Gus Van Sant e seu Psicose.
Ao contrário do que se costuma propagandear a respeito de obras conceituais, sua verdadeira beleza não encontra-se apenas no campo das ideias, sendo a execução material do trabalho um simples suporte para a veiculação de um mecanismo intelectual. A verdadeira beleza de uma obra conceitual está na articulação entre um arcabouço teórico e a forma plástica que lhe dá corpo, ou seja, na manifestação concreta desta obra e em seu encontro com o público. O fato deste encontro ser mediado por um aparato teórico em tese apenas pressupõe um envolvimento ainda maior do espectador na relação com a obra para que seu sentido completo possa ser apreciado.
Em nada surpreende, portanto, que a refilmagem-conceito de Psicose realizada por Gus Van Sant seja um filme de esplendor próprio, não obstante a alta carga de referencialidade intrínseca que carrega. Seu statement, como não poderia deixar de ser, é radicalmente diferente daquele do filme original. Trata-se de um filme que constrói um mundo ficcional distinto – porque dirige-se a um mundo real distinto. E dentro da obra de Gus Van Sant Psicose é o ponto de partida de uma guinada essencial do diretor em direção a uma radicalização estética e conceitual que traz consigo uma aura de intensificação extrema da fruição e da experiência sensíveis, a interrogações e proposições artísticas genuinamente vanguardistas.
Se Van Sant sempre se preocupou com as margens da sociedade, com os desviantes das normas e os desajustados, com Psicose ele dá uma cartada além, postulando a necessidade de compreender em sua conformação profunda a obra mais icônica do grande inadequado-porém-enquadrado da história do cinema que foi Alfred Hitchcock. Afinal, em sua genialidade temático-narrativa, Psicose não é apenas o conto de uma perturbação desconcertante que nos desperta a perplexidade diante da banalidade da morte, mas também o retrato de uma sociedade corrompida em sua escala de valores e em sua ordenação da vida comunitária.
Parece claro que, para seguir em frente cinematograficamente naquele ponto da sua carreira, Gus Van Sant precisava retornar de forma substancial a este filme. E mais do que isso: recolocá-lo no mundo; reencená-lo. E, dada a sua iconicidade, era óbvio que o mundo não precisava de outro Psicose, mas do mesmo de novo. Van Sant apropria-se, então, da matéria-prima do filme de Hitchcock para reescrevê-lo em imagens: toma para si o roteiro, os diálogos, a trilha sonora e a decupagem originais. Como se apenas depurando a forma através de seus parâmetros objetivos, ele pudesse atingir a essência profunda da obra. (Não seria a melhor forma de estudo justamente a reformulação do conteúdo de um texto com nossas próprias palavras?)
E, ironicamente, constatamos que este âmago de Psicose é em essência uma grande interrogação. Poderíamos até arriscar a dizer que trata-se exatamente da interrogação estruturante que produziria os filmes seguintes de Van Sant: Gerry, Elefante, Últimos Dias e Paranoid Park, ou, em outros termos, sua série sobre a morte. E como interrogar seriamente a representação cinematográfica da morte, sem fazer face à maior representação gráfica de um assassinato do século XX?
Na história do cinema e na história do imaginário popular, Psicose é sem dúvida um marco decisivo e Gus Van Sant teria sido quem compreendeu isto melhor do que ninguém. Sua refilmagem, no entanto, se quer menos um acontecimento público do que um estudo particular oferecido aos espectadores como se compartilha um valioso aprendizado. Ele é o passaporte do diretor para a experimentação e nosso bilhete para uma jornada sem volta rumo ao esgarçamento da forma e à rarefação narrativa.
Pois, para Van Sant, tudo começa aí. Liberado da preocupação de contar uma história que o mundo conhece de trás pra frente e que em si própria não apresenta grande elaboração narrativa ou dramática, o cineasta encontra-se livre para concentrar-se naquilo que para o próprio Hitchcock era o foco primordial: a imagem. Dono de um cinema profundamente escopofílico e graficamente fetichista, Hitchcock só poderia ter de fato produzido alguns dos filmes mais icônicos da História. Van Sant retorna, portanto, a tudo aquilo que fez a potência das imagens de Psicose: os objetos, o cenário, os detalhes, os enquadramentos. E, no som, a trilha sonora, nota por nota, e os diálogos, palavra por palavra. Todos estes elementos sendo cuidadosamente re-produzidos e sofrendo pequenos e significantes retoques.
Como temas de uma pintura a ser reinterpretada à luz de novos tempos, todos estes elementos do filme original são revistos e retrabalhados, terminando por refletir não apenas uma atualização temporal (Psicose 98 se passa em 1998), mas sobretudo uma consciência histórica da obra em relação a seu entorno. Se a caracterização psicossocial dos personagens é reinventada e os atores corporificam tipos e sentimentos ligeiramente diversos dos originais, as estampas floridas das quais se cerca a Marion de Anne Heche e os pássaros que pontuam o filme como mau agouro são um reflexo mais amplo do mundo-Hitchcock que Psicose 98 como um todo ecoa. Os temas originais se embaralham com outros e fazem do filme um grande painel reflexivo do gênio de Hitchcock e de seu lugar na história do cinema.
Pois é toda a história do cinema que está em jogo para Gus Van Sant em seu Psicose. É Hitchcock como este marco incontornável, como o cineasta que manipulou a forma clássica desde dentro com sua alquimia indefectível para criar formas ainda mais poderosas de se dirigir ao imaginário popular. É a fixação do elemento desviante que engendra a espiral do olhar: a desconfiança, a abstração mental que contamina o mundo. É a Arte como um corpo vivo que precisa acertar as contas com seu passado para encontrar novas possibilidades de se desenvolver.
Todos morremos com as facadas de Bates
Do estrangulamento instintivo no delírio do deserto aos disparos calculados dentro do espaço esquadrinhado da escola à evaporação lenta e amargurada num retiro afastado da sociedade ao assassinato acidental em meio ao movimento urbano, todas as mortes de Gus Van Sant ecoam as facadas de Norman Bates. Seu ato primordial nos interditou eternamente de elaborar qualquer sentido para a aniquilação de uma vida. Janet Leigh nos provou que nem mesmo as heroínas são soberanas frente às punhaladas do destino – ou seriam do acaso?
E, como o cadáver preservado da Sra. Bates lança seu espectro por todo o território do Bates Motel, o além assombra cada um dos filmes citados de Gus Van Sant. É a morte interrogando a vida e colocando-a em questão. Não sabemos mais quem são os mortos e quem são os vivos, pois todos flutuam na incerteza do tempo e da memória – assim como os personagens de Um Corpo que Cai. Teria o labirinto do olhar hitchcokiano encontrado por fim seu limite paroxista na clausura do Bates Motel? Quando os mortos não têm para onde ir, não é a totalidade do mundo que passa a ser assombrada? Assombrada por corpos informes que flutuam fora dos parâmetros da matéria e da lógica funcional.
Se o limite entre a vida e a morte faz parte das interrogações fundamentais de Hitchcock, apresentando-se sob a vestimenta da dúvida e a suspeita, é daí que Van Sant parte. Ele transcende, porém, a compreensão do olhar como vetor da consciência e do sujeito, transmutando-o definitivamente em uma sensibilidade que apreende o espaço. A perversão das aparências pelo olhar, esse solo da cosmogonia hitchcockiana, ganha, portanto, em Gus Van Sant uma outra dimensão: o olhar se perde no deserto e apaga toda referência (Gerry); o olhar flutua e (des)organiza o mundo como conhecemos (Elefante); a visão se desoperacionaliza como sentido de orientação espacial (Últimos Dias); a marca do grotesco na retina eleva a culpa a um delírio assoberbante (Paranoid Park).
A circulação indiscriminada dos fantasmas arrasta a forma para uma abstração progressiva, que por sua vez engole e sublima todas as lógicas causais e a racionalidade do mundo dos mortais. O labirinto de Gerry, Elefante e Últimos Dias é uma vertigem a céu aberto, uma rarefação da própria ideia de percurso, uma vez que os parâmetros do quadro e do plano foram estilhaçados; que o Bates Motel foi desconstruído e suas paredes vieram abaixo. Trata-se de um grande passeio embriagado pelas oscilações do fluxo, que termina por desembocar no refluxo da consciência: a ressaca da culpa que recai sobre Paranoid Park. O retorno à psicose.
Seria um exagero dizer que toda a obra recente de Gus Van Sant foi definida por este exercício de estilo, esse capricho que é Psicose 98? Que a fixação nos detalhes significantes do universo hitchcockiano teria liberado o esfacelamento do plano e do espaço clássico em seu cinema? Mas como negar que este giro conceitual afetou profundamente a estética do cineasta e reconfigurou sua relação com a narrativa e a figuração? Como não ver na beleza plástica e sensória destes quatro filmes sobre a morte o lastro de um pensamento conceitual profundo, estruturante, amplamente conectado a um pensamento sobre a história do cinema?
Se existe um cinema distinto que veio à tona neste início de século XXI, um “movimento” que separaria um número de filmes do restante por seus agenciamentos filosófico-formais, em suma, se o chamado “cinema de fluxo” é um acontecimento de fato, então Gus Van Sant é seu único historiador. Ele é o único artista que tomou as distâncias reflexivas necessárias para fazer da liberação da forma um gesto consequente, o único cujas obras portam a devida consciência de seu lugar no mundo e na História como objetos. O único que teria realizado o movimento de perspectivar para poder perverter. Ao monumento incontornável do cinema do século XX que é Hitchcock, este mito de silhueta perfeitamente delineada, bastião por excelência do cinema como potência do traço e veículo de pulsões, Gus Van Sant sobrepôs um movimento oscilatório, manchas informes que refletem estados de alma instáveis e passageiros (a exemplo das nuvens que ele tanto ama filmar), inscrevendo seu nome na História como o cineasta mais importante da passagem de um século a outro.
Tatiana Monassa
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