sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

O CINEMA DE JACQUES NOLOT



O sexo que não excita

Por Heitor Augusto

Um filme de Jacques Nolot é, no mínimo, dois socos na boca do estômago, um gancho de esquerda no queixo e uma porrada no meio do olho. Nocaute. Uma experiência aprazível do ponto de vista cinematográfico, mas um mergulho, nem sempre confortável, na desesperança. Semelhante a escutar o Quarteto para Helicópteros ou o Kontakte de Stockhausen: dolorido tesão estético.

Fico me perguntando como seria para um heterossexual assistir a Avant que J’oublie ou La Chatte a Deux Têtes. Não por que seus filmes têm romance, flerte ou sexo entre dois homens. Não está aí a especificidade, pois, lembremos, O Segredo de Brokeback Mountain, não teve sua boa ou má recepção condicionada à transa entre Ennis Del Mar e Jack Twist. Afinal, a concretização do desejo era apenas um pretexto para um enredo calcado no arquétipo shakespeariano do amor proibido.

Falar do amor homossexual já não é, no cinema, uma anomalia, como fora nos anos 1950 – lembram-se do close-up nos olhos de Simone e Morini em Rocco e Seus Irmãos? Milk ganhou Oscar, assim como Filadélfia – ambos de atuação, é bem verdade –, C.R.A.Z.Y. – Loucos de Amor emocionou plateias além do Canadá. Pedro Almodóvar é reverenciado por milhares de espectadores.

Talvez seja mais tabu falar do desejo do que do amor. Do ser gay, não do descobrir-se gay. Mais difícil materializar (Romance, de Bianchi) que abstrair (Morte em Veneza, de Visconti).

Mas qual é o nocaute do cinema de Nolot? A falta de maquiagem, sem dúvida alguma. Se algo é, é. E fim de papo. Não se desvia, escapa ou atenua. Pensemos na maravilhosa obra de Almodóvar. Nela, os temas são mais chocantes que seu tratamento cinematográfico. Fala-se de estupro, amor, incesto, família, drogas, travestis, homossexuais, desejo, amor. Mesmo assim, o corpo masculino em seus filmes raramente é explorado na máxima capacidade de suas potências sexuais – a única exceção é A Lei do Desejo.

Na obra de Almodóvar, o corpo e seus desejos têm uma embalagem de produto de boutique, enquanto nos filmes de Nolot é de loja de R$ 1,99, ponta de estoque que não esconde as imperfeições ou uma costura mal acabada. Não se trata de criar uma falsa polarização defendendo, apenas sob este critério, quem é o melhor. O fato é que são duas manifestações cinematográficas que se completam. É como se precisássemos ver, após uma sessão de Almodóvar, um filme de Nolot.

Cinema Pornô
Verdadeira missão de herói é encontrar alguma produção do cineasta/ator francês no Brasil, onde nenhum de seus três longas foi lançado em circuito ou DVD. O mais recente, Avant que J’oublie (Antes que me Esqueça), passou na Mostra em 2007 e é possível ser encontrado na internet para download em qualidade razoável. Já La Chatte a Deux Têtes (A Buceta com Dois Pintos, que nos festivais lá fora passou como Porn Theatre) só existe em cópia VHS na Amazon e em algumas ultraseletas comunidades que compartilham filmes.

Ambos os filmes tratam da escuridão. Em La Chatte a Deux Têtes, de 2002, ela é o tema e a ambientação. Acompanha-se um dia ordinário de um cinema pornô frequentado apenas por homens. Ao longo da história, seguimos diversos personagens, todos na escuridão da sala de cinema, enquanto é projetado algum filme erótico que leva o mesmo nome do longa ao qual assistimos. Gemidos de mulheres e de homens dão ritmo musical ao filme.

Entre tantos rostos anônimos, um se destaca: um senhor que aparenta 55 anos, magro, bigode fino (daqueles que víamos nos anos 1930), olhar vago e sem destino. Também se destacam um garoto, que descobriremos ser projecionista do cinema, e a bilheteira, que saberemos ser proprietária do local, dotada de um senso de humor apuradíssimo – e um cinismo tão intenso quanto.

Pode parecer exagero, mas desde Querelle, de Fassbinder, não víamos um grande realizador tratar o sexo gay de maneira tão tosca, direta. Para Nolot, ele é moeda de troca ou ferramenta de sobrevivência, podendo apenas ocorrer em situações proibidas, fugazes, que não impliquem envolvimento algum. Não digo nem um relacionamento emocional, mas um gesto banal como olhar no olho. Olha-se para baixo, para os lados, para a tela de cinema, fecha-se o olho. Encarar quem está à sua frente na cena sexual, jamais.

Símbolo de uma geração que cresceu oprimida. Se Eu Não Quero Voltar Sozinho é solar, La Chatte a Deux Têtes é obscuro, tão gueto quanto os versos cantados por Agnaldo Timóteo numa das canções mais “armário” da música brasileira: “Numa noite de insônia eu saí/ procurando emoções diferentes/ na galeria do amor eu parei/ onde a gente que é gente se entende”.

Catando migalhas
La Chatte a Deux Têtes começa com um céu azulíssimo, o que não deixa de ser um comentário curioso, pois nada do que veremos neste filme remete ao Belo. Depois, assistimos a alguns pombos devorando migalhas na frente do cinema. Num discreto movimento de câmera, relacionamos os pombos àquele cinema, criando uma arrebatadora e desesperadora afirmação: se os pombos comem essa fração de alimento jogada no chão por um desconhecido, esses homens se satisfazem com qualquer possibilidade de sexo que aparecer, aceitando as migalhas de uma transa.

O que enfraquece este filme em relação ao outro de Nolot é o desenho caricato dos personagens, limitação inerente a La Chatte a Deux Têtes. Afinal, em 90 minutos aparece uma série de tipos muito comuns: o homem que se traveste ocasionalmente, o que finge ser hétero e repele qualquer contato, o que transa com outro homem como se estivesse com uma mulher, a bicha velha tristonha, a travesti que se coloca como objeto.

Em vez de desenvolver um a um, Nolot usa travellings profundamente tristes que equipara a todos: são homens que não aprenderam a amar na luz do dia. No fundo, La Chatte a Deux Têtes excita e deprime, assim como qualquer cinema pornô, seja ele o Cine Atlas de La Pigalle, na França, ou o Cine Dom José, em São Paulo. Nolot não usa maquiagem para mostrar isso.

 
O sexo que brocha

Se em seu segundo longa-metragem Jacques Nolot recorre aos travellings para afirmar a solidão de um local lotado, em Avant que J’oublie é a vez dos planos longos nos permitir penetrar a alma de Pierre Pruez (vivido pelo próprio diretor). Assistimos a um ex-michê cujas relações se resumem a transar com outros michês ou conversar com amigos que contratam os serviços de michês.

Uma espiral de relações escusas. Amar? Isso é papo para outro filme, porque em Nolot os personagens não amam, apenas têm desejos e, no máximo, criam uma relação de respeito surgida com o tempo. Pierre fala a todo momento de Toutoune, seu ex-cliente, com quem transou por 35 anos e criou uma relação bizarra de dependência e ânsia de libertação.

Todos os personagens que transitam pelo filme estão unidos pelo sexo: vivem dele (os michês) ou sobrevivem por causa dele (as bichas velhas). Fala-se dele como um evento tão banal quanto lavar louça. Apesar de a pulsão do desejo e a coragem ao lidar com o corpo aproximar os cinemas de Nolot e Fassbinder, o francês não tem o fetiche do alemão. Nolot trança o braço direito no ombro do espectador e diz “deixa eu te mostrar o quão triste é a vida de um gay velho”, enquanto Fassbinder convida o público a compartilhar, em um filme como Querelle, as fantasias do sexo.

Em vez de excitar, o sexo em Avant que J’oublie broxa. Sem glamour e maquiagem, música ou projeções. Tudo isso condensado no plano final, tristíssimo, transpirando decadência e desesperança. Barra pesada. 

Obra-prima.

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