Tainá Tonolli entrevistou (e declinou seu trabalho ao site) Sérgio Roizenblit. A razão foi o lançamento comercial de seu documentário, O Milgare de Santa Luzia. De um bate-papo descontraído resultaram explicações sobre a origem do trabalho, revelação sobre a ordem das coisas no momento da confecção do filme, questionamentos sobre o cinema, e divagações que compararam o veículo à TV, que tentaram elucidar quais as diferenças básicas entre fazer trabalhos para um ou para outro. Além do mais, o diretor falou do seu apreço pela região nordeste do país, e o peso desse apreço na concepção do documentário – além de ter falado das outras razões e da contribuição indispensável de Dominguinhos e da razão pelo nome escolhido. Vale o passeio pelas linhas, pelas perguntas e respostas.
Uma viagem pelo Brasil a bordo do carro de Dominguinhos, O Milagre de Santa Luzia, referência à data de nascimento de Luiz Gonzaga, 13 de dezembro, mostra como a sanfona é popular e faz parte da identidade cultural do país entre os grandes músicos, que fazem do instrumento uma marca nacional. Para contar essa história, o diretor Sérgio Roizenblit faz um “roadmovie musical”, com depoimentos emocionantes de Sivuca, Patativa do Assaré, Mario Zan, e outros grandes ícones da música brasileira. Nesta entrevista, Sérgio fala das viagens, da relação com os personagens, de seu amor pelo sertão, apesar de ser paulistano, e, claro, reflete sobre a dificuldade de “fazer o filme existir”.
A escolha do nome O Milagre de Santa Luzia fica bem clara no filme. Você sempre soube seria esse o título?
Não. O nome foi a última coisa que escolhemos. Como o filme vinha de outro projeto chamado “Brasil da Sanfona”, durante todo o tempo achamos que teria sanfona e Brasil, e demorou pra sair disso. Até que um dia estava conversando com um amigo e ele disse: “Precisamos achar um nome mais poético para o filme”. Do nada, pensei em O Milagre de Santa Luzia. Não foram vários, foi um nome.
Mas os olhos têm destaque no filme, através de closes e personagens, o que justifica a ligação com a história da Santa (é sempre bom lembrar que Sta. Luzia - santa da Igreja Católica que morreu no início do século IV - é conhecida e cultuada como a "protetora dos olhos").
É aquela coisa que você nem sempre sabe estar fazendo. A questão dos olhares, dos rostos, era porque eu queria muito mais explicar os lugares pelas expressões do que ficar construindo imagens que ilustrassem cada coisa. Adotei a opção de ilustrar pelas expressões, e os olhares veem disso.
Quanto tempo levou todo o projeto?
Dez anos. Em outubro completa 10 anos. Começou com o “Brasil da Sanfona”, uma série de espetáculos com os principais sanfoneiros do Brasil, e um videocenário narrativo. Naquela época, a gente começou a coletar muito material, ou seja, a pesquisa do filme foi feita quase toda naquela época.
E dependíamos da agenda de shows do Dominguinhos. Quando ele fazia um show perto da região que interessava era tudo adaptado em função daquilo. Não foi o Dominguinhos que viajou com a gente pra fazer o filme, mas nós que viajamos com ele. Pra se ter ideia, fizemos essas viagens em 2004, em 2005, e a maioria em 2006.
Depois de terminado o “Brasil da Sanfona”, quanto tempo levou para voltar a ele e começar o filme?
Muito pouco, quase emendando. Em menos de seis meses já queria fazer outro filme. A diferença é que o “Brasil da Sanfona” é uma viagem pela sanfona, tendo o Brasil como pano de fundo. E O Milagre é uma viagem pelo Brasil tendo a sanfona como pano de fundo. O percurso e os lugares são parecidos, mas o foco do primeiro é o instrumento, tanto que você tem o luthier, etc. O foco do segundo é o Brasil, a música é o personagem principal, não a trilha.
E o Candango de melhor trilha sonora no Festival de Brasília?
Quanto à trilha... se não ganhasse, fecha a loja e vai pra casa, né (risos)? O filme já não levou nada: não premiar a trilha era impossível.
Como foi feita a pesquisa dos ritmos? Por que a sanfona, pelo menos aqui em São Paulo, é tida como algo característico do Nordeste.
Começou, com eu já expliquei, no “Brasil da Sanfona”. Saía do Ceará, descia pra Pernambuco, Centro-Oeste, São Paulo e Rio Grande do Sul. Para O Milagre, a gente não fez o Ceará, mas está lá porque o Patativa ficou no filme.
Mas no Nordeste, a intenção é mostrar a paisagem do sertão, nem de um estado ou do outro. É uma música sertaneja, de uma região que não tem fronteira. Falamos da Paraíba, mas não gravamos imagens lá; mostramos uma situação geográfica com a qual qualquer nordestino se identifica.
Já no Sul, temos imagens feitas até do lado uruguaio. E em São Paulo, trabalhamos capital e o interior com Mario Zan num momento muito especial.
Acredito que no Nordeste tenha uma proliferação de sanfoneiros. Como selecionar os bons personagens dos que não renderiam boas histórias?
Tivemos uma curadoria do próprio Dominguinhos, que nos indicou coisas interessantes que a principio não estavam no filme. E da própria Miriam Talbikin, que fez o projeto “Brasil da Sanfona”: muitos daqueles músicos vieram daquele tempo. E teve mais gente que ajudou, como o Arthur de Faria, que indicou músicos do Rio Grande do Sul. Por isso temos certa variedade.
Queríamos ter colocado mais gente, como o Valdones, que é do Ceará, mas não cabia. Tiramos até alguns músicos que já tínhamos gravado.
Você deu sorte de conseguir gravar o Patativa, o Mário Zan e o Sivuca.
O Patativa foi gravado em 2002, ainda para “Brasil da Sanfona”. O Mario Zan foi em 2006, pouco tempo depois ele morreu. E o Sivuca foi o momento mais emocionante do filme, em 2006 também. A gente sabia que ele estava bem debilitado, morreu dias depois. Fico emocionado de ver essas cenas até hoje.
Por que mostrar o Dominguinhos em praticamente todos os lugares?
Porque ele dá a liga do filme. Na verdade, o filme deixa de ser sobre quatro regiões e vira um roadmovie. Como ele não anda de avião, foi uma pessoa muito adequada ao filme. Hoje, em sinopse, eu falo que é “um roadiemovie musical...”.
O que você mais gostou?
Viajar pelo Brasil, que é a melhor coisa do mundo. O Brasil é o máximo. Eu adoro o sertão, não conheço nada que goste mais em nenhum lugar do planeta. Tento arrumar uma viagem para lá quase todo ano. É um lugar fora do tempo, não tem idade, não tem nada. É você com você mesmo. Guimarães Rosa fala que o “sertão mora dentro da gente”. Ir para lá é uma forma de ir pra dentro de você mesmo. É o céu mais bonito, é o máximo.
E a pior parte?
Fiquei quase dois anos montando, foi uma novela. Tinha que parar pra conseguir dinheiro, fazer outras coisas. Não para o filme, que tinha o dinheiro, mas para mim mesmo, para a produtora, porque o filme não tinha dinheiro pra nos manter, nem era o objetivo.
Você dirigiu, fez parte da fotografia e montou. É para ter controle total sobre o filme?
A fotografia em super 16 foi toda do Rinaldo e algumas coisas em vídeo, que ele fez maravilhosamente bem. O resto é meu.
Foi assim que eu aprendi a fazer. Quis aprender assim porque me dava certa autonomia. Quando cismava que queira ir para o sertão fazer imagem de caatinga, só precisava conseguir passagem e fazer. Não precisava arrumar passagem pra três pessoas, nem dependia da disponibilidade delas. Muitas coisas, fiz sozinho. Na montagem, eu podia me dar o direito de parar, voltar, recomeçar.
A Idê Lacreta aparece como consultora na montagem. Como foi isso?
A Idê trabalhou comigo 15 dias, que foram muito importantes para fazer uma limpeza no filme. Tinha ranço de programa de televisão. Ela falava “menos, deixa a música contar mais”. E o filme ganhou muito com isso. A certa altura você fica viciado, e ela teve esse olhar de quem vê de fora.
Falando em TV, seus trabalhos muitas vezes foram para esse suporte. Como é migrar para o cinema, que tem público e proposta diferente?
A grande diferença é que você precisa de muito mais dinheiro. A finalização é mais complexa, porque você é obrigado a ter um tipo de refinamento e qualidade da imagem muito maior que para TV, já que é uma imagem muito grande. E sempre encanei em ter uma imagem linda.
Outra coisa é fazer o filme existir. É muito caro divulgar, fazer as cópias, lançamento. Com US$ 80 mil, você faz um documentário. Mas para fazer isso virar filme, pelo menos mais US$ 300 mil. Toda a finalização é muito mais requintada, mas o resultado é incomparável. Agora, o HDTV deve mudar isso.
Mas o cinema tem diferenças fundamentais na narrativa e não só na técnica.
O cinema é mais autoral. A TV tem a pressão por audiência, informação e mais informação, e se você para, o cara muda de canal. A partir do momento que a TV exige mais, você muda de canal, e me incluo nisso.
No cinema, você está disposto a isso. Sai da sua casa, gasta uma grana para entrar numa sala e ver uma única coisa. Está disposto. A TV é quase o oposto disso tudo, se te incomoda você troca. É o anti-esforço, e quem produz tem que colaborar para isso. O cinema é o contrário: se for entregue tudo de bandeja, vai ser um filme ruim.
Você diz no twitter @sergioroizenblit que tem orgulho de fazer cinema independente. Não seria melhor ter uma grande distribuidora?
O meu sonho é que a Globo distribuísse meu filme! Na verdade, eu tentei, mas a Globo que não quis distribuir. A questão com o cinema independente não é o meu filme. É o mercado que está completamente errado. É terrível que a gente tenha que depender tanto de estruturas muito grandes.
Mas se eu chego lá com o filme e eles têm outro que dá bilheteria, não vão tirar para colocar o meu. O que eu vou dizer a eles? Seus chatos? Bobos? Eles não têm opção, não é são sacanas, são comerciantes.
É como alguém que vem aqui e pede pra fazer um filme de graça. Pode ser um projeto que vai mudar o mundo, mas se eu fizer de graça a produtora vai à falência.
Tem que ter cinema para dar prejuízo, como saúde, transporte, para formar público. Cultura é dar o direito da população descobrir que isso existe, porque há tempo para isso se um filme fica uma semana em cartaz. Sabe quanto da verba para cinema está voltada à sala de exibição que não dá lucro, mas que formaria público? Nada.
Você sente pressão por público? Mesmo sabendo disso?
Claro, sem público meu filme não existe. Sai de cartaz, acabou. Mas eu acho que cinema independente também não tem força por culpa minha mesmo. Pago o preço por tudo que eu não fiz por outros filmes. Eu falo em lugares para jovens cineastas: “vocês podem não me ver, podem não me ajudar, mas vão pagar a conta lá quando for a vez de vocês e ninguém ajudar a divulgar”.
Não temos a cidadania cultural de fazer o filme dessas pessoas existir. Não dá pra ser tão passivo de ir ao cinema, ver um filme legal e voltar pra casa. Cobro de mim mesmo. Se você vir um filme brasileiro legal independente, tudo o que você puder fazer pra melhorar esse filme, tem que fazer, tem que replicar.
Eu mandei o link do trailer para várias pessoas. Pergunto se elas viram e todas acharam muito legal Mas não mandaram para outras pessoas.
No último ano, por acaso ou não, os documentários musicais ganharam bastante força. Contamos uns 8 de cabeça. Pensando que música tem um apelo muito mais popular que o cinema, você acha que isso ajuda o cinema a se popularizar?
Você iria ver um documentário sobre Aziz Ab'Sáber? Então, ele é tão importante como Vanzolini. Mas são tão importantes como cientistas, porque o Vanzolini é um dos maiores zoólogos do mundo. Exceto em “Reality Show”, ninguém tem interesse na vida de anônimos, mas músicos têm repercussão de mídia. E a produção deles entra como trilha, o que facilita muito. E por último, quando você fala de música, cai num lugar onde a auto-estima do brasileiro é mais alta, além do futebol.
Eu só marco uma diferença entre O Milagre e esses filmes: eles são documentários verbais sobre personagens, e esse é um documentário sobre música. O Dominguinhos faz uma amarração, mas quem conta essa história é a música, que é o personagem principal, e não alguém.
Mas esses filmes praticamente não existiam há alguns anos, quando os de pobreza e violência dominavam o mercado nacional.
Eu desejo que esse esses filmes de denuncia continuem existindo. Mas eu desejo que o cinema brasileiro tenha uma parcela muito grande dedicada às coisas mais legais que o pais tem, como a música. Vivemos um momento de alto-estima. E O Milagre mostra isso.
Tainá Tonolli está cursando jornalismo na Cásper Líbero e já atua na área há algum tempo. Como uma colaboração muito especial, concedeu a oportunidade do site se valer da entrevista que fez com o diretor Sérgio Roizenblit. |
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