domingo, 18 de outubro de 2009

Qual a graça de um homem vestido de mulher?


Nenhuma. Talvez, se esse alguém tiver essa fantasia (homens, mulheres, não importa), pode ser que essa imagem desperte algum desejo erótico. Mas o simples fato de um homem usar vestido, peruca e maquiagem (bem ou mal aplicada) não significa muita coisa para mim. Agora, se esse homem for um ator de talento, tudo muda.

Essa introdução um pouco fora do convencional – e mesmo um pouco fora da linha que os posts seguiram depois de a estréia de “No Limite” (sim, este é um texto “No Limite free”, ainda que eu tenha de resisti fortemente ao impulso de comentar o curioso episódio de hoje) – não é gratuita.
Quero com ela fazer uma pequena homenagem a um dos melhores comediantes que já assisti no palco (e, depois, na TV) – e que perdemos : Miguel Magno.

Uma grande estranheza tomou conta de mim quando vi, há apenas alguns dias, a notícia na internet que anunciava a morte de um ator de “Toma lá dá cá”. Primeiro porque, apesar de ter visto várias de suas participações como a Doutora Percy no programa (e me divertido horrores com elas), eu não identificava Miguel – nossa tênue intimidade profissional e minha imensa admiração por seu trabalho (mais sobre essas duas coisas daqui a pouco) me permite tratá-lo pelo primeiro nome – imediatamente como parte daquele elenco impecável. Depois, a estranheza ficou ainda maior: fui aos poucos tomando consciência de que havia perdido alguém que foi uma das maiores referências na formação do meu senso de humor.

Antes de contar como me tornei seu fã, preciso só elaborar um pouco mais aquela introdução acima – sobretudo porque na maioria das atuações que vi de Miguel ele estava vestido de mulher. Insisto: não basta colocar uma saia, blusa com enchimento, peruca e batom – e pronto! Quer exemplos de como essa idéia pode dar errado? Pense em “Vovó… Zona”! 1 & 2! Ok, este é um exemplo um pouco caricato demais… Mas você se lembra de “Para Wong Foo, obrigado por tudo, Julie Newmar”? Patrick Swayze… “in drag” (expressão em inglês que define homens vestidos de mulher)? “No thanks”! John Travolta ficou uma nota abaixo do seu talento na versão para o cinema do musical de sucesso da Broadway “Hairspray!”. Tenho cá minhas dúvidas se Robin Williams fez uma boa Mrs. Doubfire, em “Uma babá quase perfeita”. E não vamos nem falar de Eddie Murphy em “Norbit”…

Felizmente, para cada um desses desastres transformistas, existe uma – ou mais – história(s) de sucesso! Como Dustin Hoffmann, no clássico “Tootsie” (nossa, lá se vão 27 anos!). Ou Tony Curtis e Jack Lemmon (como, respectivamente, “Josephine” e “Daphne”), no ainda mais clássico “Quanto mais quente, melhor” – lançado há exatos 50 anos! A “Bernadette” de Terence Stamp – em “As aventuras de Priscilla, rainha do deserto” – tinha o equilíbrio perfeito entre drama e comédia. Lembra-se da “mãe de família” interpretada por Nathan Lane em “A gaiola das loucas”? Na televisão, um dos melhores programas humorísticos que já assisti é o extinto “The kids in the hall” – e os melhores esquetes, claro, eram os que eles estavam vestidos de mulher. E ainda tive o prazer de ver na Broadway um dos melhores atores “in drag”: Barry Humphries e sua impagável personagem Dame Edna Everage (que fez até certo sucesso na TV a cabo com seu “talk show”, e pode ser facilmente encontrada no youtube).

Como escrevi há pouco, é tudo uma questão de talento. E já que entramos no teatro – agora sim, estamos chegando mais perto de Miguel Magno! –, quem teve o privilégio de assistir Ney Latorraca e Marco Nanini fazendo “O mistério de Irma Vap” sabe o quanto um homem vestido de mulher (ou, no caso, às vezes de homem e de mulher ao mesmo tempo!) pode ser engraçado. Falando de espetáculos mais recentes, quase tive de ser retirado da platéia quando Marcelo Médici encarnou “Mãe Jatira” na sua peça de (estrondoso) sucesso “Cada um com seus pobrema” – foi um ataque de riso tão, hum, violento, que me fez lembrar justamente de a primeira vez que passei por isso: assistindo Miguel Magno em “Quem tem medo de Itália Fausta?”.

Não me lembro exatamente que ano foi isso, mas deve ter sido no começo dos anos 80 – época em que eu tinha o costume de sair da faculdade na sexta à tarde, ir de ônibus até o Rio de Janeiro assistir três peças de teatro (uma matinê) e voltar no domingo à noite para São Paulo. Numa dessas levadas, num teatro da Gávea, fui parar na platéia de “Itália Fausta” – que, diga-se, já era um sucesso. Foi uma espécie de catarse! Escrita pelo próprio Miguel e por seu parceiro Ricardo de Almeida, era uma colagem de esquetes, divididas em duas partes. A segunda, era um punhado de cenas muito engraçadas – a minha favorita era com as professoras colegiais Fanta Maria e Pandora (mais sobre elas já já) –, que apesar de hilárias, tinham um formato mais convencional. A primeira parte, porém, reunia cenas ainda mais curtas sob o título “Exercícios para atriz e ponto” – e era exatamente isso: Ricardo fazia o ponto teatral, dando as falas em voz baixa para a “atriz”, interpretada por Miguel.

Só de lembrar do nome de alguns deles, já tenho vontade de rir. “Valderez, a professora de inglês” era o mais simples (e um dos mais engraçados): Miguel entrava, apresentava-se para seus alunos (a platéia), e dizia que ia apresentar um novo método para ensinar inglês. Ricardo dava as falas em português e Miguel repetia em inglês. O método chamava-se “mentalização consciente” e, como avisava Valderez , era algo experimental, ainda em testes… Almeida sussurrava: “Mentalização consciente”. Miguel: “Conscious mentalization”. Almeida: “Eu não posso me envolver nessa experiência”. Miguel: “I cannot involve myself in this experience”. Dezenas de vezes, até que… Valderez “recebia o santo” e saia dançando como num terreiro de macumba. Assim, escrito, você pode até desconfiar da graça que a cena tinha, mas eu garanto: o riso vinha – e forte!

Em “Helena abriu a porta”, a confusão partia de uma amiga que ia visitar uma colega de infância, e não era reconhecida – me lembro até hoje de Miguel dizendo algo como: “ O quê? Não toca na minha filha? Não! Eu não sou um raptora!”. Em “Camila vai ao baile”, Miguel (se não me falha a memória) faz o papel de uma adolescente que queria contar ao mundo que teve sua primeira menstruação. Mas a cena mais absurda de todas chamava-se “Aracy caiu na poça”, uma “farsa metafísica” (que muitos talvez tenham visto como parte de um espetáculo que rodou o Brasil chamado “5 x comédia”, com Miguel Magno, Fernanda Torres, Luiz Fernando Guimarães, Deborah Bloch e Diogo Vilela).

Mais do que o texto – que, em sim, já era surreal – o mais engraçado dessa sequência era a interação entre as instruções do ponto e a ação. “Cai na poça”, dizia Ricardo – Miguel caía. “Chafurda na poça”, instruía Ricardo – Miguel chafurdava. “Chafurda mais”, insistia Ricardo – e Miguel… Antes mesmo de dar a primeira fala, a platéia já estava às gargalhadas. E quando Aracy suplicava “Deus, me manda umas empadinhas!”, era um delírio coletivo.

Este mesmo texto é montado até hoje em várias versões – talvez a mais conhecida delas seja uma com o nome de “A bofetada” (da Companhia Baiana de Patifaria). Mas arrisco que nenhuma delas, por mais competente que seja, tenha o mesmo brilho do original de Ricardo de Almeida e Miguel Magno. Depois dessa meu primeiro contato com ela no Rio, a peça estreou temporada em São Paulo, e eu ia toda semana. Não é “força de expressão” – eu ia toda sexta-feira, mesmo!

Na época, claro, eu não trabalhava ainda em televisão (e Miguel era já uma figura conhecida do teatro, sem ainda ter experimentado a TV – onde depois fez também uma bela carreira). Mas fui tantas vezes ver “Itália Fausta”, que acabei sendo reconhecido por Miguel. Explico: na cena com as professoras Fanta Maria e Pandora, havia um número de platéia onde elas (Miguel e Ricardo, claro) convocavam “alunos” (espectadores) para o palco para uma chamada oral. Eu sempre me oferecia para subir lá e, por conhecer a peça de cor, sabia todas as respostas. Uma noite, “impressionada” com minha performance, “Fanta” me cumprimentou. Miguel, com seu inconfundível tique cicioso, disse: “Muito bem, Zeca, tirou nota 10, já passou de ano, nem precisa mais vir às aulas…”. E dando uma piscadinha rápida completou, jogando charme: “Mas… vem sim… Vem?”.

Anos (décadas) depois, quando tanto eu como ele já estávamos na TV, encontrei Miguel num restaurante no Leblon, sentei para comer com ele e contei essa história – da qual ele, claro, não se lembrava, mas nem por isso a escutou com menos carinho. Sem poder homenageá-lo no seu velório (só saio do Ceará no final de setembro!), fiquei com a lembrança desse almoço desde que li sobre sua morte. Anteontem, assisti sua última participação em “Toma lá, dá cá” e fiquei ainda mais saudoso daquele ator que se travestia para criar mulheres que, quem viu, vai dar um belo sorriso – se não uma boa risada – cada vez que se lembrar deles.





ZECA CAMARGO

Um comentário:

  1. Pois é Zeca esta foi a melhor época teatral. isto sim é que é engraçado!!!!!!!!!

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