Desafio ao Além: clássico de terror é uma das maiores referências do gênero
Longa de 1963 aborda o desequilíbrio psicológico da protagonista.
Avaliação:
8
Casa
mal assombrada é um tema antológico do terror. Trabalhado
exaustivamente em inúmeras obras do gênero, é sempre atual porque
desestabiliza justamente o ponto de mais segurança ao qual nos remetemos
quando adentramos o desconhecido: nosso lar. A volta para casa costuma
simbolizar uma reorganização de tudo o que foi maculado por alguma
força. Quando até este local de suposto refúgio representa uma ameaça, e
o sujeito se vê na carência total de apoio ou abrigo, temos a ideia
mais legítima e primordial do medo.
Nesse sentido, “Desafio ao Além” explora cautelosamente o estranho
sentimento de pertença que a protagonista Eleanor (Julie Harris) exibe
em relação à temerosa mansão Hill House, que a outros causa tanta
aversão. Adaptada do livro de Shirley Jackson, a trama parte do fascínio
de Dr. Markway (Richard Johnson) pelo sobrenatural. Ciente da fama e
conhecedor da história de Hill House, permeada por fatalidades, o
pesquisador fica obcecado por investigar cientificamente os eventos que
acontecem por lá. Para isso, ele selecionou determinadas pessoas que já
tiveram alguma experiência sobrenatural para trabalharem como seus
assistentes na busca pelo desconhecido.
Eleanor é uma das pessoas convocadas para passar uma temporada na
mansão assombrada. Seus motivos para aceitar o convite sem conhecer nada
a respeito dos envolvidos e do local não poderia dizer mais sobre a
personagem. Após 11 anos dedicados exclusivamente a cuidar da mãe,
Eleanor sente uma enorme necessidade de viver a própria vida. Com o
falecimento da mãe, ela encara a misteriosa chamada como uma
oportunidade para se libertar, fugindo literalmente da casa da irmã e do
cunhado, da qual nunca se sentiu parte.
Seus pensamentos expressos em voice over nos aproximam da
personagem. Os questionamentos e os anseios mostram um grande sofrimento
psicológico, solidão e insegurança, mas muita determinação e pressa em
conquistar a sonhada felicidade. Dos três convidados do Dr. Markway, ela
é quem mais se demonstra disposta a ficar na mansão, às vezes até mais
que o próprio cientista. Isso porque, para Eleanor, a estada na Hill
House não representa apenas um estudo científico, mas uma verdadeira
apropriação da casa enquanto lar e das pessoas enquanto família ou
amigos. Harris realiza uma ótima atuação, deixando estampados no rosto a
ingenuidade e o desequilíbrio emocional da protagonista e conquistando
sem dificuldade a empatia do público.
Os demais participantes da investigação, Theodora (Claire Bloom) e
Luke (Russ Tamblyn), têm suas respectivas funções ligadas mais à
dinâmica da relação entre os personagens do que à própria trama. Theo
tem uma incrível percepção extra-sensorial, o que ajuda a compreender a
introspectiva Eleanor, sendo sua principal companhia na mansão. Luke é o
típico universitário cético e sutilmente arrogante, opondo-se
constantemente às crenças do Dr. Markway e funcionando como um certo
alívio cômico.
O trabalho dessas relações pessoais é muito importante,
pois uma vez que a maior parte do filme se passa dentro da casa e com os
mesmos personagens, a interação entre eles é que dá ritmo à história. O
espectador se torna mais um membro da equipe de “investigadores” e
presencia tanto as cenas mais corriqueiras como as mais assustadoras.
O roteiro de Nelson Gidding é bem estruturado, mas só falha ao
explorar o desenvolvimento do estudo científico, que é o motivo pelo
qual todos estão ali. Com exceção de uma cena em que o Dr. Markway
entrega relatórios para os três convidados preencherem ao fim de cada
dia, as práticas da pesquisa são simplesmente negligenciadas. Não fosse o
excelente trabalho na construção de Eleanor, este descuido
comprometeria consideravelmente a validade narrativa do longa, que
estaria carente de sua própria premissa sem ter outra compensação.
A direção de Roberto Wise mostra uma louvável preocupação estética,
compondo belíssimos planos que valorizam o cenário e as marcações dos
personagens. A câmera participa ativamente da construção narrativa,
fazendo uso de lentes olho-de-peixe para desvirtuar a imagem e
atrevendo-se vez por outra a realizar movimentos desordenados que
remetem às reações emocionais de Eleanor aos estranhos eventos da casa,
assim como planos que evidenciam a vulnerabilidade daquelas pessoas
diante da grandiosidade da mansão, que os ameaça constantemente. A
fotografia em preto e branco e cheia de sombras de Davis Boulton
constrói uma atmosfera ideal para o mistério, que tem na precisa
montagem de Ernest Walter o ritmo perfeito nos momentos de maior tensão.
“Desafio ao Além” é um daqueles filmes que serve de influência para
vários outros, sendo frequentemente lembrado como uma importante
referência do gênero. A paciência na construção do suspense e a base na
psicologia afetada da protagonista desenvolvem uma inteligente metáfora
sobre o deslocamento social e a carência emocional. A necessidade de
aceitação não satisfeita tem na icônica figura da casa a representação
do que resta de mais íntimo e abalado nas distantes e perturbadas
relações humanas de nosso tempo.
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Thiago César é formado em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), mas aspirante a cineasta. Já fez cursos na área de audiovisual e realiza filmes independentes.
Thiago César é formado em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), mas aspirante a cineasta. Já fez cursos na área de audiovisual e realiza filmes independentes.
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