Reportagem publicada originalmente na edição 215 da RS EUA (junho de 1976)
Quando o Wings, o então novo grupo de Paul McCartney, finalmente embarcou para sua primeira turnê norte-americana, os Beatles já haviam encerrado a carreira havia mais de meia década. Em 1976, as diferenças pessoais e legais estavam quase resolvidas. Mas o que encerrava uma fase também levava a um novo desafio: lutar contra os boatos de uma volta da banda e provar que o Wings era uma evolução na carreira de McCartney
Bom, com toda a certeza, soa bem rock and roll, mesmo que seja o Wings. Jimmy McCulloch, ex-Thundercap Newman, e Denny Laine, ex-Moody Blue, esquentam as guitarras. Joe English, ex-nada, é um êxtase na bateria explosiva. Linda McCartney, ex-fotógrafa, dedilha um amontoado de teclados e é responsável por todos os efeitos sonoros que nós aprendemos a amar nos álbuns do Wings. E Paul McCartney, ex-beatle, conduz a banda toda, mais uma seção de metais de quatro peças que adiciona gingado e emoção. Ele navega no baixo enquanto Laine e McCulloch fornecem o peso; no piano, ele batuca "Lady Madonna" e "Live and Let Die", de volta ao baixo, ele berra, buscando um pouco daquela inspiração de Little Richard, em "Beware My Love" e "Letting Go". E, depois de um número especialmente encorpado e com batida marcante, ouve-se um grito de Laine ou de McCartney: "Rock and roll!"
E o Wings recebe toda a reação do rock: gente no meio do público de repente ergue o braço com o punho fechado para fazer sua saudação, cortando o ar com assobios agudos, soltando gritos de alegria para comemorar cada uma das cinco músicas dos Beatles que são oferecidas, soltando pedidos de bis ferozes, iluminados por fósforos e isqueiros. Esta é a primeira turnê de Paul McCartney pelos Estados Unidos desde 1966, quando ele ainda era um "você-sabe-o-quê". Junto com John, George e Ringo, ele deve ter detestado o público, as tempestades berrantes de calcinhas molhadas que choveram em cima deles em todos os lugares, do Shea Stadium (em Nova York) ao Candlestick Park (em São Francisco). Agora que a falência da Apple, a separação dos Beatles, os processos e as fofocas ficaram quase totalmente para trás, McCartney se pega retomando os velhos tempos, convidando as pessoas a bater palmas e bater os pés, acenando e posando para o público que está atrás e do lado do palco. Mas aqui nos Estados Unidos, em 1976, poucos tentam invadir o palco; o esquema de primeiros socorros permanece sem uso; os seguranças acabam abaixando o volume do rádio para poderem ouvir melhor o show. Os únicos berros remanescentes da beatlemania se fazem ouvir no começo, quando McCartney emerge da escuridão. A música que ganha os gritos - uma manifestação absoluta, aliás - é a mais calma entre todas as dos Beatles...
Sábado, 8 de maio: no piso principal do Olympia Stadium, em Detroit, Michigan, um lugar bem malcuidado, um rapaz fica gritando para as pessoas a sua frente se sentarem. Estávamos no set acústico, com Laine, McCulloch e o casal McCartney acomodados em cadeiras de palha, exceto Linda tocando violões. Depois de algumas canções, Paul McCartney fica sozinho no palco e se prepara para "Blackbird". O sujeito na plateia - parece que ele viu o primeiro show na noite anterior - está com jeito de saber o que está por vir. "Sentem!", ele berra. "Sentem, seus porras!" Então ele se vira para um amigo e explica a urgência de seu pedido. O tom de voz abaixa para o tom de conversa e ele soa racional: "Eu quero ver 'Yesterday'", ele diz.
"Se você quer os Beatles, vá ver o Wings. George Harrison, novembro de 1974"
Paul mccartney não se incomoda de retomar "Yesterday", mas hoje ele está empenhado em dois objetivos: a aceitação do público e da imprensa do Wings como banda e não como apoio para um ex-beatle e o reconhecimento por parte dessas duas mesmas instituições difíceis de que o Wings (e Paul) é rock, não pop. Mas McCartney tem algumas dificuldades. Em primeiro lugar, ele foi um Beatle; isso ele não pode mudar nem negar. E ele não faria isso, de todo modo. "Eu sou fã dos Beatles", ele diria mais tarde. "Quando John estava dizendo, há uns dois anos, que era tudo porcaria, que era só um sonho, eu sei do que ele estava falando, mas, ao mesmo tempo, eu estava lá sentado, pensando: 'Não foi assim'. Era um sonho, tanto quanto qualquer outra coisa é; tanta porcaria quanto qualquer outra coisa é. Na verdade, era menos porcaria do que um monte de outras coisas." E ele concorda com a equação que Harrison faz em relação ao Wings: "Eu não colocaria apenas assim. Eu diria que, 'se você quer o Wings, vá ver o Wings; se quer os Beatles, assista a um filme antigo'. Mas eu provavelmente tinha a cabeça mais voltada para o trabalho dos Beatles do que o resto. Eu costumo ligar para as pessoas e dizer: 'Vamos trabalhar agora' ou 'vamos fazer isto'. Então, suponho que seja justo dizer que isto já estava mesmo na minha bagagem e eu simplesmente continuei fazendo a mesma coisa. Já George... Ele só fez uma faixa em Sgt. Pepper, ele não apareceu para muitas outras coisas, porque realmente não estava muito interessado. Eu continuava muito interessado". Segunda dificuldade: McCartney é bonitinho. E, aos 33 anos, não exibe nenhum dos sinais que facilitariam - digamos, por exemplo, que o rosto está mais cheio... Mais carnudo... Arredondado pelos anos. Mas, com pouquíssimas exceções (se forçar um pouco, Peter Frampton e Suzi Quatro vêm à mente), pessoas bonitinhas não têm tanta credibilidade quanto roqueiros angustiados, cheios de raiva e com muita cerveja na cabeça.
Outra dificuldade é que McCartney compõe, canta e produz à maneira do pop. Não que ele queira fazer assim: "Estamos tentando fazer com que soe o mais pesado possível", ele diz. "Mas, às vezes, não dá para conseguir no estúdio a mesma coisa que se consegue ao vivo." Além disso, ele é homem de família - casou-se em 1969 com Linda Eastman, que adotou seu sobrenome. Ele não fica exatamente louvando a mulher, mas ela está lá nas capas dos discos, e está lá no palco. As filhas (Heather, 13 anos, de seu primeiro casamento; Mary, 6; e Stella, 4) costumam ir junto nas turnês do Wings, e esta aqui é organizada em parte para atender a situação familiar. A família McCartney, os integrantes da banda e os auxiliares mais próximos localizam-se em quatro cidades-base (Dallas, Nova York, Chicago e Los Angeles) e viajam a partir delas para as apresentações (31 shows em 21 cidades), a bordo de jatinho particular. Isso economiza em hotel, aeroporto e o desgaste geral, e mantém a família junta. Mas um fotógrafo que está acompanhando a turnê considera essas idas e vindas limitantes. "Até agora estou fotografando imagens arquitetônicas, mais prédios. Eles não saem muito, para dizer a verdade", ele diz.
E, finalmente, nada - nenhuma nova banda que ele seja capaz de criar - pode concorrer com os Beatles. Disso ele sabe bem e, como aconselhou com muita paciência a um jovem repórter da rede de televisão NBC: "Talvez isto aqui não seja os anos 60, mas nada mais é os anos 60, a não ser os livros de história. Estamos nos anos 70, e é bacana e está rolando. E é só que... aproveite bem". McCartney e a mulher e a banda aguentaram seis anos de críticas e mal-entendidos. Eles se consolam apenas com os compradores de discos e músicas como "Hi Hi Hi", "My Love", "Helen Wheels", "Jet", "Band on the Run", "Junior's Farm", "Listen to What the Man Said" e "Letting Go" venderam milhões. Isso sem mencionar sete álbuns, cinco com o nome de Wings. Mas o sucesso comercial - o maior e mais consistente entre todos os ex-beatles - não basta. O músico diz que ignora as críticas: para cada golpe, ele explica, tem alguém que adora as coisas dele. Ele se refestela lembrando aos repórteres como o crítico Richard Goldstein destruiu Sgt. Pepper. Mas ele não é casca grossa, de jeito nenhum, a ponto de escrever "Silly Love Songs", uma resposta ao desprezo por sua música, como se fosse só bobagem pop. E Linda há muito tempo é maltratada, relegada à posição de uma groupie que tirou a sorte grande em seu tempo de fotógrafa na cena do Village e do Fillmore, em Nova York. Como musicista e integrante do Wings, foi desprezada como uma... sortuda - e dá para entender por que ela fica na defensiva.
Você lê esta matéria na íntegra na edição 50, novembro/2010
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