As ilusões perdidas em Baltimore
Até Balzac já foi citado a propósito da esmerada e atordoante 'The Wire', a mais cultuada telessérie da TV americana.
Pesquisas informais indicam que as pessoas, não só as daqui, andam acompanhando com muito mais interesse, entusiasmo e fidelidade as séries de televisão exibidas nos canais a cabo do que os longas-metragens de Hollywood lançados nos cinemas. Ledo engano atribuir o fenômeno ao binômio preguiça-medo de sair de casa. A principal razão dessa preferência é a superioridade, em todos os níveis, de boa parte das telesséries, que, não bastasse, agora desfrutam da mesma longevidade de um filme e de abundante espaço nas locadoras de vídeo.
Telesséries como Família Soprano, House, Law and Order, SVU, CSI, ganharam status de cinema, viraram cultos, invadiram a blogosfera e os papos de salão. Houve um tempo em que os únicos telemaníacos em circulação na internet eram os trekkies, os fanáticos tietes de Jornada nas Estrelas. Contam-se hoje às centenas os sites que abrigam discussões sobre as esquisitices do detetive Adrian Monk, o mordaz ceticismo do dr. Gregory House, a sardônica erudição de Gil Grissom e a dipsomania do detetive Jimmy McNulty.
Jimmy quem?!
Que ninguém se sinta um ignorante por desconhecer um dos 70 e tantos personagens da série The Wire, aqui exibida com o título de A Escuta. Interpretado por Dominic West, McNulty corre o risco de virar um farrapo humano antes de conseguir impor medo ao tráfico de drogas de Baltimore. Policial alcoólatra não é novidade na teledramaturgia, mas o que McNulty diz, pensa, ameaça fazer e faz quando está sóbrio (ou apenas com duas doses de uísque no tanque), bem, assista a The Wire, rigorosamente imperdível. Sobretudo se for do seu interesse conhecer a mais brilhante, esmerada, densa e complexa série de televisão do momento.
Recomendo uma familiarização prévia com o intrincado universo da série através do YouTube, pois a HBO tampouco se deu o trabalho de lançar as duas primeiras temporadas de The Wire em DVD. Seu desprezo pelos jurados do Emmy, do Golden Globe e galardões afins não justifica o descaso. The Wire não foi criada para seduzir os vidiotas, mas para mudar nossa maneira de ver e acompanhar uma telessérie.
Um dos charmes do programa é sua narrativa inevitável e inventivamente atordoante. Espalhados por cinco núcleos - polícia, zona dos traficantes, prefeitura, jornal (Baltimore Sun), porto e rede de ensino -, vários de seus personagens se inter-relacionam sem fronteiras estabelecidas. Como tantas outras cidades socialmente cindidas, além de dominadas pela bandidagem, a inépcia policial, a burocracia municipal e a corrupção institucionalizada, a Baltimore de The Wire, como a Baltimore real (ou "Body-more", um corpo a mais, no trocadilhesco apelido que lhe deram), é um espelho do Rio de Janeiro, de São Paulo e metrópoles similares. O alcance da série é universal.
Os americanos já estão, há três semanas, curtindo a quinta e última temporada. A cada novo capítulo, a redação da revista eletrônica Salon se reúne para comentar a série online; um luxo. Quando a primeira temporada entrou no ar, em junho de 2002, críticos de várias áreas, literários inclusive, abriram as comportas do entusiasmo. O mínimo que disseram é que só às mais inspiradas criações de Robert Altman, Martin Scorsese e os irmãos Coen The Wire merecia ser comparada. Diálogos formidáveis, direção impecável, estilo visual elaborado, atores primorosos - não faltaram confetes para o projeto criado e parcialmente escrito pelo ex-jornalista David Simon. Um dos roteiristas da série é Dennis Lehane, autor de Sobre Meninos e Lobos.
À quarta temporada, em 2006, o New York Times dedicou um editorial, comparando The Wire ao que Charles Dickens fizera com Londres em Bleak House. "É, sem sombra de dúvida, o melhor show de TV já produzido na América", proclamou Jacob Weisberg, editor da Slate.com. "Nenhum outro programa logrou retratar com tamanha amplitude, precisão, acuidade e visão moral a vida social, política e econômica de uma cidade americana, de resto, retratada com obsessiva verissimilitude e afetuosa raiva." Por incrível que pareça, a prefeitura de Baltimore liberou geral as gravações. Todas as locações são autênticas, menos a redação do Baltimore Sun, reproduzida nos mínimos detalhes num estúdio de cinema.
Domingo passado, em cima da quinta temporada, David Carr escreveu no New York Times um artigo sobre David Simon e a ênfase por ele dada aos rumos tomados pela imprensa americana nos últimos dez anos. No mesmo dia, nas páginas do Washington Post, Simon publicou uma desencantada reflexão sobre a profissão a que com precoce entusiasmo se entregou, depois de assistir à contagiante comédia teatral A Primeira Página, crente que, armado de uma máquina de escrever, poderia ajudar a consertar o mundo - ou, na pior das hipóteses, tornar um pouco mais habitável sua cidade natal.
Simon, de quem Mark Bowden traçou um longo perfil para a revista The Atlantic Monthly que está nas bancas, foi repórter do Baltimore Sun durante 13 anos, de onde saiu em 1995 para trabalhar na televisão. Saiu furioso com as primeiras demissões em massa efetuadas pelo Sun. "Não quero estar presente ao enterro de uma profissão que já nos proporcionou uma vida de rei", desabafou, amparado numa metáfora celebrizada por uma das glórias da redação do Sun, H.L. Mencken. Simon se diz deprimido com a mercantilização desenfreada dos jornais, comprados por conglomerados sem compromissos de nenhuma espécie com a comunidade e a qualidade jornalística, só com os lucros e os dividendos dos acionistas, e editados por profissionais que mais se preocupam com suas ambições pessoais do que com suas obrigações éticas e o respeito à inteligência do leitor.
A última temporada de The Wire promete ser um ajuste de contas com as ilusões perdidas de David Simon. Ah, sim, Balzac também já foi citado a propósito da série.
Sérgio Augusto - O Estado de S.Paulo
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