Avaliação:  NOTA  8
 
Lincoln

Steven Spielberg é o maior dos cineastas quando o assunto é aventura. Porém, ele exibe fragilidades ao filmar dramas históricos, como vem se especializando. Seus dois últimos longas são expoentes da qualidade distinta de seu trabalho como diretor. Se em “As Aventuras de Tintim: O Segredo do Licorne” a intensidade e a diversão são evidentes, em “Cavalo de Guerra” Spielberg perde a mão ao introduzir o drama, como acontece em outros projetos do gênero.

É, por vezes, sentimentalista, piegas com seus diálogos inverossímeis e trilha sonora demasiadamente emotiva. A temáticas importantes que trata juntamente com a destreza técnica de suas obras, porém, fazem seus trabalhos se destacarem, tornarem-se referência. Em “Lincoln”, no entanto, ele está mais contido. Em seu primeiro longa verdadeiramente político, ele concede a Tony Kushner, o roteirista, a função principal de contar uma trama detalhista e, até certo ponto surpreendente, sobre um dos fatos mais importantes da história dos EUA: a abolição da escravatura no país.

O desejo de libertar os negros advém do próprio presidente norte-americano, Abraham Lincoln (Daniel Day-Lewis), que, depois de ter sua proposta derrotada, insiste em aprová-la em pleno período de guerra. Estamos em 1865. A Guerra de Secessão já não está mais em seu auge, mas as batalhas entre o Norte libertário e os Estados do Sul escravocratas da nação americana persistem. A oposição democrata na Câmara dos Representantes (equivalente a dos Deputados), porém, é ferrenha. Os mais radicais não aceitam qualquer possibilidade de igualdade entre brancos e negros. Por isso, algumas manobras políticas são realizadas para os congressistas mais maleáveis votarem a favor da 13ª Emenda, possibilitando o fim, pelo menos constitucional, da submissão racial.

Não se engane. “Lincoln” não é um filme biográfico sobre a história de vida do 16º presidente americano. O objeto é a 13ª emenda à Constituição e o consequente fim da escravidão. A Guerra Civil serve apenas para contextualizar o período tenebroso que o país vive e influenciar as escolhas dos deputados acerca do assunto. São poucas as cenas de batalhas e mortes, das quase 1 milhão que ocorreram entre 1861 e 1865. Estamos diante de um longa eminemente político, em que as ideias se sobrepõem aos fatos, em que a emoção perde certo espaço para a razão, para as crenças e para as “picuinhas” políticas.

O maior acerto do roteiro de Kushner, adaptado do livro “Team of Rivals: The Genius of Abraham Lincoln”, de Doris Kearns Goodwin, é mostrar com riqueza de detalhes como um polêmico projeto alcança aceitação de diversos parlamentares oposicionistas em questão de dias. Apesar de ainda ser acometido por uma inocência em que interesses particulares estão pouco envolvidos, a trama exibe com louvor as manobras do presidente e toda a sua equipe para o convencimento dos não-aliados, seja por meio de promessas de cargos no Governo e simples argumentos ideológicos, seja, principalmente, por omissão de informações essenciais sobre o transcorrer da guerra.

Não há nada de romântico nesse processo. Tratam-se, sobretudo, de negócios em que todos buscam ganhar ou defender o posicionamento e a autoridade de seu respectivo partido. E Kushner exibe tudo isso por meio de diálogos e mais diálogos. Em certos momentos, a impressão é de que nem estamos assistindo a um filme de Spielberg vide o falatório incansável da maioria das cenas. O cineasta, porém, se aproveita dos diversos momentos de eloquência do texto do roteirista para botar em prática suas exaltações e emoções, dando um pequeno e bem administrado coração ao filme, por mais que a trilha exagerada de John Williams trabalhe contra isso. E esses momentos acontecem, principalmente, quando temos o protagonista em cena.

Abrindo espaço para o Lincoln pai de família, que é mais carinhoso com o filho mais novo do que com o mais velho e mantém uma relação turbulenta com a esposa, Kushner, porém, dá ao Lincoln presidente e líder dos republicanos uma atenção maior acertadamente. Trata-se de um homem que tem na dignidade e na oratória suas grandes qualidades. No entanto, por vezes, o texto esbarra no mito que circunda Lincoln, que a bonita fotografia de Janusz Kaminski faz questão de ressaltar. Parece com medo de exibir alguma falha de caráter no presidente recentemente reeleito. Até mesmo suas estratégias políticas duvidosas são inocentadas com lições de moral, muitas delas advindas de causos muito bem contados.

Mas se o texto parece contraditório ao mostrar a desejada pureza do personagem, Daniel Day-Lewis faz dele um homem extremamente verossímil e carismático. Em mais uma performance impressionante, o ator inglês surge com uma voz arrastada, que jamais se exalta, o corpo curvado e um gestual incisivo. Se apreciamos sua técnica em suas primeiras cenas, Day-Lewis “desaperece” pouco depois para dar lugar a Lincoln, por inteiro. Outro destaque entre os atores é Tommy Lee Jones. Como o radical republicano Thaddeus Stevens, um dos principais apoiadores da abolição, Jones acerta o tom (ora cômico, ora dramático) e ajuda a história a sair das redondezas do protagonista e mergulhar na Câmara. O desfecho de sua trama é particularmente comovente.

Vale elogiar também os desempenhos de David Strathairn, como o secretário de Estado William Seward, e de James Spader, como W. N. Bilbo, homem contratado para convencer secretamente alguns democratas contrários à Emenda, servindo como um ótimo alívio cômico. O elenco traz ainda nomes reconhecidos da dramaturgia americana, como John Hawkes, Hal Holbrook, Jack Earle Haley e Michael Stuhlbarg, todos em ótimos trabalhos. A única que destoa do desempenho dos colegas é Sally Field, extremamente estridente como a primeira dama dos EUA e uma das poucas mulheres da trama.

Se às mulheres sobram poucos espaços, o mesmo pode-se dizer dos negros. Permancendo na esfera política, o filme pouco se preocupa com o público alvo da 13ª Emenda. “Lincoln” não é um filme social. Trata-se de um projeto atípico de Spielberg, de poucas cenas externas, maniqueísmo quase controlado, diálogos abundantes e de difícil compreensão para os menos atentos. Dono de qualidades evidentes, mas de erros perceptíveis, o longa é muito mais um trabalho de roteirista do que de diretor, o que não o faz menos importante para a sociedade americana. As 12 indicações ao Oscar são justas, mas não merece ir muito além, apesar do favoritismo.
___ Darlano Dídimo é crítico do CCR desde 2009. Graduado em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará (UFC), é adorador da arte cinematográfica desde a infância, mas só mais tarde veio a entender a grandiosidade que é o cinema.