavoj Zizek. Ele fez várias palestras, uma na Puc inclusive. Ele tem um livro sobre o “A estrada perdida”, chama-se “The Art of the Ridiculous Sublime”. Eu discordo em partes da leitura dele, mas o livro é lindo, maravilhoso. É a leitura dele, cabe no filme. Eu não sou muito fechado quanto a isso. Não acho que é a minha leitura que é a correta e se deve esquecer as outras. Cinema, ou o bom cinema, é o que a gente chama de obra aberta, proporciona ao espectador e ao crítico várias leituras. Para mim, o crítico é um espectador com mais informações, mais ferramentas. Porque, no fundo, todo mundo é espectador, todo mundo está ali para se envolver com aquela obra. Num primeiro momento, de forma mais emocional, e depois, mais racional. E o David Lynch trabalha muito com esse envolvimento do espectador em relação à obra dele. EF - Você não sai indiferente a uma obra dele? RF – Não. E um filme dele não é frio. Muitos comparam a obra dele à do Cronenberg, há uma leitura nesse sentido. Mas há uma diferença básica: o cinema do Cronenberg é frio, distante. EF - É orgânico? RF – Mas o do Lynch também é, mas o Cronenberg é frio. Tanto que na pintura, o Lynch coloca entranhas de animais. Mas eu acho que o Lynch trabalha mais com a emoção. Ele cria uma cena como a do Club Silencio, em “Cidade dos sonhos”, que faz você se emocionar e você nem sabe porquê. Não tem nada a ver aquilo, mas é emocionante. Isso também tem a ver com o limítrofe que eu delimito na minha tese. Porque, ao mesmo tempo em que é emocional, te faz pensar. Isso remonta também à questão do ilusionismo e do antiilusionismo. EF – Até que ponto dá para enxergar algo autobiográfico na obra do David Lynch? RF – Dá, existe isso em vários filmes nos quais ele faz referências a coisas da vida dele. Na série “Twin Peaks”, por exemplo, quando o Bob, que era o espírito que encarnava no Leland, que era o pai da Laura Palmer, bem, quando ele mata a prima da Laura Palmer, a Madeleine, ele pega a cabeça dela e a bate num quadro com moldura de vidro com motivos campestres. E quando ele está matando-a, ele grita, não vou lembrar a frase, mas é algo como: “Você vai voltar para Missoula, Montana”. Missoula é a cidade natal do David Lynch. O quadro tem motivo campestre e o David Lynch sempre acompanhava o pai, que era engenheiro florestal. EF - Isso é muito presente na obra dele, essa coisa de gramado, campo, verde... RF – ...madeira, caminhões com toras, isso tudo é da infância dele. Ele acompanhava o pai em expedições, em jornadas pela floresta. Outra coisa sobre a vida dela: em “A estrada perdida”, a casa do Bill Pulmann, do personagem, é a casa do próprio David Lynch. Aquela estrada onde ocorre o acidente em “Cidade dos sonhos” e o percurso que a morena faz quando está desmemoriada se dá justamente na região onde mora o Lynch. Se você começar a pinçar, você descobre bastante coisa. EF – Escuta, e aquela história envolvendo o ator de “A estrada perdida”, o mesmo que fez Baretta? RF – O Robert Blake? Ninguém sabe se ele matou a mulher, se ele mandou matar a mulher. Ainda está sendo investigado. (Ele acabou sendo inocentado das acusações.) EF – Dizem que ele teria sido influenciado pelo filme. RF – Não dá para saber. Acho isso muito exagerado, atribuir ao filme. Isso aconteceu quando eu estava morando lá e o que eu sei é que está sendo investigado. O Jack Nance, que fez o Henry em “Eraserhead”, também teve uma morte misteriosa. Ninguém sabe se ele se suicidou, se foi assassinado. Acharam o corpo dele, mas ninguém sabe o que aconteceu. CZ – Você morou lá para fazer o doutorado? RF – Eu era bolsista da Capes no doutorado e consegui uma bolsa que eles chamam de doutorado sanduíche. Graças a essa bolsa, passei seis meses lá, para terminar a minha pesquisa, não era para entrevistá-lo, mas como eu estava lá, quis entrevistá-lo de qualquer jeito. Tentei de tudo que era jeito. Falei com a Lúcia Nagib, ela me falou para entrar em contato com o Cakoff, que talvez tivesse um contato. Eles me retornaram, dizendo que era para falar com fulano de tal no endereço tal. Falei, mas não deu em nada. Fiquei sabendo que tal fulano era assessor dele, mandei uma carta e nada. Cheguei em Los Angeles em março e em julho, ainda não tinha resposta nenhuma. Já estava desistindo porque ia voltar no início de setembro. E aí pensei numa coisa óbvia, mas que não tinha me ocorrido antes. Eu sabia que ele tinha uma produtora e pensei: “vou procurar na lista, ver se tem essa produtora”. Básico, né. Dei uma olhada e tinha lá: telefone, endereço, tudo. Peguei, mandei uma carta para o endereço, e lá por agosto, 15 de agosto, o assistente dele me ligou. Ele se desculpou pela demora para entrar em contato, dizendo que o Lynch estava viajando, mas que ele tinha se interessado e que daria a entrevista para mim. Depois disso, ficamos 10 dias tentando acertar um horário que ele pudesse. Consegui entrevistá-lo no dia 5 de setembro, um dia antes de minha volta. No dia 6, peguei o avião e vim embora. CZ – Como é que foi a entrevista? RF – Foi muito legal. EF – Como ele é numa conversa? RF – Igual a esse papo que a gente está levando aqui, só que ele toma muito café, fuma muito. Ele, mais do que ninguém, parece um personagem do filme dele. Outra coisa da vida dele que ele coloca nos filmes é que em todo filme tem personagens fascinados por café e por cigarro. Sempre há fumaça. “Coração selvagem” começa assim, com muita fumaça. Ele fuma e bebe café o tempo inteiro. CZ – A entrevista foi onde? RF – Na casa dele. É assim, na mesma rua há três casas. A casa de cima é a casa de “A estrada perdida”, a do meio é a que ele fica mais, e a de baixo é o estúdio. Foi no ateliê dele, que fica na colina perto da casa de “A estrada perdida”. Foi legal porque deu para eu ver os quadros dele, os móveis que ele desenha. CZ – E os quadros dele, como é que são? RF – Os quadros dele têm mais a ver com expressionismo que com o surrealismo. São muito escuros, geralmente você identifica uma ou outra figura. Ele trabalha muito com coisas orgânicas, ele mistura abelha, formiga, restos de peixe, nas obras. Tem uma coisa de entranha. É bem interessante. Tem muito a ver com a obra dele no cinema também, dialogam bastante. CN – E a entrevista com ele, como é que foi? RF – Eu tinha uma hora para falar com ele, das 10h às 11h, e quando deu 11 horas, o assistente dele entrou dizendo que o tempo havia acabado, ele me deixou só fazer mais uma pergunta. E eu tinha preparado uma entrevista gigante, tinha tanta coisa para perguntar. A conversa acabou virando um bate papo tão gostoso que ele acabou respondendo várias perguntas, sem que eu tivesse que formulá-las. Mas, mesmo assim, muita coisa que eu queria perguntar ficou de fora, não tinha jeito. CZ – Qual era o tema principal da sua entrevista? RF – Comecei perguntando sobre o processo de criação: como surgem as idéias? Como as idéias viram roteiros? E como os roteiros viram filmes? Isso me fascina no processo dele, essa coisa de ilusão e realidade. Se ele via uma separação entre ilusionismo e realismo. O antiilusionismo, como ele enxergava essas coisas. Respondendo essas perguntas, ele falou sobre inspiração, influências, falou dos filmes que ele mais gostava e que tinham influenciado a obra dele. CZ – Quais são? RF – “Crepúsculo dos deuses”, do Billy Wilder, que, aliás, é bastante citado em “Cidade dos sonhos” e também em “Twin Peaks”. Tem um personagem no “Twin Peaks” cujo nome remete ao “Crepúsculo dos deuses”. Outro filme que ele mencionou foi o “Lolita”, do Kubrick. Ele também faz uma citação no “Twin Peaks” ao “Lolita”. Que mais? “Fellini 8 ½”, “Janela indiscreta”, do Hitchcook, “Mágico de Oz”, que é também super citado no “Coração selvagem”, em que aparece a Glinda, a bruxa boa, no final, e a mãe da Laura Dern é vista como a bruxa má, etc. EF – A gente sempre associa muito o cinema do Lynch às artes plásticas. Queria que você falasse da relação dele com o Angelo Badalamenti que faz as trilhas dos filmes dele? RF – Essa parceria se dá a partir do “Veludo azul”. Ele é o grande parceiro criador do Lynch, eles têm uma grande sintonia. Não dá para imaginar o filme do Lynch sem a trilha do Badalamenti. E sem os sons, que nesse caso, são criados pelo próprio Lynch. Isso é interessante, o Lynch é o “sound designer” dos filmes dele. Curioso que o Badalamenti é tão importante para o Lynch que acabou entrando no filme, aparecendo no “Cidade dos sonhos”. EF – É? Quem ele é? RF – Vocês se lembram da reunião do diretor com os produtores, com os mafiosos que iam bancar o filme? Ele é o cara que cospe o café. No “Veludo azul”, ele já aparecia. Ele tocava piano enquanto a Isabella Rosselini cantava. Isso acontece também com o Bob do “Twin Peaks”. É outro parceiro do Lynch que acabou aparecendo. O Frank Silva fazia parte da equipe do Lynch, era decorador de set, alguma coisa assim. Lembra de uma cena que a mãe da Laura Palmer está no sofá, começa a lembrar coisas, daí, de repente, ela se levanta e lembra ter visto o Bob no quarto da filha? Nesse momento que ela se levanta, tem um espelho atrás dela. Por acaso, apareceu refletida no espelho a imagem do Frank Silva. O Frank era apenas um cara da equipe que estava acompanhando a filmagem. Quando eles foram assistir a essa cena, o Lynch percebeu o reflexo e colocou então o Frank Silva como o Bob. No cinema do Lynch tem muito essas coisas, ele deixa o acaso interferir ali nas filmagens. Fora isso, ele é muito racional, planeja muito o filme. CZ – Ele parece ser bem metódico? RF – Ele é tão metódico, tem tudo tão planejado, que tem essa liberdade. Buñuel também era assim. Extremamente organizado na hora de filmar, só que várias coisas que aparecem nos filmes dele, apareceram por obra do acaso e entraram na montagem final. Tem mais essa relação entre os dois. CZ – Todos os roteiros que ele filmou são originais? RF - Fora “História real”, ele participou de todos os roteiros. Só que nem todos são originais, alguns são adaptações. “Coração selvagem” é adaptado do livro “Wild at Heart”, do Barry Gifford, que depois foi escrever com ele “A estrada perdida”. O “Duna” é adaptado, “História real” e “O homem elefante” também são adaptados. Os outros são histórias originais. CZ – Queria que você falasse um pouco sobre o “Cidade dos sonhos” e sobre a polêmica em torno do filme. Muitos saíam do cinema e corriam para o mural com as críticas tentando entender o filme. Fora isso, saiu também aquele folheto com dicas para entender o filme. Fale um pouco sobre isso. RF – Não lembro se foi um site ou uma revista que perguntou isso para ele: da dificuldade de entender o filme. Ele, então, formulou 12 pistas para entender o mistério de “Cidade dos sonhos”. Mas era apenas mais uma brincadeira dele. CD – Curioso que as pessoas falam que esse é o filme mais difícil dele e eu não acho. Lógico que não saquei da primeira vez, vi mais de uma, mas acho que não é o mais complicado em termos de narrativa. RF - Muita gente escreveu e entendeu o filme como se a primeira parte fosse o sonho da personagem e, a outra, a realidade; e teve gente que disse que essa divisão empobrecia a obra dele. Não é empobrecer, ele dá todos os elementos para você fazer essa leitura. Não há problema nenhum em fazer essa leitura, os elementos estão lá. Criou-se também um mito em cima da obra do Lynch de que ela exige uma compreensão maior e não é isso. CZ – Vi muita gente criticando “Cidade dos sonhos” porque foram incapazes de assistir ao filme sem se dar conta que muitas coisas que o filme trazia não precisavam ser necessariamente entendidas, do ponto de vista racional, você tem que sentir, a compreensão passa pela percepção. Rogério Ferraraz – Sim, sem dúvida! E, no caso do “Cidades dos sonhos”, tem um dado interessante porque ele filmou para ser uma série de TV. Ele filmou o piloto dessa série, filmou uma hora e pouco. Quando ele mostrou o piloto para a rede de TV, os caras se assustaram e não aprovaram o projeto. Ele brigou dois anos na Justiça para ter o direito sobre a própria obra. Quando conseguiu, ele filmou mais um tanto, passou para película e remontou. Então, o que aconteceu: tem personagem que aparece no filme e que some de repente. Lógico que, sendo uma série, esse personagem iria voltar e seria mais bem trabalhado. Mas, quando aquilo se transformou em filme, certos personagens ficaram enigmáticos e ele deixou aquilo. O investigador, que aparece no começo do filme, só aparece ali. E ele tem toda aquela caracterização de investigador do cinema americano, o ar sombrio, o sobretudo, etc. Com certeza, ele voltaria na série, mas no filme não, acaba ali. Eu acho essa atitude muito bacana. O Lynch tem um domínio tão grande sobre o trabalho dele que existe essa margem para o acaso, para o inexplicável. Essa liberdade que poucos têm lá nos Estados Unidos. EF – Na mostra do ano passado, foi exibida uma retrospectiva parcial de um cineasta muito interessante, o Guy Maddin. Na falta de maiores referências à obra dele, alguns disseram que o cinema dele lembrava o Lynch e o Murnau. E isso muito provavelmente porque se apegaram a algumas características do Lynch, a estranheza, a crise de identidade, elementos visuais que não estabelecem uma ligação com a narrativa etc. Enfim, as pessoas acabam simplificando a compreensão. Qualquer coisa estranha é David Lynch. Você não vê isso como um problema. RF – Claro, problema porque simplifica e empobrece a compreensão do que seja o cinema do David Lynch. O que significa você colocar o rótulo David Lynch na obra de alguém? Significa você colocar essa pessoa no universo do enigmático, misterioso, estranho. Ou seja, lynchiano vira um adjetivo. Isso só ocorre com diretores que constroem uma obra, um universo e aí não tem jeito, vira adjetivo mesmo. Quando você aplica esse adjetivo a ele tudo bem, se justifica, mas quando você aplica esse adjetivo a outro, não tem cabimento. O Lynch fala sobre isso na entrevista. Quando perguntei de influências, ele disse: “Influências não. Inspiração. Porque Hitchcock faz Hitchcock, Buñuel faz Buñuel, Fellini faz Fellini”. Daí, eu perguntei: “Lynch faz Lynch?”. Ele disse: “Sim, claro. Porque, por mais que você tenha a inspiração, o cineasta tem o que eu chamo de voz própria”. Ou seja, não adianta você pegar, por exemplo, um curta-metragista que está começando e falar que o cara é lynchiano. O cara pode ter alguns elementos que lembrem, apenas isso. Essa coisa de adjetivação é complicada, acaba virando mais uma coisa mercadológica que outra coisa. Uma forma de colocar um carimbão e vender um filme. CZ – O Lynch fez algum comentário durante a entrevista sobre o Brasil? Sobre o fato de você ser brasileiro? RF – Antes de começar a entrevista, ele queria saber o que levava alguém a sair lá do Brasil para fazer uma tese sobre o cinema dele. Ele ficou contente com o fato de um brasileiro se interessar por ele e me fez uma série de perguntas sobre o Brasil, nossa situação econômica, cultural, se estava igual à da Argentina, porque a Argentina passava por uma crise feia naquela época e ele estava a par. Fiz a entrevista logo depois do Festival de Cannes. Ele foi o presidente do júri e o Walter Salles fazia parte. Ele, aliás, teceu vários elogios ao Walter Salles. Ele adorou o Walter Salles. A entrevista, aliás, começou com essa questão de Cannes, com a experiência dele como presidente do júri. CZ – Quem ganhou aquele festival? RF – Polanski, com “O pianista”. Eu perguntei o porquê da premiação. Ele me falou que premiaram um dos maiores cineastas da atualidade e um filme de extrema importância. Não disse um filme genial, mas um filme importante. Eu até perguntei do filme do Cronenberg, o “Spider”, o que ele achava, e ele disse: “prefiro não comentar sobre isso”. Não sei se é verdade, mas dizem que há uma rivalidade grande entre os dois. Sei que ele não quis responder e aí eu fui direto para aquilo que precisava saber para a tese. CZ – É lógico que não dá para esgotar neste espaço - e nem é a nossa intenção - tudo que você escreveu na tese, mas quando que ela vai ser publicada, quando o público poderá ler esse trabalho? Você já tem algo fechado com alguma editora? RF – Eu mandei para duas editoras, estou esperando uma resposta, mas não tenho nada fechado ainda, estou aguardando. |
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