Haevnen – In a Better World
Em Um Mundo Melhor
maio 16, 2011 2 comentários
Realidades cheias de conflitos. A definição da coragem e da covardia. Mesmo tratando deste temas em cenários muito distantes e distintos e buscando um olhar crítico sobre eles, Haevnen, produção vencedora na categoria de Melhor Filme Estrangeiro no último Oscar, revela-se também um bocado simplista e simplória. Este não é o melhor filme da ótima diretora Susanne Bier, sem dúvida. Falta-lhe um pouco de coragem e sobra um bocado de discurso pronto e fácil. Ainda assim, não foi totalmente injusta a sua premiação no Oscar porque, afinal, Haevnen é um filme muito bem acabado e visualmente interessante.
A HISTÓRIA: Nuvens pesadas deslizam pelo céu. Um vento constante sacode as vestes e as barracas de mulheres, homens e crianças. Meninos e meninas brincam em meio à poeira e à falta de quase tudo. Um grupo corre atrás de um carro aberto que leva um grupo de médicos e enfermeiros. Um destes médicos é Anton (Mikael Persbrandt), que passa parte da vida tentando salvar pessoas naquele cenário de privações e ameaças, e outra parte lidando com o divórcio da mulher Marianne (Trine Dyrholm) e com as dúvidas e problemas do filho Elias (Markus Rygaard). Anton joga uma bola para as crianças, e isso é tudo o que elas parecem precisar para serem felizes – pelo menos naquele momento. Algo aparentemente impossível para o revoltado Christian (William Johnk Nielsen), que perdeu a mãe e não consegue lidar com esta ausência. Rejeitando o pai, Claus (Ulrich Thomsen), e qualquer sinal aparente de fraqueza, Christian se aproximará de Elias e mostrará como escolhas equivocadas podem disseminar a violência.
VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso só recomendo que continue a ler quem já assistiu a Haevnen): Existem, no mundo, múltiplas realidades. Há cenários de privação e outros de fartura. Verdade. Mas será que para falar sobre a origem da violência, a convicção da busca da paz pela falta de represálias, a importância da família, da vida e da morte, se faz realmente necessário confrontar um ambiente de refugiados na África com a de uma cidade típica da rica Dinamarca? Haevnen tem boas intenções, mas o filme peca por simplificações que tornam questões importantes da vida como quase exceções.
Vejamos: diariamente, nos centros urbanos ou rurais da parte que for do planeta, as pessoas não fazem escolhas? Elas decidem, por exemplo, se respeitam ou não os seus semelhantes. Independente da religião ou da crença que podem seguir. Decidem se tratam os demais como devem ser tratados, ou se não fazem isso. Frente à violência, escolhem o caminho da represália ou do perdão. Alimentam o ódio ou o amor. Sei que estas linhas, para alguns, pode parecer discurso “babaca” ou inocente, mas a verdade – e que muitos tem dificuldade de admitir – é que escolhemos o estilo de vida que temos a cada passo, a cada escolha.
Em Haevnen, o roteirista Anders Thomas Jensen nos apresenta, sempre, uma oposição de realidades. Há dois núcleos familiares muito distintos em cena. Dois países com realidades opostas – um com fartura e vida social muito bem organizada, outro com escassez de quase tudo e cotidiano imprevisível e um bocado caótico. Mas existem também providenciais similaridades. Mesmo muito diferentes, os dois núcleos familiares que acompanhamos foram desfeitos. A história também fica centrada, a maior parte do tempo – exceto quando as atenções estão para a África sob a ótica de Anton -, nas posturas de dois adolescentes.
A primeira questão importante de Haevnen é a ideia do perigo do núcleo familiar desfeito. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Tanto a casa de Christian quanto a de Elias nunca está completa. No caso de Christian, a figura materna desapareceu. Não chegamos nem a conhecê-la. Com a morte da mãe, o garoto perde, aparentemente, o seu referencial mais amoroso. Ele parece não ter muita intimidade com o pai e se sente, assim, “sozinho no mundo”. O caminho que ele escolhe, para lidar com a dor, é a represália a todo mal que encontra à sua volta. Na leitura de alguns, ele se torna um garoto revoltado e amargurado.
No caso de Elias, a figura paterna está, quase sempre, ausente. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Mas não pela perda maior e irreversível da morte, mas porque o pai dele é um médico dedicado a causas humanitárias. Essa ausência constante termina com o casamento de Anton e Marianne, e Elias deve enfrentar esta situação de “agravamento” da perda da figura paterna. Como ele resolve a questão? De forma pacífica, tentando entender o que está acontecendo, até que é contaminado pela revolta de Elias – que não faz o garoto mudar de atitude, mas que lhe absorve, mesmo assim, em seu redemoinho de sentimentos raivosos e vingativos.
Apenas pelas atitudes dos garotos, temos oposições de “visões de mundo”. E o mais interessante, neste aspecto – e alguns psicólogos podem falar melhor a respeito – é que eles reproduzem ou são “produtos” do ambiente familiar. Mas não apenas dele, é claro. Christian parece seguir um comportamento mais “frio”, distanciado, a síntese da forma com que o pai dele aparece na trama. Mas há poucos elementos para analisar a formação do garoto. Primeiro porque o ótimo ator Ulrich Thomsen, que interpreta a Claus, aparece pouquíssimo na história – e ele nem pode ser taxada muito como “omisso”. Depois, porque não sabemos nada sobre a mãe de Christian.
Mas algo muito diferente acontece com Elias. Sabemos mais da mãe dele do que do pai de Christian. E, como um dos grandes nomes da produção, sabemos muito mais sobre o pai do garoto. Se por um lado, aparentemente, temos a uma família de bons recursos e um tanto “sem diálogo” e com pouco afeto, como parece ser o caso de Christian, por outro temos a uma família preocupada com o caráter humano, com a preservação da vida e com o diálogo, no caso de Elias.
E daí talvez surja um dos poucos elementos realmente interessantes deste filme: por mais óbvia e esquemática que seja uma realidade apresentada, o roteirista Jensen e a diretora Susanne Bier nos mostram, de forma menos escancarada, como nenhuma realidade “perfeita” ou “corrompida” é composta por apenas um destes elementos. A filosofia e convicção pacifista e humanitária de Anton e da mulher tem limites, como comprova a atitude dele com um dos vilões do Quênia. E a indiferença e o pragmatismo do pai de Christian se mostram um argumento fácil de ser comprovado cada vez que ele se aproxima do filho e não consegue romper a armadura que o garoto vestiu desde que perdeu a mãe. (SPOILER – não leia… bem, você já sabe). Finalmente, o próprio Christian, tão cheio de razão, percebe que não importa toda a lógica ou senso de “justiça” torto do mundo: a violência nunca dará bons frutos. Quando ele percebe o peso de seus atos, apenas um gesto de perdão pode redimir a todos.
Agora, voltando a um lugar-comum que me irritou um pouco: fica evidente, logo pelas primeiras cenas do filme, a preocupação dos realizadores em contrastar a realidade de miséria pura de um país africano com a da fartura de um país desenvolvido. Fazia falta esta simplificação de propósito? Será que em uma África carente não convivem também pessoas que lutam pela paz com aquelas que buscam semear a violência? E o mesmo não pode ser encontrado na Dinamarca? Por que contrastar crianças de extrema carência com aquelas que parecem “ter tudo”. Talvez foi a forma da diretora e do roteirista fazer o espectador refletir que nem tudo é o que parece. Ou que nem tudo é tão óbvio quanto costumamos pensar. Na miséria da África pode existir mais alegria em coisas simples do que na “fácil” Dinamarca para onde Anton volta sempre. Mas há perigo e pessoas dispostas a semear a violência em todas as partes. Parece que a minoria tenta preservar o direito de não reagir a uma agressão na mesma moeda. Mas mesmos estes tem seus momentos de fraqueza.
Sim, Haevnen é um filme sobre realidades conflitantes e que nunca estão alheias a contaminação de princípios. O que torna o filme, até certo ponto, uma produção sem muita esperança, diferente do que o título possa sugerir. O paraíso não está na “miséria e simplicidade” da África. Nem nas ruas bem organizadas da Dinamarca. Talvez a única chance de termos algo parecido com o paraíso esteja nos gestos finais de Anton e Elias, que representam o amor através do perdão. Defender isto é sempre difícil e exige sacrifícios. Mas é possível. Por estas ideias e pela beleza da direção de Susanne Bier, pelas interpretações dos atores principais e pela direção de fotografia de Morten Soborg o filme, no fim das contas, possa merecer a nossa atenção. Apesar da preguiça que ele desperta, muitas vezes, das simplificações, estigmas e lugares-comum da história.
NOTA: 8.
OBS DE PÉ DE PÁGINA: Haevnen não é um grande papa-prêmios. Pelo contrário. Ele ganhou apenas as duas premiações mais badaladas de Hollywood: o Globo de Ouro e o Oscar deste ano como Melhor Filme Estrangeiro. E só. Pouco para um filme ser consagrado. E cá entre nós, acho que foi bastante, para a qualidade da produção. Gosto da diretora Susanne Bier, mas acho que precisamos ter um ano muito fraco de candidatos para Haevnen ser considerada a melhor produção do ano. Dos outros concorrentes do Oscar deste ano, assisti apenas ao grego Kynodontas e, francamente, achei este último, pelo menos, mais original. E impactante. Se boas intenções ganhassem o Oscar, certamente Haevnen foi o merecedor. Mas se for avaliada a originalidade, Kynodontas merecia mais. Só depois de assistir aos outros três é que poderei dizer, com todas as letras, se houve alguma injustiça este ano.
O elenco de Haevnen faz um belo trabalho. Merece uma menção especial os atores Mikael Persbrandt, Markus Rygaard e William Johnk Nielsen – ainda que este último, algumas vezes, cai tanto no estereótipo que chega a cansar. Além dos outros atores citados, vale a pena citar os coadjuvantes Wil Johnson, como o médico Najeeb; e Odiege Matthew como o asqueroso Big Man. Da equipe técnica, além da excelente direção de fotografia de Morten Soborg, merece menção a trilha sonora de Johan Söderqvist e a edição da dupla Pernille Bech Christensen e Morten Egholm. Pena que o ótimo ator Ulrich Thomsen seja disperdiçado na história, aparecendo pouco no filme.
Esta produção foi filmada no Quênia e em quatro cidades dinamarquesas: Faborg, Rudkobing, Svendborg e Tasinge.
Mesmo ganhando o Oscar e o Globo de Ouro, Haevnen teve um desempenho irrisório nas bilheterias dos Estados Unidos. A produção, que estreou no dia 3 de abril, arrecadou pouco mais de US$ 512,4 mil dólares até o dia 8 de maio.
Haevnen ganhou poucos prêmios, mas não foi por falta de participação em festivais. Após estrear na Dinamarca em agosto de 2010, o filme passou por 12 festivais mundo afora, incluindo os do Rio, de São Paulo, o de Sundance e o de Toronto.
Os usuários do site IMDb deram a nota 7,7 para o filme. Os críticos que tem os seus textos linkados no Rotten Tomatoes ficaram muito perto deste número, dedicando 64 críticas positivas e 22 negativas para a produção, o que lhe garante uma aprovação de 74%.
Agora, um momento de confissão: fiquei muito, mas muito tempo mesmo sem publicar um texto novo aqui no blog. Certo que uma parte da justificativa para isso foi o excesso de trabalho no jornal em que atuo como repórter. Mas outro motivo foi também uma certa “decepção” que tive com este filme. Por gostar da diretora, do roteirista e de alguns dos atores da produção, sou franca em dizer que eu esperava mais. E também por ele ter ganho o Oscar. Achei o resultado final muito fraco perto do potencial dos realizadores. E daí me deu um certo “desânimo” em escrever a respeito, nas poucas vezes que tive oportunidade desde o Oscar. Fui adiando, adiando, até que resolvi me “livrar” logo do texto para, finalmente, me lançar em outros filmes. Melhores, piores, só o tempo dirá. Obrigada aos que tiveram paciência de esperar e espero, sinceramente, que textos melhores venham por aí.
Uma curiosidade sobre o filme: o texto que Christian lê no funeral da mãe é de Hans Christian Andersen, The Nightingale.
CONCLUSÃO: A embalagem é bonita, mas o conteúdo, muito manjado. Haevnen tem um ótima direção de fotografia e boas intenções, mas patina em lugares-comum e na simplificação da dualidade. É realmente necessário comparar um acampamento de refugiados em permanente tensão na África com o ambiente escolar conflituoso de uma cidade na Dinamarca? O único ponto interessante na aproximação destes extremos, para mim, foi a reflexão “ligeira” sobre os contrastes do mundo que podem ser vivenciados por um mesmo indivíduo, personificado pelo médico Anton (Mikael Persbrandt). Através dele, percebemos como a globalização pode aproximar mundos tão díspares e, sem planejar muito, ensinar princípios de humildade, igualdade e de combate à violência para jovens de partes muito diferentes do globo. Esta é a mensagem bacana e necessária do filme. Mas a forma com que estes conceitos são apresentados chegam a cansar, pela previsibilidade do roteiro e a sua simplificação extrema. Nem todos são vítimas na África e nem todos os órfãos de mãe revoltados podem assumir toda a culpa de uma lógica violenta em uma sociedade em que existe fartura. O mundo e as pessoas são mais complexos do que isto. Mas nada, em parte alguma, pode ser tão complicado que não haja solução. E ela reside, sempre, no olhar atento e afetuoso para o outro, na decisão pela não-violência, no amor e no perdão. Talvez por esta mensagem de um paraíso possível, ainda que difícil de alcançar, o filme valha.
FONTE:
http://moviesense.wordpress.com/
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