Avaliação: 8
 


Casa mal assombrada é um tema antológico do terror. Trabalhado exaustivamente em inúmeras obras do gênero, é sempre atual porque desestabiliza justamente o ponto de mais segurança ao qual nos remetemos quando adentramos o desconhecido: nosso lar. A volta para casa costuma simbolizar uma reorganização de tudo o que foi maculado por alguma força. Quando até este local de suposto refúgio representa uma ameaça, e o sujeito se vê na carência total de apoio ou abrigo, temos a ideia mais legítima e primordial do medo.

Nesse sentido, “Desafio ao Além” explora cautelosamente o estranho sentimento de pertença que a protagonista Eleanor (Julie Harris) exibe em relação à temerosa mansão Hill House, que a outros causa tanta aversão. Adaptada do livro de Shirley Jackson, a trama parte do fascínio de Dr. Markway (Richard Johnson) pelo sobrenatural. Ciente da fama e conhecedor da história de Hill House, permeada por fatalidades, o pesquisador fica obcecado por investigar cientificamente os eventos que acontecem por lá. Para isso, ele selecionou determinadas pessoas que já tiveram alguma experiência sobrenatural para trabalharem como seus assistentes na busca pelo desconhecido.

Eleanor é uma das pessoas convocadas para passar uma temporada na mansão assombrada. Seus motivos para aceitar o convite sem conhecer nada a respeito dos envolvidos e do local não poderia dizer mais sobre a personagem. Após 11 anos dedicados exclusivamente a cuidar da mãe, Eleanor sente uma enorme necessidade de viver a própria vida. Com o falecimento da mãe, ela encara a misteriosa chamada como uma oportunidade para se libertar, fugindo literalmente da casa da irmã e do cunhado, da qual nunca se sentiu parte.

Seus pensamentos expressos em voice over nos aproximam da personagem. Os questionamentos e os anseios mostram um grande sofrimento psicológico, solidão e insegurança, mas muita determinação e pressa em conquistar a sonhada felicidade. Dos três convidados do Dr. Markway, ela é quem mais se demonstra disposta a ficar na mansão, às vezes até mais que o próprio cientista. Isso porque, para Eleanor, a estada na Hill House não representa apenas um estudo científico, mas uma verdadeira apropriação da casa enquanto lar e das pessoas enquanto família ou amigos. Harris realiza uma ótima atuação, deixando estampados no rosto a ingenuidade e o desequilíbrio emocional da protagonista e conquistando sem dificuldade a empatia do público.
Os demais participantes da investigação, Theodora (Claire Bloom) e Luke (Russ Tamblyn), têm suas respectivas funções ligadas mais à dinâmica da relação entre os personagens do que à própria trama. Theo tem uma incrível percepção extra-sensorial, o que ajuda a compreender a introspectiva Eleanor, sendo sua principal companhia na mansão. Luke é o típico universitário cético e sutilmente arrogante, opondo-se constantemente às crenças do Dr. Markway e funcionando como um certo alívio cômico. 

O trabalho dessas relações pessoais é muito importante, pois uma vez que a maior parte do filme se passa dentro da casa e com os mesmos personagens, a interação entre eles é que dá ritmo à história. O espectador se torna mais um membro da equipe de “investigadores” e presencia tanto as cenas mais corriqueiras como as mais assustadoras.

O roteiro de Nelson Gidding é bem estruturado, mas só falha ao explorar o desenvolvimento do estudo científico, que é o motivo pelo qual todos estão ali. Com exceção de uma cena em que o Dr. Markway entrega relatórios para os três convidados preencherem ao fim de cada dia, as práticas da pesquisa são simplesmente negligenciadas. Não fosse o excelente trabalho na construção de Eleanor, este descuido comprometeria consideravelmente a validade narrativa do longa, que estaria carente de sua própria premissa sem ter outra compensação.

A direção de Roberto Wise mostra uma louvável preocupação estética, compondo belíssimos planos que valorizam o cenário e as marcações dos personagens. A câmera participa ativamente da construção narrativa, fazendo uso de lentes olho-de-peixe para desvirtuar a imagem e atrevendo-se vez por outra a realizar movimentos desordenados que remetem às reações emocionais de Eleanor aos estranhos eventos da casa, assim como planos que evidenciam a vulnerabilidade daquelas pessoas diante da grandiosidade da mansão, que os ameaça constantemente. A fotografia em preto e branco e cheia de sombras de Davis Boulton constrói uma atmosfera ideal para o mistério, que tem na precisa montagem de Ernest Walter o ritmo perfeito nos momentos de maior tensão.

“Desafio ao Além” é um daqueles filmes que serve de influência para vários outros, sendo frequentemente lembrado como uma importante referência do gênero. A paciência na construção do suspense e a base na psicologia afetada da protagonista desenvolvem uma inteligente metáfora sobre o deslocamento social e a carência emocional. A necessidade de aceitação não satisfeita tem na icônica figura da casa a representação do que resta de mais íntimo e abalado nas distantes e perturbadas relações humanas de nosso tempo.
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Thiago César é formado em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), mas aspirante a cineasta. Já fez cursos na área de audiovisual e realiza filmes independentes.