Lincoln (2012): um dialógico e político Steven Spielberg
Filme com mais indicações aos Oscar 2013 traz o
cineasta mais contido diante de um roteiro meticuloso e eloquente sobre
um dos episódios mais importantes da história dos EUA.
Avaliação: NOTA
8
Steven
Spielberg é o maior dos cineastas quando o assunto é aventura. Porém,
ele exibe fragilidades ao filmar dramas históricos, como vem se
especializando. Seus dois últimos longas são expoentes da qualidade
distinta de seu trabalho como diretor. Se em “As Aventuras de Tintim: O Segredo do Licorne” a intensidade e a diversão são evidentes, em “Cavalo de Guerra” Spielberg perde a mão ao introduzir o drama, como acontece em outros projetos do gênero.
É, por vezes, sentimentalista, piegas com seus diálogos inverossímeis
e trilha sonora demasiadamente emotiva. A temáticas importantes que
trata juntamente com a destreza técnica de suas obras, porém, fazem seus
trabalhos se destacarem, tornarem-se referência. Em “Lincoln”, no
entanto, ele está mais contido. Em seu primeiro longa verdadeiramente
político, ele concede a Tony Kushner, o roteirista, a função principal
de contar uma trama detalhista e, até certo ponto surpreendente, sobre
um dos fatos mais importantes da história dos EUA: a abolição da
escravatura no país.
O desejo de libertar os negros advém do próprio presidente
norte-americano, Abraham Lincoln (Daniel Day-Lewis), que, depois de ter
sua proposta derrotada, insiste em aprová-la em pleno período de guerra.
Estamos em 1865. A Guerra de Secessão já não está mais em seu auge, mas
as batalhas entre o Norte libertário e os Estados do Sul escravocratas
da nação americana persistem. A oposição democrata na Câmara dos
Representantes (equivalente a dos Deputados), porém, é ferrenha. Os mais
radicais não aceitam qualquer possibilidade de igualdade entre brancos e
negros. Por isso, algumas manobras políticas são realizadas para os
congressistas mais maleáveis votarem a favor da 13ª Emenda,
possibilitando o fim, pelo menos constitucional, da submissão racial.
Não se engane. “Lincoln” não é um filme biográfico sobre a história
de vida do 16º presidente americano. O objeto é a 13ª emenda à
Constituição e o consequente fim da escravidão. A Guerra Civil serve
apenas para contextualizar o período tenebroso que o país vive e
influenciar as escolhas dos deputados acerca do assunto. São poucas as
cenas de batalhas e mortes, das quase 1 milhão que ocorreram entre 1861 e
1865. Estamos diante de um longa eminemente político, em que as ideias
se sobrepõem aos fatos, em que a emoção perde certo espaço para a razão,
para as crenças e para as “picuinhas” políticas.
O maior acerto do roteiro de Kushner, adaptado do livro “Team of Rivals: The Genius of Abraham Lincoln”,
de Doris Kearns Goodwin, é mostrar com riqueza de detalhes como um
polêmico projeto alcança aceitação de diversos parlamentares
oposicionistas em questão de dias. Apesar de ainda ser acometido por uma
inocência em que interesses particulares estão pouco envolvidos, a
trama exibe com louvor as manobras do presidente e toda a sua equipe
para o convencimento dos não-aliados, seja por meio de promessas de
cargos no Governo e simples argumentos ideológicos, seja,
principalmente, por omissão de informações essenciais sobre o
transcorrer da guerra.
Não há nada de romântico nesse processo. Tratam-se, sobretudo, de
negócios em que todos buscam ganhar ou defender o posicionamento e a
autoridade de seu respectivo partido. E Kushner exibe tudo isso por meio
de diálogos e mais diálogos. Em certos momentos, a impressão é de que
nem estamos assistindo a um filme de Spielberg vide o falatório
incansável da maioria das cenas. O cineasta, porém, se aproveita dos
diversos momentos de eloquência do texto do roteirista para botar em
prática suas exaltações e emoções, dando um pequeno e bem administrado
coração ao filme, por mais que a trilha exagerada de John Williams
trabalhe contra isso. E esses momentos acontecem, principalmente, quando
temos o protagonista em cena.
Abrindo espaço para o Lincoln pai de família, que é mais carinhoso
com o filho mais novo do que com o mais velho e mantém uma relação
turbulenta com a esposa, Kushner, porém, dá ao Lincoln presidente e
líder dos republicanos uma atenção maior acertadamente. Trata-se de um
homem que tem na dignidade e na oratória suas grandes qualidades. No
entanto, por vezes, o texto esbarra no mito que circunda Lincoln, que a
bonita fotografia de Janusz Kaminski faz questão de ressaltar. Parece
com medo de exibir alguma falha de caráter no presidente recentemente
reeleito. Até mesmo suas estratégias políticas duvidosas são inocentadas
com lições de moral, muitas delas advindas de causos muito bem
contados.
Mas se o texto parece contraditório ao mostrar a desejada pureza do
personagem, Daniel Day-Lewis faz dele um homem extremamente verossímil e
carismático. Em mais uma performance impressionante, o ator inglês
surge com uma voz arrastada, que jamais se exalta, o corpo curvado e um
gestual incisivo. Se apreciamos sua técnica em suas primeiras cenas,
Day-Lewis “desaperece” pouco depois para dar lugar a Lincoln, por
inteiro. Outro destaque entre os atores é Tommy Lee Jones. Como o
radical republicano Thaddeus Stevens, um dos principais apoiadores da
abolição, Jones acerta o tom (ora cômico, ora dramático) e ajuda a
história a sair das redondezas do protagonista e mergulhar na Câmara. O
desfecho de sua trama é particularmente comovente.
Vale elogiar também os desempenhos de David Strathairn, como o
secretário de Estado William Seward, e de James Spader, como W. N.
Bilbo, homem contratado para convencer secretamente alguns democratas
contrários à Emenda, servindo como um ótimo alívio cômico. O elenco traz
ainda nomes reconhecidos da dramaturgia americana, como John Hawkes,
Hal Holbrook, Jack Earle Haley e Michael Stuhlbarg, todos em ótimos
trabalhos. A única que destoa do desempenho dos colegas é Sally Field,
extremamente estridente como a primeira dama dos EUA e uma das poucas
mulheres da trama.
Se às mulheres sobram poucos espaços, o mesmo pode-se dizer dos
negros. Permancendo na esfera política, o filme pouco se preocupa com o
público alvo da 13ª Emenda. “Lincoln” não é um filme social. Trata-se de
um projeto atípico de Spielberg, de poucas cenas externas, maniqueísmo
quase controlado, diálogos abundantes e de difícil compreensão para os
menos atentos. Dono de qualidades evidentes, mas de erros perceptíveis, o
longa é muito mais um trabalho de roteirista do que de diretor, o que
não o faz menos importante para a sociedade americana. As 12 indicações
ao Oscar são justas, mas não merece ir muito além, apesar do
favoritismo.
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Darlano Dídimo é crítico do CCR desde
2009. Graduado em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela
Universidade Federal do Ceará (UFC), é adorador da arte cinematográfica
desde a infância, mas só mais tarde veio a entender a grandiosidade que é
o cinema.
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