Retrospectiva Elia Kazan
Quem se importa com a presença de um ator em cinema, gosta de Elia Kazan. Quem não se importa, aliás, deve preferir outra coisa, videoarte, por exemplo. Nunca o cinema. É inegável que Kazan é um dos maiores diretores de atores que o cinema já conheceu. Basta ver qualquer um dos filmes exibidos na 35ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo para comprovar a excelência de atores como Marlon Brando, Karl Malden, Lee J. Cobb, Dana Andrews, James Dean, Vivien Leigh, Warren Beatty, Eva Marie Saint, Jo Van Fleet e muitos outros que fizeram boa parte de seus melhores trabalhos com o diretor “turco de sangue grego”, como ele mesmo se definia. Kazan é um dos fundadores do Actor’s Studio, espécie de escola e organização para atores iniciada em 1947, que trabalhava com o método de interpretação proposto por Stanislawski. Os atores acima são alguns dos que participaram desse empreendimento, enriquecendo suas fileiras com dedicação, muito treino e talento.
A habilidade de Kazan com as atuações vinha de antes da fundação do estúdio, antes mesmo de sua estreia no cinema, em 1945. Sua experiência no teatro, desde os anos 1930, permitiu que entendesse as motivações e caprichos dos atores. No primeiro filme, Laços Humanos, há uma direção de atores invejável. Traz Dorothy McGuire, James Dunn e Peggy Ann Warner, atores que interpretam, respectivamente, a mãe, o pai e a filha mais velha da família que vivem numa pobre habitação do Brooklyn. Esse tipo de atuação incentivado por Kazan não se furta de nos levar ao choro. De fato, é preciso ser muito frio para não se emocionar com os desarranjos dessa família em que todos tem suas razões, seus sonhos e suas deficiências. Assim como é difícil não admirar a composição de Miss Em no surpreendente O Que a Carne Herda (mais conhecido como Pinky, 1949, e ausente da retrospectiva), que Kazan herdou de John Ford, adoecido depois de poucos dias de filmagem. Ethel Barrymore compõe uma moribunda cativante, principal catalizadora da tomada de consciência de Pinky, moça de sangue negro e aparência branca que volta ao sul após ter se formado como enfermeira. Não esqueçamos, ainda, que Natalie Wood teve sua maior atuação no cinema pelas mãos de Kazan, em Clamor do Sexo, e que Jo Van Fleet arrasou interpretando personagens bem mais velhas que ela em Vidas Amargas e Rio Violento. Kazan era sobretudo um excelente diretor de mulheres. Personagens femininas, mesmo quando no roteiro tinham papel secundário, tornam-se mais importantes no momento da filmagem, como aconteceu com Eva Marie Saint em Sindicato de Ladrões. Ela é a responsável pela reabilitação do personagem de Marlon Brando. Também aconteceu com Julie Harris em Vidas Amargas. Ela despedaça os corações de dois jovens irmãos e possibilita a redenção final do mais rebelde (interpretado por James Dean). Não podemos esquecer da performance inesquecível de Vivien Leigh em Uma Rua Chamada Pecado. Como a encantadora desvairada que não assume a ação do tempo em seu corpo, misto de Norma Desmond em Crepúsculo dos Deuses com as futuras heroínas de Uma Mulher Sob Influência e Fedora, Leigh está à altura de um monstro irresistível como Marlon Brando, com quem contracena. Também não dá para esquecer a Baby Doll de Kazan: Carroll Baker em Boneca de Carne.
Um sublime diretor de atores, certo. Mas não só. Os filmes de Kazan revelam uma mise en scène correta, com movimentos certeiros de câmera, excelente uso de campos e contracampos, e, sobretudo, uma noção de espaço que só os grandes mestres do cinema clássico americano tinham. Em seus filmes, mesmo nos menos felizes (Mar Verde ou A Luz é Para Todos, ambos de 1947), percebemos um senso raro de composição visual e posicionamento dos atores. Seja trabalhando em locações ou em estúdio, Kazan dominava a relação da câmera com os elementos em cena. E é notável como desde seu primeiro filme, Laços Humanos, uma das melhores estreias da história do cinema, há precisão nas angulações, na decupagem e nos movimentos de câmera (como aquele, exuberante, que revela o entorno pobre da região e se aproxima, aos poucos, por uma grua, da jovem leitora entretida no terraço). Mais surpreendente ainda quando sabemos, pelo próprio Kazan, que foi um filme de aprendizado (ele não sabia diferenciar uma lente da outra, por exemplo).
Laços Humanos é uma espécie de Agora Seremos Felizes (Vincente Minnelli, 1944) em negativo. É fotografado em preto e branco suave, que lembra o de Aurora, de Murnau, em contraste com o deslumbrante technicolor de conto de fadas do filme de Minnelli. Os semitons dominam a película de Kazan como que para reforçar que não há bons e maus, algozes e vítimas, vilões e mocinhos na trama, somente pessoas que lutam pela sobrevivência à sua maneira. Em Laços Humanos o tom não é agridoce, mas tristemente realista. Enquanto a berrante obra-prima de Minnelli favorece o sorriso eterno, o de Kazan provoca o choro dissimulado, o entrave na garganta. Emociona sobretudo porque é impossível não se identificar com ao menos um dos personagens. Todos se revelam muito ricos, habilmente construídos para nos tocar em algum ponto, com destaque para Francie, a pequena e genial garota que pretende “aprender todas as coisas do mundo” pegando todos os livros que existem na biblioteca da região; e para o guarda de voz empostada que se aproxima da família Nolan. Este guarda é interpretado por um ator formidável, que carrega o sobrenome dos personagens principais – Lloyd Nolan. Nada disso seria possível se não houvesse uma direção com muita sensibilidade.
O segundo Kazan, Mar Verde, é um dos três filmes que o diretor realizou em 1947, e uma das nove parcerias do casal Spencer Tracy e Katharine Hepburn. Está ausente da retrospectiva da mostra, e não faz tanta falta assim, já que não é o melhor entre os três (O Justiceiro merece tal distinção), nem um dos melhores entre os nove (perde feio para A Mulher do Dia, de George Stevens, e A Costela de Adão, de George Cukor, por exemplo) . Mas há neste western enviesado novas comparações com o cinema de Vincente Minnelli. A história começa em St. Louis, vinte e três anos antes da St. Louis de Agora Seremos Felizes, indo rapidamente para o oeste, para onde vai a protagonista Hepburn ao se casar com Tracy. O estúdio é a MGM em que Minnelli fez quase toda sua carreira. O produtor é Pandro S. Berman, o mesmo de três veículos dirigidos por Minnelli, para os mesmos astros – Correntes Ocultas (1946, com Hepburn), O Pai da Noiva (1950) e O Netinho do Papai (1951), ambos com Spencer Tracy. As ligações param aí, já que o mais próximo que Minnelli chegou do western foi Herança da Carne (1960), que não tem muito a ver com Mar Verde.
O representante de 1947 na retrospectiva é O Justiceiro, imponente história que nos mostra como um procurador pode, movido pelas circunstâncias, agir como advogado de defesa, entortando um processo criminal. O assassinato de um padre move toda a cidade de Connecticut, e Kazan nos mostra, na mesma sequência, ainda no início, tanto o falso culpado quanto o verdadeiro assassino, ainda que nunca diga claramente “este é o homem”, e que não mostre o rosto do assassino na cena do crime. A câmera vai mostrar insistentemente seu rosto na cena do julgamento, quando lembramos que é o mesmo homem que discutia com o padre assassinado no início do filme. É uma brilhante construção promovida por Kazan. O crime, que aconteceu realmente em Connecticut, vai permanecer sem solução, mas Kazan se posiciona mostrando aquele que pensa ser o assassino.
Talvez as maiores ausências da retrospectiva sejam Pânico Nas Ruas (1950) e Boneca de Carne (1956). O primeiro é um policial muito talentoso que lembra Don Siegel. O segundo amplia o interesse de Kazan em driblar o nefasto Código Hays mostrando cenas quentes, de forte sugestão sexual (algo que seria uma constante em seu trabalho desde Vidas Amargas (1955), e culminaria com Clamor do Sexo (1961). Se bem que em Os Saltimbancos (1953) a presença da sempre muito sexual Gloria Grahame deve ter servido para entortar a mente dos censores da época – em uma cena antológica ela desenha com um giz preso entre os dedos do pé umas iniciais na cabeceira de sua cama, exibindo ao mesmo tempo suas pernas, num convite ao deleite visual para o espectador masculino.
Sexo, desejo carnal, enfrentamento dos limites impostos pela censura, são características comuns aos filmes dirigidos por Kazan nos anos 1950, sobretudo na segunda metade. Mas é mesmo em Clamor do Sexo que o Código Hays, já com seus tentáculos enfraquecidos, sofre suas investidas mais atrevidas. No filme, Warren Beatty e Natalie Wood são namorados que ardem de paixão carnal, mas não conseguem enfrentar o conservadorismo da época (fim da década de 1920). As filigranas sexuais kazanianas encontram-se por todo o filme. Em uma cena logo no início, Beatty vai à casa de Wood e tem a chance de ficar a sós com ela em um quarto. A primeira coisa que faz é pedir que ela se abaixe, sugerindo uma vontade de sexo oral, uma maneira de saciar o desejo sem ter a virgindade maculada. Numa outra cena, a moça em fogo vai para a banheira para se acalmar. Quando a mãe entra no recinto encontra-a muito relaxada, com a expressão de quem acabou de se masturbar. No momento imediatamente anterior ao internamento de Wood, ela age como uma verdadeira ninfomaníaca, ansiosa por ter a queimação da virgindade abrandada por uma noite de sexo. Seus lábios explodem de desejo, seu corpo não contém sua volúpia. Mas com essa intensidade, ela causa temor naquele que poderia ser seu deflorador. Os homens não estavam preparados para tanto desejo. Seu colapso mental, que a leva a uma internação numa clínica de repouso, coincide com o colapso econômico ocorrido com a quebra da bolsa de Nova York em 1929, e consequentemente com a falência da família de Beatty.
Clamor do Sexo é também um exemplo de mise en scène. Kazan trabalha muito bem com as portas. Elas se fecham, entreabrem-se ou escancaram-se de acordo com o estado de espírito dos personagens. Representam seus limites, os caminhos possíveis e a chance de resignação ou revolta. Há sempre essa ameaça de revolta, mas é a triste resignação que sobra a esses americanos empobrecidos. A sequência final, de uma tristeza cortante, é emblemática: amaciada pelas normas estúpidas da sociedade, Deanie vai visitar seu antigo amado, encontrando-o casado com uma imigrante italiana simplória, acanhada por estar demasiadamente informal para a visita. Mas Deanie também se acanha por estar demasiadamente elegante, muito além do que seria esperado em uma visita informal. Ali ela percebe que parte dela ficou no passado, na virgindade defendida com camisa de força, nos cadeados morais que cerceiam o espírito e a sexualidade. Ela teria se tornado uma moça exemplar, que agia de acordo com o Código Hays. Por isso podemos dizer que Kazan nos mostra personagens que tentam se libertar do maldito Código, mas terminam aprisionados por ele. Curiosamente, a história se passa nos anos imediatamente anteriores ao Código (entre 1928 e 1932, mais ou menos, enquanto o código começaria a vigorar em 1934).
Portas (abertas, fechadas ou entreabertas) existem também em outra obra-prima, lançada um ano antes: Rio Violento. Aqui não é incomum a aparição do personagem de Montgomery Clift entrevisto pelo vão de uma porta parcialmente aberta, emoldurado por batentes e destacado pela arquitetura da cena. Kazan, homem de teatro, faz do cinema o território do enquadramento – algo que ele fez como poucos – e enreda muito bem seus personagens numa ambiência por vezes claustrofóbica, por outras reveladora do esplendor da natureza (por sinal, um dos motivos célebres de Kazan é a natureza humana que se recusa a ser represada, no que a fala de Jo Van Fleet é emblemática: “sou contra todas as formas de represa”). Rio Violento é muito mais contemplativo e hipnótico do que qualquer outro Kazan. Parece ter maior sintonia com o que era feito por cineastas europeus como Bergman, Wajda, Antonioni e Visconti, mas também com o cinema japonês de Mizoguchi e Kurosawa. De fato, se pudermos fazer uma comparação entre Mizoguchi e Kazan, é neste filme estupendo que ela se cristaliza com perfeição, pela força da natureza interagindo com os personagens, pela preocupação em deixar que o movimento da câmera dependa do movimento do ator, e pela discrição ao mostrar o sofrimento humano. Rio Violento é também a antítese de Um Rosto na Multidão, o filme anterior. Três anos separam os dois filmes. (No intervalo, Kazan se dedicou ao teatro).
Em Um Rosto na Multidão, o preto e branco reflete o maniqueísmo da história. E quem é contra maniqueísmo não consegue captar a crítica feroz e ainda atual que Kazan faz do mundo da
televisão. Rio Violento não é maniqueísta, pelo contrário: mostra um mundo em que todos têm suas razões. É filmado em scope, para não represar a natureza, e em cores, para captá-la em toda sua beleza. Kazan consegue passar de um registro radical para seu oposto, algo que confirma sua capacidade como cineasta – trabalhar com um material da melhor maneira possível, imprimindo sua marca e seu estilo sem deixar que ambos prevaleçam sobre a narrativa e o trabalho dos atores.
O maniqueísmo de Um Rosto na Multidão é suplantado por uma dramaturgia poderosa, que proporciona atuações irretocáveis de Patricia Neal e Walter Matthau. Ela é Marcia, a criadora de Lonesome Rhodes, o carismático homem do campo. É a descobridora de talentos que vai à prisão e meio que por acaso promove esse cantor jeca a comunicador de primeira, primeiro no rádio, depois na televisão, em rede nacional. Quando percebe que criou um monstro, passa a se esconder nas sombras que sua condição, a um só tempo de represa e porto seguro para sua cria, a destinou. Matthau é o intelectual Mel (“Vanderbilt 44″, desdenha o cantor e apresentador, aludindo à universidade de sua formação e ao ano de conclusão – turma de 1944). Desde cedo ele desconfia desse comunicador de massa. E sua participação será importante para represar o impulso que leva Marcia a ser uma espécie de mãe/amante platônica de Lonesome Rhodes. Represa, novamente. Se em Rio Violento as represas são combatidas, em Um Rosto na Multidão elas se fazem necessárias. Kazan denuncia um mundo em que o próprio comunicador, mostrado como um homem de caráter duvidoso, é mais vítima de sua espontaneidade e, futuramente, de seu poder, do que vilão, podendo ser substituído por um outro falso simplório a qualquer momento. A penúltima fala de Matthau é lapidar. Ao se despedir de um arrasado Lonesome Rhodes, e ao ouvir deste último que haverá um retorno, Mel passa a dizer-lhe de que forma se daria esse retorno, salientando que o povo tem memória curta, e que permitiria que aquele que o ofendeu retornasse em um formato mais pobre, num horário bem menos nobre. Essas palavras atingem Rhodes em cheio. Tudo que ele quer é voltar a estar no topo, e é do topo que ele vai gritar por Marcia em desespero. O filme termina assim, com uma porrada no que seria seu protagonista. Mas como fica Mel? Seu amor por Marcia deixaria de ser platônico? Teria vencido definitivamente o difícil duelo pelo coração da moça? Ou Rhodes seria sempre um fantasma para a relação dos dois? A segunda hipótese é a mais provável. No mundo de Kazan não há muito espaço para intelectuais, ainda mais porque estes deixam-se conter por represas.
Sérgio Alpendre
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