terça-feira, 3 de agosto de 2010

O Bem Amado


Versão cinematográfica de novela dos anos setenta perde em crítica e ganha em humor nas mãos de Guel Arraes.

A década é outra. A realidade passou por grandes mudanças. O Brasil cresceu em diversos âmbitos. Mas impressiona como a alegoria utilizada na novela setentista da Rede Globo ainda é bastante atual. Sabido dessa condição, Guel Arraes decidiu fazer sua versão cinematográfica da obra, apropriando-se da genialidade do texto original de Dias Gomes para criticar e tirar sarro do universo político brasileiro. Nasceu, então, “O Bem Amado”. Os personagens continuam os mesmos, assim como a história protagonizada pelo inesquecível Odorico Paraguaçu. O que mudaram foram os tons. Arraes retira um pouco da sátira e acrescenta mais humor a sua trama, perdendo em importância fílmica, mas ganhando em entretenimento.

Estamos na pequena Sucupira, cidade interiorana da Bahia. O reivindicado prefeito acaba de ser assassinado em seu próprio gabinete pelas mãos do desconhecido matador Zeca Diabo (José Wilker). Eleições se seguem até que o político da situação Odorico Paraguaçu (Marco Nanini) assume o cargo. Dono de vocabulário particular e morais questionáveis, o atual prefeito logo dá início a sua principal promessa de campanha: “o construimento do cemitério municipal”, como ele mesmo diz.

A obra fica pronta, mas um pequeno “fenômeno” na localidade impede que ela seja inaugurada. O problema é que ninguém, durante meses, morre na cidade. A situação irrita Odorico, assim como a oposição, representada pelo comunista Vladimir (Tonico Pereira), que exala, nas páginas do jornal A Trombeta, críticas ao seu governo. Tendo de lidar com a falta de colaboração do destino, o prefeito procurará diversas artimanhas para abrir as portas do cemitério e justificar os altos gastos efetuados.

Responsável por longas-metragens como “O Auto da Compadecida” e “Lisbela e o Prisioneiro”, o diretor Guel Arraes transforma “O Bem Amado” em uma obra tipicamente sua. Estão lá a comicidade eficiente, os personagens caricaturais, a trilha sonora cantada e a história absurda que caracterizam seu cinema. O texto original, porém, traz em suas principais pretensões a crítica social, e desde o início do filme, Arraes esclarece que não a deixará de lado.

O problema é que o roteiro do próprio Arraes, em colaboração com Cláudio Paiva, peca pelo excesso de didática. Desde a abertura até o desfecho, alusões a situação política corrente do país são feitas, sempre comparando-a ao momento de turbulência vivido pela fictícia Sucupira. Deixar a trama falar por si mesma seria mais apropriado e inteligente, além de ser absolutamente desnecessário datá-la, já que estamos diante de algo atemporal. Cortar núcleos e sequências que pouco se relacionam com a proposta satírica também seria adequado, com destaque para o envolvimento amoroso entre os personagens de Caio Blat e Maria Flor.

Como peça cômica, no entanto, a película é extremamente bem sucedida. Tanto que não seria exagerado dizer que estamos diante do filme mais engraçado do cineasta. São cerca de 110 minutos de intensas risadas que exploram principalmente o dom da retórica e do “invencionismo vocabular” de seu protagonista. Odorico Paraguaçu é um político dos mais corruptos, que admite desviar verbas, mas justifica da forma mais absurda suas atitudes. Odiado por seu povo, entretanto, ele é o principal atrativo para o espectador do longa.

Entre atos pouco dignos, o prefeito tem de enfrentar a fúria da oposição, encabeçada por Vladimir, tratado pelo roteiro como alguém de visão democrática, mas que perde a ética facilmente ao tentar fazer suas reivindicações reverberarem. Um acerto que prepara a história para um fim emblemático, cheio de contradições, sem medo de escolher o politicamente incorreto, e se encaixando perfeitamente neste Brasil em que vivemos, onde o poder parece contaminar.

Em termos narrativos, o filme é afetado por um problema típico de uma adaptação de uma novela para o cinema. São tantos fatos em tão pequena duração que alguns são atropelados, não deixando explicação para a audiência. Além disso, Guel Arraes deixa para os personagens identificarem a passagem de tempo, o que acaba por prejudicar o desenvolvimento da história. Em “O Bem Amado” é normal uma cena ser seguida de outra, mas estarem afastadas por meses de distância. Arraes parece respeitar demais o texto de Dias Gomes e termina comprometendo a sua versão. Condensá-lo seria o ideal.

Em um longa da Globo Filmes, voltamos a ver os atores da emissora desfilarem no cinema. E talvez justamente pela linguagem novelesca que a direção de Guel Arraes traz, o elenco está um espetáculo. Marco Nanini é um show a parte, com trejeitos exagerados e verborragia inspirada. Pode até nem ser tão genial quanto Paulo Gracindo (que interpretou o personagem na novela), mas faz um trabalho digno dos mais altos elogios. E se Tonico Pereira está em atuação acima do tom, José Wilker faz de seu Zeca Diabo um homem assustador e engraçado, sem desempenhar o menos esforço. Deve-se destacar ainda as interpretações de Zezé Polessa, Drica Moraes e Andréa Beltrão como as espevitadas irmãs Cajazeiras.

A trilha sonora composta por canções de Caetano Veloso e Zé Ramalho complementa o universo mais cômico do que satírico de “O Bem Amado”. Diante de falhas evidentes, o filme consegue deixar suas mensagens graças ao bom trabalho de Arraes e, principalmente, ao material original. Aos que desconhecem a trama por completo, vale a pena ir ao cinema e curtir as falcatruas realizadas por esse protagonista tão icônico. É divertimento na certa.


NOTA: 7,0

Darlano Didimo

cinemacomrapadura.com.br

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