segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Quentin Tarantino





Homem Elétrico
Por David Wild



Em 1994, cultuado por público e crítica, Quentin Tarantino possuía dois filmes de sucesso no currículo, uma Palma de Ouro em Cannes na estante e o status ascendente de ícone cinematográfico de sua geração




Quentin Tarantino, o louco emissário do cinema brutal, tem mãe. Chocante, não? Ela assistiu a Cães de Aluguel, filme de 1992 que transformou seu filho em roteirista-ator-diretor cult e elevou o nível da violência explícita no cinema com uma cena de tortura cujo ápice é uma orelha decepada. "Essa é a cena favorita da minha mãe", diz Tarantino, 31 anos, que jamais terminou o ensino médio e foi, em poucos anos, catapultado de balconista de locadora a cineasta do momento. Sua mãe acabou de assistir a Pulp Fiction - Tempo de Violência, uma ambiciosa, sombria e cômica antologia policial sobre a escória de Los Angeles. O filme ganhou a Palma de Ouro em Cannes e colocou seu filho na lista dos mais cotados para o Oscar [acabou levando o prêmio de Melhor Roteiro Original]. Embora a película inclua tiros, sadomasoquismo, estupro homossexual e uma cena de overdose capaz de fazer a plateia prender o fôlego, mamãe Tarantino nem se abala. Mas, quando o assunto é o apartamento do filho, a coisa muda de figura. "Não é exatamente meu estilo de decoração", ela ri.


O lar de Tarantino está longe de parecer o que se espera da casa hollywoodiana de alguém de seu calibre. Em vez disso, o aconchegante - ok, zoneado - apartamento parece o paraíso da cultura pop kitsch. Pôsteres de filmes, vídeos, laser discs, álbuns, fanzines, livros e artigos cinematográficos diversos preenchem cada centímetro. Junto com suvenires de seus próprios filmes - incluindo a navalha usada na cena da orelha decepada -, há uma cabeça assustadoramente realista da diva dos filmes B, Barbara Steele, um pacote do genuíno chili de O Massacre da Serra Elétrica, dúzias de garrafas de Pepsi e o que sem dúvida é a maior coleção de jogos de tabuleiro baseados em filmes e programas de TV.


"Venho colecionando essa merda toda há anos", diz Tarantino, que hoje veste uma camiseta do Corredor X, personagem do desenho animado Speed Racer. "E aí resolvi que queria começar a colecionar algo novo. Primeiro escolhi lancheiras, mas eles exploram demais. São muito caras. E com bonecos não dá para se divertir muito, já que você tem que mantê-los dentro das caixas! Então comecei com jogos de tabuleiro." Orgulhoso, ele mostra sua coleção, dividida por gêneros. Os Gatões, avalia ele, é um jogo particularmente legal. Duas de suas aquisições mais impressionantes são Madrugada dos Mortos e Universe, que de acordo com o diretor é "o mais perto que se chegou de um jogo oficial baseado em 2001: Uma Odisséia no Espaço." O quarto é dominado por uma coleção pessoal de fitas de vídeo, grande o bastante para suprir uma loja inteira. O acervo vai de clássicos do cinema arte a uma bela quantidade de preciosidades do blaxploitation.
 



Também é difícil não notar o santuário dedicado a John Travolta localizado sobre a lareira de Tarantino. É certo que parte da satisfação em fazer Pulp Fiction veio da oportunidade de trabalhar com Travolta, também conhecido como Vinnie Barbarino, líder dos Sweathogs em uma das séries de TV favoritas do diretor, Welcome Back, Kotter (que foi ao ar de 1975 a 1979).Pulp Fiction ajudou a restaurar o brilho da carreira do ator após uma sequência de papéis menos desafiadores. Em um filme que conta com atuações de destaque de Bruce Willis, Samuel L. Jackson, Uma Thurman, Tim Roth, Amanda Plummer, Christopher Walken, Harvey Keitel e do próprio Tarantino, Travolta protagoniza uma incrível reviravolta profissional como o capanga, dançarino e viciado em heroína Vincent Vega. Tarantino é capaz de dissertar por horas a respeito do "total brilhantismo" do ator em Um Tiro na Noite (1981), de Brian De Palma. "John é um doce e nos tornamos amigos", diz ele. "Tudo o que fiz foi dar a ele o tipo de papel que ele costumava fazer, e o levei a sério. Mas, depois que você o conhece, é fácil entender por que fez todos aqueles Olha Quem Está Falando, porque o personagem é muito parecido com o que ele é na vida real - o tipo de cara bobalhão, divertido e carismático."


Travolta ficou igualmente encantado. "Estou nesse ramo há 20 anos e nunca vi alguém se divertir tanto em um set de filmagem quanto Quentin", diz ele. "E é contagioso. Você pensa: 'Se esse cara consegue extrair tanto disso tudo, definitivamente quero estar no mesmo barco que ele'. Seu conhecimento sobre filmes é profundo. Seu amor pelo cinema é profundo. Mesmo sua energia enquanto ser humano é extraordinária. E sua boa vontade em aceitar tanto críticas quanto elogios sem se abalar é arrasadora. Tenho tanta inveja disso. Não consigo ver medo em Quentin." E como Travolta lidou com a grande admiração de Tarantino por seus antigos trabalhos? "Como ficar indiferente?", diz Travolta. "Ele me explicou, muito articuladamente, o que signifiquei para ele na juventude e minha importância - por causa de certos papéis - para toda uma geração." Travolta deixa escapar uma risada e complementa: "Percebi que Quentin representa o modo como muitas pessoas se sentem a meu respeito. A diferença é que agora é ok declarar isso em voz alta". Toda essa admiração mútua exige uma pergunta: Quando Tarantino encontrou Travolta antes de escalá-lo para Pulp Fiction, mencionou que tinha um santuário dedicado ao ator sobre sua lareira? "Não, não contei a John sobre isso," confessa Tarantino. "Mas levei meu boneco do Vinnie Barbarino para que ele o autografasse."

 

O sucesso de Pulp Fiction teve um gosto doce para Tarantino. Há não muito tempo, seu crédito de maior importância era ter interpretado um imitador de Elvis Presley em um episódio do seriado Super Gatas. Seu primeiro grande destaque veio com Cães de Aluguel, filme de assalto existencialista em que o crime em si nem é mostrado. Um ano depois, roteirizou o subestimado Amor à Queima Roupa (1993), de Tony Scott. Recentemente, Tarantino atraiu os olhos do público por ter escrito o roteiro que, digamos, evoluiu para o controverso Assassinos por Natureza (1994), de Oliver Stone. E, sabe-se lá como, ainda arrumou tempo para dar uma pequena mãozinha para a amiga Julia Sweeney (que tem uma participação em Pulp Fiction) em seu filme, Isto É Pat.

 

Por toda essa atividade, Tarantino definitivamente não é o típico carreirista hollywoodiano. Extrema- mente confiante e ainda assim despretensioso, ele ainda é basicamente um fã - do tipo que tem opiniões fortes e um gosto bastante eclético. Ao conversar com o repórter da Rolling Stone, o alto diretor de queixo proeminente debate sobre como Perfeição (1985), filme em que Travolta interpreta justamente um repórter da Rolling Stone, foi injustamente desprezado. Fã confesso de S.O.S. Malibu, Tarantino pondera alegremente sobre o assustador potencial de David Hasselhoff enquanto estrela de cinema. Ele é também o tipo raro e corajoso capaz de defender a tese de que Olha Quem Está Falando Também representa o auge criativo da trilogia estrelada por Travolta.

 

O status de maníaco por cultura pop de Tarantino contaminou até mesmo suas próprias performances. Em Cães de Aluguel, ele fez uma participação memorável no papel de Mr. Brown, discutindo passionalmente com Mr. Pink (Steve Buscemi) sobre o verdadeiro significado da letra de "Like a Virgin", de Madonna. Mr. Brown insiste que a letra é "uma metáfora para um pau grande", enquanto Mr. Pink romanticamente sugere que a música é sobre o amor. Só para constar, a própria cantora eventualmente solucionou o mistério. "Madonna adorou o filme, mas disse que eu estava errado", conta Tarantino. "Ela autografou meu álbum Erotica: 'Querido Quentin, é sobre amor, não é sobre pau. Madonna'." Em Vem Dormir Comigo (1994), Tarantino quase rouba a cena com sua participação como o convidado de uma festa que entusiasmadamente disserta sobre o subtexto homossexual de Top Gun: Ases Indomáveis (1986).



Mesmo a cozinha do diretor - com um suprimento aparentemente infinito de achocolatado disposto ao lado de uma enorme caixa de cereal - sugere uma espécie de alegre complexo de Peter Pan. Mas, depois de alguns anos problemáticos em que chegou a ser preso em Hollywood, Tarantino se estabeleceu como um talento maduro e necessário no mercado. Ainda assim, o tempo em que ele era apenas o balconista de uma locadora de vídeo em Manhattan Beach não parece tão distante. "As pessoas me perguntam se eu fiz faculdade de cinema", diz ele. "E eu digo: 'Não, o que eu fiz foi assistir a filmes'."

 

O balconista, interpretado por Christian Slater em Amor à Queima Roupa, foi baseado na época em que Tarantino era mais novo e morava perto do aeroporto de Los Angeles. "Ele passa o dia vendo as pessoas partirem", conta. "E ele mesmo não vai para lugar algum. Não sou mais esse cara. Aquele era alguém que nunca havia tido uma namorada, era inexperiente e inocente. Só teve fracassos na vida." Nas mãos do diretor Tony Scott (que, coincidentemente, também dirigiu Top Gun), o filme se transformou em uma violenta - mas romântica - montanha-russa. "Tony fez um ótimo trabalho", diz Tarantino com admiração. "O filme ficou muito legal. Claro, a coisa toda foi meio bizarra para mim - foi como assistir a uma versão de alto orçamento de um de seus filmes caseiros."

 

Admiração não seria a palavra exata para descrever o sentimento de Tarantino a respeito do que se tornou seu roteiro para Assassinos por Natureza, que Oliver Stone decidiu retrabalhar substancialmente com a ajuda de seus colaboradores. Tarantino abriu mão dos créditos, assumindo apenas que o filme foi baseado em uma história sua. De fato, citar Assassinos por Natureza é o modo mais simples de fazer com que ele cale sua costumeiramente afável boca. Quando pergunto se assistiu ao filme, Tarantino fica estranhamente quieto.

"Não", diz ele finalmente.



Tarantino conta que foi convidado para uma préestreia, mas recusou, dizendo que assistiria no cinema. "É meio viajante e não tem nada a ver comigo," diz ele, após ser induzido a se aprofundar no assunto. "Acho que as pessoas sabem bem que me distanciei do filme. Não acho que vou ter muito crédito por ele ou sofrer críticas. Definitivamente, não espero por nenhum dos dois. Se você gostar, a culpa é de Oliver. Se não gostar, a culpa é dele também."




No caso, a data de lançamento de Pulp Fiction - um filme bem mais querido por ele - foi atrasada por Tarantino, pelo produtor Lawrence Bender e pela Miramax Films em parte para se distanciar de Assassinos por Natureza. "A ideia era lançar em agosto, que é o momento certo para filmes menos badalados," diz ele. "Então ouvimos falar que Assassinos estrearia em agosto também, e minha primeira reação foi, foda-se, vamos lançar no mesmo dia. Mas a verdade é que não quero essa associação. Eu veria todas aquelas resenhas duplas na Rolling Stone, na ,Time e na Newsweek, com uma foto do outro ao lado de uma de Pulp Fiction. Ficaríamos ligados para sempre."


 

Pulp Fiction começou com um primeiro tratamento de 500 páginas. Para Tarantino, "a única coisa estranha sobre escrever este filme foi que, pela primeira vez, sabia que iria ser produzido. Não é mais tão etéreo. E, se vai ser feito, tem que merecer ser feito. É uma análise bem dura". Certamente, Tarantino ousou com a intrincada trama, um filme descrito por ele no início como "uma antologia sobre uma comunidade de pilantras". Alguns companheiros roteiristas alertaram Tarantino de que talvez fosse difícil para ele escrever depois de sua estreia com Cães de Aluguel. "Felizmente, não foi tão difícil assim", ele brinca.


 

"Gostei de fazer Pulp Fiction ainda mais do que Cães de Aluguel, porque desta vez sabia o que estava fazendo", conta. Tarantino só tem elogios para o elenco, incluindo Harvey Keitel, que faz uma dramática participação no papel de Wolf, um solucionador de problemas profissional. Parece um papel sob medida, já que Keitel se mostrou um verdadeiro salvador quando ajudou a dar o pontapé definitivo na carreira de Tarantino, ao assinar o contrato para atuar em Cães de Aluguel.



Pelo que Tarantino diz, a pior parte é conseguir trabalhar com todas as distrações típicas de Hollywood. "Vários diretores novos conseguem um pouco de sucesso e depois viram viciados em telefone", diz ele, com uma ponta de nojo. "Tudo o que eles fazem é falar. Minha postura é: fodam-se todos esses telefonemas, esqueça todas as reuniões, você tem trabalho a fazer! Oitenta por cento das pessoas que te ligam têm como único trabalho telefonar para os outros o dia todo. Mas esse não é o nosso trabalho."


 

 
É uma tarde ensolarada em Hollywood, e Quentin Tarantino está em seu habitat: o cinema. Um dia, talvez o ato de fazer filmes possa acabar atrapalhando o ato de assistir a filmes, mas este não é o caso. Nesta tarde em específico, ele é provavelmente o membro mais jovem da plateia presente em uma exibição de Mad Love, no Los Angeles County Art Museum. "Acho que a maior parte das pessoas aqui viu o filme quando estreou, em 1935", diz ele, examinando o público.
 

 

Mad Love - mais tarde adaptado com o nome de The Hands of Orlac - é um filme do cineasta alemão Karl Freund, estrelando Peter Lorre como um médico louco que é levado pelo amor a realizar uma equivocada cirurgia. Tarantino está vibrando por finalmente conseguir assistir à película. Mesmo nunca tendo visto, está bem informado a respeito da mitologia em tamtorno do filme. "Quem dirigiu foi o diretor de fotografia de Metropolis", ele explica, empolgado. "E na famosa tese de Pauline Kael, 'Raising Kane', ela afirma que este foi o filme que o cinematografista Gregg Toland fez antes de Cidadão Kane para testar as coisas que usaria no clássico mais tarde." Tarantino encerra o raciocínio, se recosta na poltrona e sorri enquanto as luzes do cinema se apagam.

 

Quando o filme termina, Tarantino encara o cegante sol de Los Angeles. Enquanto almoça no Johnnie's - um restaurante sem frescura que serviu de locação em Cães de Aluguel -, alguém pergunta se não é estranho para ele ir ao cinema bem no meio de um dia lindo como aquele. "De jeito nenhum", diz ele. "Vou ao cinema sempre que posso. Já dei algumas entrevistas nas quais as pessoas me diziam que queriam sair comigo em um dia normal e fazer o que eu faço. E sempre tenho a impressão de que elas esperam que eu as leve para cavalgar ou algo assim. Se for assim, pegaram o cara errado. Vou ao cinema às vezes mais de uma vez por dia, e assisto a TV com meus amigos. Ocasionalmente, acabo indo a algum café. Faço isso e trabalho. É só o que eu faço." Nada disso é recente. Esta tem sido mais ou menos a mesma rotina de Tarantino desde que cresceu em South Bay, sob a sombra do Aeroporto Internacional de Los Angeles. Seus pais já haviam se separado quando Quentin, então com 2 anos, e sua mãe, Connie, se mudaram para a cidade californiana, vindos de Knoxville, Tennessee. De acordo com Connie, que mais tarde voltou a se casar, Quentin já demonstrava desde cedo um apetite insaciável por filmes. "Algumas pessoas me descrevem como uma mãe permissiva", diz ela. "Levava Quentin para ver todos os filmes que eu via. Não censurava nada." Logo, o quarto do jovem futuro diretor viria a se parecer muito com seu atual apartamento. "Eu mantinha ele sob rédea curta no restante da casa", conta ela, às gargalhadas.



"Minha mãe trabalhava duro para que eu tivesse uma bela casa para viver", Tarantino relembra. "Vivíamos em Harbor City, que é uma vizinhança classe média, mas um tanto rude." Connie descreve a área como classe média alta - "mesmo pensando que isso não se encaixa na trajetória 'do lixo ao luxo' que alguns gostam de contar sobre Quentin". Mas ela complementa, dizendo que "desde cedo ele se sentia atraído pelas vizinhanças mais barra-pesada". O jovem Quentin - que, tanto mãe quanto filho concordam, odiava a escola - havia encontrado seu refúgio nos filmes. "Basicamente, passei minha vida no cinema. Cresci entre os cinemas pulgueiros e os que exibiam filmes de arte, e amava os dois igualmente", ele afirma. "De certa forma, isso define minha estética. Quero dizer, não é como se eu fosse um desses diretores cabeça querendo me exibir. Acho que os estúdios têm medo de uma coisa: que alguém faça um filme chato. Meu material pode não ser óbvio, mas também não é nada esotérico. Eu jamais escreveria um roteiro sobre pastores de ovelha contemplando Deus e a vida."


 

Tarantino entrou no ramo do cinema profissionalmente ainda adolescente, ao trabalhar de lanterninha em um cinema pornô chamado Pussycat Theater. Ele já havia escrito seu primeiro roteiro, batizado Captain Peachfuzz and the Anchovy Bandit (Capitão Peachfuzz e o Bandido da Anchova). Aos 22 - mais ou menos na mesma época em que começou a filmar sua jamais concluída estreia, My Best Friend's Birthday (O Aniversário do Meu Melhor Amigo) -, ele arrumou um trabalho mais satisfatório, como balconista da Video Archives, que Tarantino orgulhosamente chama de "a melhor locadora de Los Angeles". Lá ele conheceu outros maníacos por filmes, como o companheiro balconista Roger Avary, cujo recente filme de estreia como diretor, Parceiros do Crime, contou com Tarantino como produtor executivo.

 

"Vivi lá por anos", prossegue. "Nós encerrávamos o trabalho, fechávamos a loja e assistíamos a filmes a noite toda. Outras vezes, Roger, nosso amigo Scott e eu saíamos na sexta e planejávamos tudo de forma que pudéssemos ver as quatro estreias da semana. Todo o dinheiro que ganhávamos acabava voltando de volta para a indústria."

 

"Quentin sempre foi bom de papo", relembra Avary. "A diferença é que agora todo mundo resolveu ouvilo." No início, havia tensão entre os dois. "Éramos um tanto competitivos sobre quem conhecia mais de cinema", diz Avary. "Eventualmente, entretanto, nos demos conta de que, apesar de sermos muito diferentes, tínhamos o mesmo gosto." Avary - que contribuiu no roteiro de Pulp Fiction - se vê juntamente com Tarantino como membro de um novo movimento. "As escolas de cinema viraram negócio", ele diz. "Há uma nova geração de cineastas, e eles vêm das locadoras. Há a vantagem de ter um banco de dados de milhares de filmes à disposição."


 

Por isso, não é nada surpreendente que alguns críticos tenham rotulado o trabalho de Tarantino como "derivativo". Alguns acreditam que Cães de Aluguel roubou muitas coisas de filmes antigos, como O Grande Golpe (1956), de Stanley Kubrick. "Em geral, a imprensa vem me tratando muito bem", diz Tarantino, que ainda lamenta o fato de a crítica Pauline Kael - "uma de minhas maiores influências", como ele a chama - ter se aposentado antes da estreia de Cães de Aluguel. "Mas uns poucos críticos têm dito, ironicamente, que Cães de Aluguel parece um trabalho de faculdade - que é um filme muito mais sobre cinema do que sobre experiências de vida. Não concordo. Acho que uma das forças do filme é ser realista: te dá uma visão verdadeira do que é a vida criminosa. Mas também gosto da ideia de que meus filmes comentam sobre o próprio cinema. Um monte de diretores de que eu gosto fazem isso." De repente, Tarantino sorri com ar selvagem. "O que interessa de verdade é que ninguém percebeu as tomadas que eu realmente copiei." "Parte da diversão de se fazer cinema é saber que outras pessoas já fizeram tudo isso antes", diz ele, "e você pode usar o que já foi feito como ponto de partida para suas próprias bizarrices. Estou tentando fazer a combinação de um filme inspirado pelo cinema e um filme de verdade. Quero fazer filmes inspirados pelo cinema, mas com consequências reais". Uma consequência real da brutalidade artística que marcou os filmes de Tarantino é a reputação que o diretor ganhou de "poeta pensador da violência". Algumas pessoas da plateia ainda devem ter pesadelos com a cena da amputação da orelha em Cães de Aluguel, que Tarantino - um amante da música pop de gostos extremamente católicos - orquestrou ao som alegre do clássico do Stealers Wheel, "Stuck in the Middle with You".


 

 
"Nunca esquento a cabeça quando vejo as pessoas saindo no meio do filme", confessa Tarantino. "É só um sinal de que a cena funcionou. Vá a uma locadora e você verá que nove em cada dez filmes na seção de ação-aventura são mais explícitos que o meu. Mas não estou interessado em fazer desenho animado. Quero fazer da violência algo real."



Quando o filme participou de um festival de horror na Espanha - exibido depois do sanguinolento Fome Animal (de Peter Jackson) -, Tarantino achou que havia encontrado um público que não se chocaria pelo sadismo da cena. "Aí, mostramos o filme e 15 pessoas saíram do cinema durante a cena, incluindo [o diretor cult de terror] Wes Craven e [o especialista em efeitos especiais] Rick Baker", conta Tarantino. "Wes Craven - o cara que dirigiu Aniversário Macabro - saiu no meio do meu filme. Stuart Gordon - o cara que fez Re-Animator - era um dos jurados e estava com as mãos no rosto. Foi hilário." Baker encontrou Tarantino posteriormente e disse a ele: "Quentin, saí no meio do seu filme, mas quero que você entenda isso como um elogio. Veja só, todos nós lidamos com isso na fantasia. Não existem vampiros ou lobisomens. Você trabalha com a violência da vida real e eu não consigo lidar com isso."



Pulp Fiction tem um farto repertório de cenas para o público comentar na saída do cinema, incluindo o memorável trecho de estupro homossexual sexual sadomasoquista. "Amargo Pesadelo [1972] já tinha feito isso", Tarantino aponta. "American Me [1992] também. Há três comidas de rabo em American Me! É definitivamente o filme a ser batido nessa categoria!"



A verdade é que ninguém bateu Pulp Fiction no Festival de Cannes. Ter ganho a Palma de Ouro surpreendeu a muitos, mas não ao próprio Tarantino. "Eu achava que havia certa chance", diz ele, sorrindo. "Basicamente, foi como se ninguém soubesse do filme, e então... BUM! É como se até pessoas que não deveriam nem saber o que é a Palma de Ouro de repente soubessem que ganhei. Quando acabou, fui para Paris relaxar. Vou te falar uma coisa, nunca vá a Paris depois de ganhar a Palma de Ouro. Cannes é o Oscar deles, e aí vinha um monte de gente me abordar: 'Você é o americano que ganhou o prêmio'."



Hoje, Tarantino - que não tem namorada no momento e aparentemente falhou em desenvolver tórridos romances com suas atrizes - diz que quer tirar uma folga. "Preciso de um tempo para ter uma vida", diz. Mas, poucas semanas depois, o rumor é que já está de volta ao trabalho. Em outubro, estrelará como Jimmy Destiny em Johnny Destino, filme dirigido por Jack Baran. Depois, dirigirá um segmento de Grande Hotel, que também conta com diretores como Allison Anders, Alexandre Rockwell e Robert Rodriguez.



Tarantino, que recebeu agradecimentos de Kurt Cobain no encarte do disco In Utero, parece prestes a se tornar um ícone cinematográfico desta geração. Mas sua mãe - que está boicotando Assassinos por Natureza em respeito ao filho - diz que o sucesso ainda não o estragou: "Não vi nenhuma mudança em Quentin. Ele só continua tão autoconfiante quanto sempre foi".



A longo prazo, Tarantino explica que pretende simplesmente continuar seguindo o traiçoeiro caminho que escolheu para si próprio. "Quando você observa uma carreira em Hollywood, parece que existem duas rotas", diz, enquanto se recosta feliz em meio à bagunça de sua casa. "A carreira de capacho de estúdio e a carreira de cineasta de arte. Ambas têm seus perigos. Ninguém quer virar capacho. Mas a viagem de fazer filme de arte é tão ruim quanto, porque você pode se perder na própria praça. Mas há outro caminho, eu acho, no qual o orçamento que você consegue depende do tipo de filme que você fizer, se você está produzindo algo que realmente quer e que mais gente possa ter vontade de ver também."



"Tudo o que tenho a fazer é continuar seguindo esse caminho."





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