Beleza Adormecida: Julia Leigh elabora um thriller erótico angustiante
Longa australiano bebe da fonte de conto de fadas infantil em resultado curioso e ousado, porém incompleto.
Avaliação:
7
Enquanto Hollywood repagina os clássicos dos contos de fadas com filmes direcionados ao público adolescente como “A Fera” (baseado em “A Bela e a Fera”) e “A Garota da Capa Vermelha” (inspirado em Chapeuzinho Vermelho) e revisita Branca de Neve em dois longas que estreiam este ano (“Espelho, Espelho Meu” e “Branca de Neve e o Caçador”), a cineasta australiana Julia Leigh tomou outro rumo e entrega uma história ousada em “Beleza Adormecida”.
Com roteiro de sua autoria, Leigh se inspira em “A Bela Adormecida”
para contar a trama de Lucy (Emily Browning), uma jovem solitária e
que, sofrendo de perrengues financeiros, se embrenha em diversos
projetos e empregos para conseguir sobreviver. De experiências médicas a
um bico como garçonete, a moça trabalha em uma grande empresa, onde é
vista sempre com ar de inferioridade pela chefe.
“Escravizada” até mesmo pelas duas pessoas com as quais divide o
mesmo teto, Lucy divide-se entre a rotina de solidão, trabalho e visitas
à casa de Birdmann (Ewen Leslie), um amigo de longa data que passa por
um período de pós-reabilitação. Entre idas a bares com drogas, bebidas e
sexo casual, a moça chega até Clara (Rachael Blake), uma espécie de
organizadora de eventos. Encantada pela beleza de Lucy, Clara a contrata
para o trabalho de servir, seminua, os convidados.
O emprego serve de fachada para uma rede de prostituição de luxo,
onde endinheirados da terceira-idade estão dispostos a pagar uma pequena
fortuna por uma noite com as garotas. Lucy, porém, acaba por deitar-se
com os clientes completamente sedada, vindo daí o estigma de Bela
Adormecida moderna. Da frieza de seu olhar e atitudes, não sabemos se
trata-se de uma característica da personagem ou da própria atriz.
Nesta metalinguagem, diversos elementos dos contos de fadas foram
atualizados em uma trama de constante tensão e sutilezas, em um erotismo
que invade a tela. Ao invés de um belo castelo, temos arranha-céus
empresariais; no lugar do príncipe encantado, temos Birdmann que, embora
perdido dentro de seus vícios, é o único porto seguro de Lucy, capaz de
lhe dar conforto e carinho. O “felizes para sempre” perdeu-se do “era
uma vez”, diante de uma mulher tratada como mercadoria, analisada dos
pés à cabeça para ser vendida em um jogo de poder e luxúria.
Esse certo distanciamento de “Beleza Adormecida” e a frieza intocável
em seus personagens oferecem uma indiferente finesse permeada por um
ritmo lento, cadente, que instiga e se força a não se perder. Embora
deixe muitas perguntas sem respostas, é nos silêncios e sutilezas que o
filme pode (ou não) ganhar o público. Na pele da bela Lucy, Emily
Browning (sim, a garota que enfrenta Jim Carrey em “Desventuras em Série”
cresceu) vive uma espécie de Lolita de pele alva, que mistura
sensualidade e atitude, camuflando uma personalidade que só é capaz de
se mostrar diante do amigo Birdmann. Seus clientes possuem seu corpo,
porém não têm acesso à sua jovem personalidade.
Leigh, que concorreu à Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2011 apadrinhada por Jane Campion (diretora do premiado “O Piano”),
não mostra pressa em seu longa. A cineasta, assim, nos oferece uma
trama de planos longos e diálogos de frases pontuais, que se apoiam na
direção de arte e fotografia bem cuidadas. Da câmera teatral (em que,
parada, observa imparcial a ação acontecendo dentro de seu plano de
visão), temos imagens que nos remetem a quadros e/ou fotografias, nas
quais fade in e fade out dão início e fim às cenas,
como se estivéssemos diante de capítulos de um livro. O distanciamento
de Lucy com o público, porém, pode decepcionar os espectadores em busca
de maiores esclarecimentos e menos preocupações minimalistamente
estéticas.
Superficial na questão analítica de sua personagem, “Beleza
Adormecida” traz Lucy diante de uma misoginia quase generalizada, onde
sua beleza e sensualidade estão expostas na vitrine de homens poderosos,
que enfrentam uma velhice assustadora e revolta, encarando a solidão e
desembocando em um thriller erótico por ora angustiante.
Com um prólogo bem conduzido que nos apresenta rapidamente um dia na
vida de Lucy antes de sua noite de sono à asquerosa cena de sexo com seu
segundo cliente, o filme reciclou, às avessas, um conto de fadas
conhecido do grande público. Assim, submissão e sexo se encontram em uma
história densa e que, apesar das pretensões, pode agradar aos
interessados em uma experiência incômoda mas, infelizmente, incompleta.
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Léo Freitas formou-se em Jornalismo em 2008 pela
Universidade Anhembi Morumbi. Cinéfilo desde a adolescência e apaixonado
por cinema europeu, escreve sobre cinema desde 2009. Atualmente é
correspondente do CCR em São Paulo e desejaria que o dia tivesse 72
horas para consumir tudo que a capital paulista oferece culturalmente.
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