Mais um dia de gravações no litoral do Ceará… No entanto, quando acordamos no último sábado o clima estava um pouco diferente. Ao contrário do que quero dizer quando geralmente uso essa expressão, o clima a que me refiro aqui não tem sentido figurado, tem a ver mesmo com meteorologia. A madrugada foi de chuva – muita chuva –, um fato inédito nessa nossa temporada cearense (que já se aproxima de completar um mês desde que “No Limite” começou).
A pior tempestade foi por volta das 5h, mas mesmo nas primeiras horas da manhã o céu ainda estava plúmbeo (uma palavra que gosto de usar sempre que tenho oportunidade – isto é, sempre que as nuvens permitem…). Fomos para a gravação assim mesmo, apostando que a prova que gravaríamos – a da “atiradeira”, que valia imunidade para a tribo que fizesse mais pontos – poderia ficar talvez mais interessante com a chuva que ia e vinha.
Quando chegamos na locação – mais um longínquo canto dessa praia onde a competição se desenrola –, não estava chovendo. Porém, enquanto esperávamos a chegada das tribos (conforme o local, uma delas chega rápido e a outra leva quase o triplo do tempo para aparecer) o tempo mudou algumas vezes, abrindo e fechando. E numa dessas mudanças, quando o incansável vento desse litoral empurrava mais algumas nuvens sobre as dunas onde aguardávamos, veio um estalo: aquela imagem me lembrava alguma coisa… Fiquei olhando fixo para aquelas sombras desenhando o chão até que minha memória (que, diga-se, nunca está muito do meu lado) revelou o que aquilo me lembrava: “Koyaanisqatsi”.
Se você tem menos de 30 anos, não adianta nem puxar pela lembrança… Este é um filme que fez um barulho enorme no início dos anos 80 (a produção é de 1982), que muito antes de “Earth”, dos estúdios Disney – na verdade, muito antes de Discovery Channel, National Geographic Channel e seus inúmeros imitadores –, veio revolucionar a maneira como a gente vê o mundo.
Como escrevi no título acima, foi uma estranha associação de idéias que vivi no sábado de manhã – mas foi também extremamente recompensadora. Para você que é da minha geração (ou mais velho) e viu o filme (melhor ainda, teve o prazer de assistir a “Koyaanisqatsi” na tela grande de um cinema), talvez você se divirta comigo nessa viagem que tive enquanto esperava as equipes para a prova. Se você é mais novo do que eu e acha que essa é uma palavra que eu acabei de inventar (como qualquer fã do filme sabe bem, na língua “hopi”, falada por uma tribo indígena norte-americana, “koyaanisqatsi” significa “vida maluca”, ou “vida desequilibrada”), convido você assim mesmo para essa rápida visita a um passado não muito distante, quando uma colagem de imagens urbanas e de natureza – em velocidades que não estamos acostumados a vivenciá-las – ainda era capaz de nos fascinar.
Quando, por conta das nuvens do Ceará , lembrei-me de “Koyaanisqatsi”, veio também a lembrança do dia em que assisti a esse filme em São Paulo. Eu ainda estava na faculdade, e a hoje mais que conceituada Mostra de Cinema de São Paulo era algo que ainda ninguém sabia se teria uma próxima edição, mas era também simplesmente o evento do ano para mim – e para meu círculo de amigos. Não havia internet, claro, e as informações sobre os filmes mais disputados eram, no mínimo, desencontradas. Dependíamos de telefones fixos (imagine!) para nos organizar – e de uma tabela de programação que, quase sempre, estava desatualizada no momento em que saía da gráficas (isso incluía o catalogo oficial e as tabelas diárias impressas nos cadernos culturais!). A única certeza que tínhamos era a de que as grandes atrações, sobretudo nas estréias, tinham um endereço certo: o cine Metrópole, no centro da cidade. Foi lá que, sempre na Mostra, assisti a clássicos alternativos que resistem até hoje (como “ O estado das coisas”, de Win Wenders) e outros candidatos a clássicos que os anos tiveram a sabedoria de nos fazer esquecer (como “Liquid Sky”, de Slava Tsukerman – cuja trilha sonora, diga-se, é um dos discos de vinil que, por ter sobrevivido ao tempo melhor que o filme que a originou, eu não consigo jogar fora da minha minguante coleção de “relíquias do passado”). E foi lá também, no Metrópole, que eu tive o primeiro contato com “Koyaanisqatsi”.
Essa sessões mais concorridas da Mostra eram um evento em si. A logística de chegar mais cedo (sem perder a projeção de um outro filme, digamos, tcheco que você “não podia perder”!) e segurar lugar para um grupo de dez pessoas (que estavam, por sua vez, assistindo a outros filmes “ imperdíveis” da Bulgária, do Vietnã, da Alemanha Oriental – que ainda existia –, do Chile – mas tinha que ser dos anos 60! –, ou ainda alguma coisa experimental da Coréia) era insana. Exatamente porque mais algumas dezenas de pessoas estavam lá com a mesma missão… Como os filmes nunca começavam no horário (será muito diferente hoje?), você tinha tempo de sobra para entrar em diversas discussões acaloradas na disputa pelas melhores poltronas; comparar a sua lista de filmes assistidos com a de outras pessoas para ver quem tinha conseguido ver a produção mais obscura; eventualmente conhecer alguém interessante; e especular – quase sempre blefando com informações que você tinha supostamente colecionado em “revistas especializadas” – sobre o valor artístico da obra que você estava prestes a conferir. E foi envolvido na atmosfera de um frege desses que eu me sentei para assistir “Koyaanisqatsi”.
Oitenta e sete minutos depois, hipnotizado não apenas pelas imagens, mas também pela música de Philip Glass (com a qual eu tinha contato pela primeira vez), me lembro de sair do cine Metrópole mudo. Provavelmente estava procurando alguma coisa “inteligente” para falar para os meus amigos – que também deviam estar com a mesma preocupação (coisas que te atormentam quando você é um universitário de 19 anos…). Mas arrisco interpretar – hoje, com uma certa “distância histórica” – que eu estava mesmo passado com o que acabara de assistir.
Hoje, banhados num mar de imagens do Google Earth, chega a ser ingênuo eu tentar convencer você do impacto que aquelas imagens tiveram sobre mim – e sobre meus amigos, e sobre todo mundo que assistia a “Koyaanisqatsi”. Mas acredite: naquela época, a gente simplesmente ficou sem saber o que falar. Dirigido por Godfrey Reggio, o filme – lembrando que não é difícil você achar trechos dele no youtube – não é nada além do que já descrevi acima: imagens super rápidas ou super lentas acompanhadas pela música propositalmente repetitiva de Glass. Não havia propriamente um enredo, ou uma narrativa formal. Apenas o convite a uma livre associação de imagens. Só que estávamos em 1982 – e tudo tinha cara de novo.
Bombas explodindo. Multidões atravessando ruas, trabalhando em linhas de montagem, aglomerando-se para pegar uma escada rolante (sem dúvida nenhuma, uma das imagens que mais me marcaram). Carros no trânsito de Nova York e Los Angeles. Panorâmicas de prédios gigantescos. Cidades iluminadas na noite. Uma longa tomada de um avião taxiando (em tempo real) com a imagem distorcida pelas ondas de calor que saem da pista. Tanques de guerra. Nuvens (como aqui, de onde escrevo!) passando por grandes paisagens naturais. Diques e usinas. Gente, gente, gente. E a música de Philip Glass 1-2-3-4 1-2-3-4 1-2-3-4-…
Hoje em dia, tem videoclipe (se é que essa ainda é uma forma de expressão relevante…) com muito mais imagens do que “Koyaanisqatsi” inteiro… Mas quando me lembrei da experiência de ver esse filme – e evocado por uma inocente cena matinal – não pude resistir ao impulso de comentar sobre ele hoje aqui. O assunto sobre o qual eu tinha planejado escrever hoje aqui, claro, era outro, mas mudei de rota para dividir com você essa que foi uma das mais importantes referencias visuais da minha geração.
Naquele sábado que começava, enquanto as duas equipes não chegavam, e o sol se revezava com a sombra manchando a areia que cobria o campo da prova, por um momento eu me esqueci da importância da decisão que estava prestes a acontecer – mais uma etapa na saga daqueles participantes para ganhar meio milhão de reais – e fui transportado para uma memória que eu nem lembrava que tinha mais…
De certa maneira isso tem a ver com aquele que seria meu assunto do post de hoje – algo sobre paisagens reais e imaginarias. Mas deixa isso para quinta-feira…
ZECA CAMARGO
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