Renato Luiz Pucci Jr., 50 anos, lançou em 2009, pela Editora Sulina, o livro Cinema Brasileiro Pós-Moderno – O Neon-Realismo, tese de doutorado, defendida em março de 2003, na USP. O objeto do trabalho de Pucci é pensar o cinema brasileiro pós-moderno a partir da chamada trilogia paulistana da noite, formada pelos longas-metragens "Cidade Oculta" (1986), de Chico Botelho, "Anjos da Noite" (1987), de Wilson Barros, e "A Dama do Cine Shanghai" (1988), de Guilherme de Almeida Prado.
O professor do Mestrado em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná já teve outro livro lançado, “O Equilíbrio das Estrelas – Filosofia e imagens no cinema de Walter Hugo Khouri” (Annablume, 2001), em que tratava do cineasta paulista Walter Hugo Khouri.
Em entrevista para o Cinequanon, Renato Luiz Pucci Jr. fala de seu novo livro, discute sobre a importância da revisão crítica do cinema brasileiro, o cinema pós-moderno, o neon-realismo e a trilogia paulistana da noite.
(Entrevista realizada por Gabriel Carneiro)
Como é o processo de transformar a tese acadêmica em livro?
É mais complicado do que pode parecer. Em primeiro lugar, porque é preciso muito tempo para fazer mudanças no original, tempo que eu não tive logo após a defesa da tese. Além disso, é preciso entender as regras das editoras: muitas não aceitam livros cuja origem tenha sido um trabalho acadêmico; outras aceitam, porém, nada muito grande e complexo. Eu tive que cortar dois capítulos da tese, aqueles em que eu analisava outros filmes pós-modernos, do Rio de Janeiro, do Nordeste, etc. O lado bom é que o livro ficou mais focado, mais centrado em filmes específicos, o que resultou em maior clareza da análise. Outra preocupação comum acerca da passagem de uma tese para o formato de livro é a linguagem acadêmica, às vezes tão rebuscada que não pode ser lida a não ser por meia dúzia de especialistas. Por isso, muitos autores precisam re-escrever a tese para publicá-la, o que dá um trabalho imenso. Isso não foi problema para mim, porque sempre tive o ideal de ser compreendido por qualquer pessoa interessada em meus textos, sejam acadêmicos ou não.
Por que esse interesse pelo cinema paulista (primeiro Walter Hugo Khouri, depois a trilogia da noite)?
Apesar de eu ter nascido e vivido muito tempo em São Paulo, não houve bairrismo. Os filmes de Khouri me chamaram a atenção pelo seu aspecto filosófico, algo que me interessa desde a juventude, tanto que fiz minha graduação em Filosofia. A trilogia paulistana é um dos vários casos de pós-modernismo no cinema brasileiro, ou seja, filmes com características não existentes no Brasil, ao menos até o final dos anos 70. Acontece que a trilogia apresenta essas características de forma mais clara do que, por exemplo, “Um Trem para as Estrelas”, de Carlos Diegues, que não podia deixar de ter uma cena na favela do Rio de Janeiro, cena que nada tem de pós-modernista. Em filmes como esse, há certa mistura de características que, julguei, poderia ser prejudicial à minha análise. Além disso, já nos anos 80, a crítica reconheceu a especificidade da trilogia, de modo que seria mais fácil tomá-la como modelo de um estilo tão polêmico como o pós-moderno, o que não seria tão simples com filmes de Arnaldo Jabor, Carlos Diegues e outros, que têm um passado cinemanovista. Enfim, não me importava em que estado ou cidade os filmes haviam sido feitos, mas o que eu via neles de diferente e o fato de que constituíam um campo de pesquisa. No fundo, o que me interessa é o cinema brasileiro. Ainda espero lançar um livro sobre o cinema pós-moderno realizado em outras regiões do país.
O objetivo desses trabalhos é uma revisão crítica de um cinema mal-visto pela crítica e academia em geral? Por quê?
Espero que meu livro ajude a efetivar uma revisão crítica do cinema brasileiro. Ocorre que a história do cinema brasileiro ainda é muito mal contada. Basta dizer que o livro “Brazilian Cinema”, editado nos Estados Unidos, com vários autores brasilianistas e a fina flor da universidade brasileira, dedica cinco linhas aos filmes de Khouri e outro tanto aos de Anselmo Duarte, que fez nada menos do que “O Pagador de Promessas”, além de ter sido um astro de cinema dos anos 40 e 50. Isso num livro de quase 500 páginas. Em poucas palavras: o brilho de alguns filmes cinemanovistas ofuscou tudo o que havia em volta. Randal Johnson, um dos organizadores daquele livro, e autor de vários capítulos, teve a admirável atitude de fazer um mea culpa em público, quando veio ao Brasil em 2002, ao dizer que, apesar do título, o livro fala apenas de uma fração do cinema brasileiro. Entretanto, a crítica, acadêmica ou não, ainda escreve, às vezes, como se mais nada existisse além dos filmes que elegeu como bom cinema. Felizmente, há cerca de 6 ou 7 anos têm surgido vários pesquisadores que estão tirando de baixo do tapete uma infinidade de filmes brasileiros que estavam esquecidos. É nessa luta que entra meu livro, em que procuro dar a dignidade de objeto de pesquisa a filmes que deveriam ser memoráveis por mais de um motivo.
Por que os filmes analisados são pós-modernos?
Entendo o pós-modernismo como uma ampla formação cultural, de alcance internacional, em que certos princípios deixam de ser acatados devido à cristalização ou estagnação do modernismo. É o caso da busca da originalidade, que animou artistas incessantemente a partir, pelo menos, do início do século XX. Em algum momento da virada dos anos 50 para a década seguinte, começa a entrar em crise o ideal de originalidade como um objetivo a ser perseguido a qualquer preço, e, por consequência, outros caminhos foram buscados por arquitetos, escritores e artistas plásticos. Alguém teve a presença de espírito de chamar um desses caminhos de “pós-moderno”. No cinema, por algum motivo, tudo se deu tardiamente: ainda houve o notável cinema moderno dos anos 60 - e o pós-modernismo cinematográfico somente se tornou uma corrente significativa no princípio dos anos 80. É nessa trajetória que se insere o cinema brasileiro pós-moderno. Ismail Xavier diz que o cinema brasileiro moderno acabou com “Memórias do Cárcere”, de Nelson Pereira dos Santos, de 1984. Estavam esgotados aqueles ideais, apesar da sobrevida que alguns lhe atribuem. A nova geração não poderia ficar improdutiva. A trilogia paulistana da noite é um dos frutos da busca de outras maneiras de fazer cinema no país.
Qual o critério para selecionar o chamado cinema pós-moderno? Como chegou aos títulos?
Meu trabalho não partiu de uma definição de pós-modernismo para depois apenas ter o trabalho de rotular os filmes. Ao contrário, eu ficava intrigado com alguns filmes brasileiros que não se ajustavam às descrições teóricas de cinema clássico ou cinema moderno. Quero dizer que não eram filmes que buscavam o “parecer real” da narrativa clássica, que se vê na imensa maioria do que se faz no Brasil até hoje, como “Cidade de Deus” ou “Carandiru”; mas também me intrigavam por não se ajustar aos parâmetros do cinema moderno, ou seja, não buscavam a autenticidade, o sentido autoral, a originalidade. As análises comparativas que fiz no livro, entre a trilogia e filmes de Carlos Manga, Khouri, Glauber Rocha e Julio Bressane, mostram o caminho que fiz até definir o que diferencia a trilogia dessas outras formas de fazer cinema.
Por que a escolha do chamado neon-realismo?
Essa expressão, neon-realismo, já circulava pela crítica nos anos 80, para se referir a filmes como “O Fundo do Coração”, de [Francis Ford] Coppola, ou “Diva – Paixão Perigosa”, de [Jean-Jacques] Beineix. Eu decidi assumir a expressão porque, a meu ver, ela diz muito dos filmes que analiso. É claro que naquela época havia certa jocosidade, pela lembrança do neo-realismo italiano, porém me interessa mais a combinação de neon, que era a marca visual da trilogia, uma luz que sugere efemeridade ou artificialismo, além de um certo tipo de relação dos filmes com o contexto extra-fílmico, isto é, com o chamado mundo “real”. Não eram realistas no sentido habitual da palavra, mas faziam referências indiretas ao mundo em que foram criados.
O foco de seu último livro é a trilogia da noite, formada por Anjos da Noite, Cidade Oculta e A Dama do Cine Shanghai. Você acha que o aspecto criativo nesses filmes é o uso quase excessivo do metacinema para recriar em cima disso? Por quê?
Uma parte importante da criação desses filmes é feita com recursos de metacinema, isto é, são filmes que falam do próprio cinema. Não creio que seja um uso excessivo. Alguns dos grandes cineastas modernos também realizaram metacinema, como, por exemplo, [Jean-Luc] Godard em “O Desprezo”. A diferença está em que a trilogia combina a auto-reflexão com uma tentativa de não perder a comunicação com o grande público. Então, na trilogia se sucedem elementos familiares a esse público, alternando-se com cenas como a da simulação da queima da película no projetor, como ocorre no final de A Dama do Cine Shangai. A incontáveis referências intertextuais a outros filmes, também se processa no mesmo sentido: há o familiar ao público, ou a uma parte variável dele, mas também existe o distanciamento frente aos filmes originais, por meio da paródia lúdica, que é uma forma de recriação.
Como se dá a reflexão do cinema, pelo cinema, na trilogia paulistana da noite?
Há dois aspectos: a metalinguagem, de que já falei, e a acentuada e explícita intertextualidade. Na medida em que a trilogia se constrói a partir de infinitas referências a filmes antigos, de certa maneira realiza uma reflexão sobre o cinema do passado. Recupera-o, incorpora-o à textura fílmica, sempre fora do contexto original, o que faz saltar aos olhos a distância entre o presente e o passado. Um exemplo: a abertura de A Dama do Cine Shanghai é um trecho complexo, em que o personagem de Antônio Fagundes vai a um cinema, assiste a um filme noir, com crime, traição e mulher fatal, interpretada pela Maitê Proença. Na plateia, o personagem se envolve com uma desconhecida, também interpretada pela mesma Maitê Proença. Há uma duplicação de elementos do filme dentro do filme naquela plateia, o que faz sobressair o fato de que assistimos a um filme dentro do qual há outro que, por sua vez, simula um “noir clássico”.
São, dessa maneira, formadores de uma nova memória cinematográfica brasileira?
Se entendi bem a questão, eu diria que a trilogia paulistana, assim como todos os demais filmes brasileiros pós-modernos, constituem um elo com o passado do cinema. Ao contrário dos filmes modernistas, que procuram apagar a memória do passado (com exceção daquela relacionada ao cânone modernista: vanguarda soviética, neo-realismo, Nouvelle Vague e pouco mais), o cinema pós-moderno opera virtualmente com toda história do cinema, do período mudo ao contemporâneo. Infelizmente, a trilogia faz pouca referência ao cinema brasileiro moderno. Há uma menção discreta a “O Bandido da Luz Vermelha” em A Dama do Cine Shangai, e pouca coisa mais. Talvez isso tenha acontecido por questão de sobrevivência, pois, em vista do alto prestígio do “Cinema Novo” e afins, qualquer paródia a “Deus e o Diabo” ou a “Matou a Família e foi ao Cinema” resultaria com certeza em ataques ferozes da crítica.
O uso da farsa, do “fake”, é um jeito de apreender a complexidade do cinema brasileiro e reproduzi-la de forma irreverente? Por quê?
Penso que “fake”, isto é, aquilo que nos filmes surge como acintosamente falso, é uma expressão mais adequada do que farsa, que remete a outro tipo de construção. O “fake” no cinema pós-moderno é um elemento bem-humorado, de ruptura do ilusionismo do cinema clássico. Em vez de continuamente procurar o “parecer real”, os filmes pós-modernos alternam elementos típicos do cinema clássico, como o uso de campos e contracampos (em que, de ângulos opostos, se veem ora o rosto de um personagem, ora de outro), com elementos que rompem o ilusionismo. Quando, por exemplo, em A Dama do Cine Shanghai, acontece o assassinato do marinheiro, a cena é “fake”, pois simula cenas semelhantes de filmes policiais, com um toque de ironia.
Por que esses filmes acabam se utilizando de vários elementos do cinema policial e “noir” dos filmes americanos? Qual a relação desse cinema com o nacional?
Guilherme de Almeida Prado disse certa vez que o estilo “noir”, por esconder parte do cenário nas sombras, era o mais adequado a produções de baixo orçamento, como as dele próprio. Talvez seja um bom motivo, pois então se escondia a precariedade dos cenários. No entanto há algo mais: um encantamento por aquele cinema que mexia e ainda mexe com a imaginação do público. Tramas complexas, mistério, luz contrastada, sombras, um mundo noturno em que ninguém seria confiável – essa combinação fascinante causou admiração aos cineastas pós-modernos não só do Brasil, como Wim Wenders, que fez “Hammett – o Falcão Maltês”, em 1983, diretamente inspirado nos filmes “noir”. É sempre importante ressaltar que o cinema pós-moderno brasileiro não utilizou elementos apenas do “noir”, mas também de outros gêneros ou subgêneros cinematográficos, como o musical americano, haja vista a estupenda cena de Anjos da Noite em que as personagens de Marília Pera e Guilherme Leme dançam sob o MASP, numa paródia lúdica de uma cena de “A Roda da Fortuna”, de Vincent Minelli, em que dançavam Fred Astaire e Cyd Charisse. Em ambos os casos, não há uma relação subserviente em relação ao original estrangeiro, apesar do evidente encantamento, tanto que essas apropriações se dão na forma de paródias lúdicas, respeitosas, mas que também brincam com o original.
O fato de José Roberto Eliezer ser fotógrafo dos três filmes é apenas uma coincidência ou é central para pensar esses filmes como néon-realismo/pós-moderno?
Não é coincidência, de maneira alguma. Eliezer era quem melhor dominava aquela iluminação que fazia o filme parecer um “noir” colorido, cheia de sombras, de luz azulada da noite, que dava uma tonalidade irrealista a tudo o que era banhado por ela, ao mesmo tempo quente (pela preferência por cores quentes e chapadas) e fria (devido ao neon). Tanto é assim que Eliezer foi posteriormente chamado a fotografar o primeiro filme brasileiro neon-realista dos anos 90, “A Grande Arte” (Walter Salles, 1991).
Por que há um certo senso de que o filme “alienado” é vazio, despropositado de sentido?
Se essa pergunta significa que filmes que não têm um caráter político evidente são vistos como vazios e sem sentido, então eu diria que isso decorre de uma tendência de parte da crítica a só dar valor ao que atende aos próprios interesses políticos. Se o sujeito trabalha a semana inteira, está estressado e precisa de um pouco de diversão para aguentar a próxima semana, ele deve assistir o quê: “Terra em Transe”? Esse filme não foi feito para atender a esse objetivo, vai estressar ainda mais o espectador, e duvido que, nessas condições, o esclareça sobre qualquer coisa. Além disso, e principalmente, a política no Brasil foi durante muito tempo algo que dizia respeito exclusivamente à luta de classes. Então, se o filme não mostrava a exploração do trabalhador ou a favela e a miséria da seca, supostos frutos da luta de classes, então atirava-se contra o filme esse adjetivo-chavão dos anos 60 e 70: “alienado”.
Para você, esses filmes são “alienados”?
Há outras lutas políticas além da que, há quase 50 anos, defendia o “Cinema Novo”. Hoje em dia, há a luta das minorias e a luta ambiental, por exemplo. Um dos filmes que eu analiso no livro, Anjos da Noite, tem como um de seus aspectos mais poderosos a representação de homossexuais, sem estereotipá-los, mesmo porque há uma dezena de personagens homossexuais no filme, cada qual diferente do outro, vários deles muito positivos. Na cena que está na capa do livro, o personagem travesti faz um discurso irado contra a repressão. É preciso lembrar que nos anos 80 não havia passeatas com dois milhões de pessoas na Avenida Paulista: ao contrário, falava-se de “peste gay” para fazer referencia à AIDS, como se a doença fosse “privilégio” desse grupo social. Em Cidade Oculta, há uma denúncia da corrupção policial. Em “Quilombo”, de Carlos Diegues, mostra-se a escravidão e a resistência a ela. Se nem sempre essas questões se ligam à “realidade socioeconômica”, isso não significa que sejam vazias. Em resumo, filmes pós-modernos podem ser politizados, à sua maneira.
Onde está a beleza desses filmes que escolheu para sua tese?
Em termos estéticos, a beleza preenche cada uma das cenas dos três filmes. Tudo é feito com um cuidado e um brilhantismo que enchem os olhos. Como exemplo, eu ressaltaria de Cidade Oculta a ronda noturna do delegado Ratão, ao som do “Poema em Linha Reta”, de Fernando Pessoa, cantado por Arrigo Barnabé. De Anjos da Noite, recordo a cena em que o reflexo de uma das torres da Avenida Paulista sobe o para-brisa do carro, esvoaçando sobre o rosto da personagem de Marília Pêra. Filmes pós-modernos buscam a estetização, mas é bom deixar claro que não se trata de arte pela arte. Já mencionei a política de alguns desses filmes. Posso citar, também, que os filmes pós-modernos são constituídos de maneira que o espectador experimente o encanto de cenas como aquelas e, paradoxalmente, sinta que o efeito é quebrado por meio de recursos de metacinema, ou pelo uso do “fake”, ou de rupturas de linguagem.
Esses filmes são únicos na cinematografia brasileira? Por quê?
A trilogia paulistana e outros filmes do neon-realismo podem ser considerados únicos no sentido de que não se confundem com filmografias nacionais realizadas segundo outras propostas de realização, apesar de se apropriar de traços de todas elas. Basta ver alguns fotogramas de qualquer filme da trilogia para que seja percebida a sua especificidade visual, frente às produções clássicas ou modernas. Outro tanto se pode dizer sobre o tratamento sonoro, o roteiro e os demais aspectos de criação. Espero que o meu livro ajude os leitores a perceber o alcance dessa diferença.
Gabriel Carneiro é colaborador do Cinequanon. Cursa a faculdade de jornalismo Cásper Líbero e edita a revista da internet, "Zingu!". |
Nenhum comentário:
Postar um comentário