Por Cássio Starling Carlos
A ideia de autor no cinema, consolidada pela crítica francesa nos anos 50, costuma ter resultados nefastos quando adotada na correria e sem precaução. Já naquela época, certos autores cultuados pela tropa de choque dos “Cahiers du Cinéma” riam da obsessão dos franceses em catalogar e distinguir os que consideravam “artistas” dos que tratavam como meros “artesãos”.
Mais de meio século se passou e ainda testemunhamos diretores prestes a serem convertidos em “autores” terem de lidar com precaução diante dos efeitos nem sempre positivos associados a essa distinção. O caso mais recente é o de Michael Mann, que no mês passado teve sua obra elevada olimpicamente ao lugar de honra da mais alta das distinções cinéfilas, uma retrospectiva na Cinemateca Francesa.
Cauteloso, Mann deu uma entrevista ao hábil Serge Kaganski, crítico do semanário francês “Les Inrockuptibles”, quando da estreia de seu “Inimigos Públicos” no qual se posiciona de modo contrário às leituras que a crítica vem fazendo da fase mais recente de seu trabalho. Além desses esclarecimentos úteis, Mann explicita seu interesse estético do uso do digital e põe pingos nos is em relação a interpretações demasiado simbólicas que acompanharam a recepção crítica de “Inimigos Públicos”.
Leia abaixo alguns trechos:
Pergunta – Como muitos de seus filmes, “Inimigos Públicos” conta mais uma vez uma história em que um tira persegue um gângster: dois homens posicionados de cada lado da barreira moral. Modo de sugerir que tais barreiras são movediças, imprecisas?
Michael Mann – Meu interesse é por pessoas, por seres humanos, não pelo que Edgar J. Hoover, o diretor do FBI de 1924 a 1972, chamava de o Bem e o Mal. O que movia Hoover era uma ambição monomaníaca que não tinha mais nada a ver com um sentido objetivo de justiça. Eu creio que essa maneira de ver o mundo em categorias bem definidas é um pouco ingênua. Os indivíduos têm motivações complexas. Já conceitos tais como a verdade, a justiça, reduzidos a noções simplistas à moda americana, são úteis apenas para as HQs.
Dillinger foi um ser humano em toda sua complexidade. Eu não vejo nele nem um monstro, nem um sociopata. A vontade dele era ser popular, ser amado pelas pessoas, encontrar o grande amor... Ele não era alguém sedento de sangue. Quando foi acusado de ter intencionalmente matado um tira em Indiana, ele sempre alegou ser inocente. De fato, ele matou o tira, mas no calor da ação. Ele não pretendia ser o Super-Homem. Mesmo quando estava no auge da celebridade e era manchete de jornais, ele continuou a preparar os assaltos com sobriedade e democraticamente, em acordo com seus cúmplices. Ele nunca se deixou cegar por sua atividade e pela celebridade de suas ações, sempre manteve cabeça fria. Um personagem de cinema deve guardar a mesma complexidade que uma pessoa de verdade. Os personagens unidimensionais me entediam.
Pergunta - O filme se passa durante a Depressão: crise do sistema bancário, guerra contra o inimigo público, o que evoca certos aspectos do presente... Por meio do gênero e suas convenções, poderíamos ver uma crítica aos anos Bush?
Mann – Você pode, claro, mas não foi essa minha intenção. Quando começamos a trabalhar no filme, a crise atual ainda não havia acontecido. Ao contrário, a economia parecia a pleno vapor. A pré-produção teve início em 2007, eu comecei a filmar no início de 2008, a Bolsa estava muito bem.
Pergunta - Mas não se pode impedir de traçar um paralelo entre a “guerra contra o crime” que você mostra no filme e a “guerra contra o terrorismo”...
Mann – Não, de fato, eu absolutamente não tentei estabelecer nenhum paralelo entre o passado e o presente. Esse tipo de procedimento não me interessa. Não vou ao cinema para receber uma mensagem, mas para viver uma experiência. E a melhor experiência para mim pode ser encontrada numa realidade alternativa. Com Dillinger, tentei conduzir o espectador até lá, na América dos anos 30. Não se tratava de modo algum de trazer os anos 30 e Dillinger para o presente. Os únicos detalhes históricos de meu filme são a invenção por Hoover da “guerra contra o crime”, o fato de ele ter apontado Dillinger como “inimigo público número 1”, e que isso tenha cativado os americanos. Quando rodávamos o filme, era a época das primárias nas eleições. Nós tínhamos para consulta os jornais de 1933. Qualquer que fosse o período que consultássemos, Dillinger era a personalidade mais conhecida dos EUA, logo depois do presidente. Apesar disso, apesar de toda aquela atenção, ele continuou a viver “normalmente”: ele saía, ia jantar em restaurante, ia a boates, assaltava bancos...
Pergunta - Você é um estilista, um formalista. Para você o estilo é mais importante que a história?
Mann – Um filme estiloso cuja história é fraca atrairá nossa atenção durante cinco minutos, não mais. Um cinema puramente formalista é algo imaterial, não tem nenhum sentido. Minha prioridade é contar uma boa história e fazer de tal modo que a história tenha um impacto no espectador. O estilo é o que torna esse impacto mais ou menos forte e a tarefa do realizador é encontrar o melhor meio de veicular o impacto mais forte. Ponto final. Para o estilo enquanto tal, eu não estou nem aí. Assim como estou me lixando para a maneira como as pessoas me percebem: como um artista ou um “entertainer”... Para mim, o crime capital de um realizador é se tomar por isso ou aquilo. Se me tornasse vaidoso e me observasse filmar, eu me condenaria a um fracasso certo e total! Pensar em seu próprio estilo não passa de sedução imatura.
Pergunta - De qualquer modo, o estilo tem um pouco de importância...
Mann – Certamente! Mas se eu filmasse uma sequência estilisticamente estonteante, mas inútil à totalidade do filme, eu a cortaria e a eliminaria sem hesitar.
Pergunta - Você se encontra na ponta do trabalho com ferramentas digitais. Qual é o impacto desse tipo de recurso no seu trabalho?
Mann – No caso de “Inimigos Públicos”, filmar em digital deu à imagem um sentido mais agudo ao realismo, como se fosse um aumento de realidade, mais intenso que a verdade. Fizemos testes comparativos entre a câmera com película e a digital. A clássica deu resultados bem bons, do tipo belo filme de época. A digital me proporcionava a sensação de estar vivo em 1933, de ser contemporâneo da época no filme, de quase poder tocar na gota d’água que cai no carro preto. Essa sensação de extrema realidade era a que eu buscava. Não queria que o público visse meu filme como um truque retrô. Era preciso que o espectador tivesse a sensação de viver na história. Eu sempre fico satisfeito quando um filme tem o poder de me fazer embarcar nele e me fazer abandonar a realidade prosaica da vida, fico embasbacado quando o cinema me faz mergulhar num filme como no fundo de uma piscina, adoro essa sensação... Esquecer o tempo, esperar que o filme, a experiência, não acabe rápido.
Pergunta – Na França, consideramos o realizador como o autor de um filme. Nos EUA, é sobretudo o produtor. Onde você se situa nesse debate?
Mann – As coisas não são, assim, tão estanques. Nos Estados Unidos, pode-se apropriar do poder do qual se tem necessidade. Basta se conhecer suficientemente bem, saber o que se quer, do que é preciso para fazer seu filme. Às vezes, é preciso assumir certos riscos se você quer ter o controle. Pessoalmente, eu controlo o “final cut” há não muito tempo. Mas também gosto de ouvir a opinião do pessoal dos estúdios porque eles são inteligentes, sensíveis. O arquétipo hollywoodiano segundo o qual o estúdio é malvado frequentemente é falso. Ninguém nunca me obrigou a mudar isso ou aquilo, mas às vezes me fizeram observações, sugestões com frequência interessantes. Vou mesmo mais longe: hoje, temos menos problemas trabalhando com um grande estúdio do que com um produtor independente. Com um independente você é obrigado a lidar com dez produtores, 15 conselheiros que se consideram artistas e toda essa merda. Com um grande estúdio, você trabalha com grandes caras. Um tornado lançou os cenários pelos ares? Você dá de ombros, mantém o rumo e o problema estará resolvido em alguns dias. Não choramingamos, não gememos, somos profissionais.
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A ideia de autor no cinema, consolidada pela crítica francesa nos anos 50, costuma ter resultados nefastos quando adotada na correria e sem precaução. Já naquela época, certos autores cultuados pela tropa de choque dos “Cahiers du Cinéma” riam da obsessão dos franceses em catalogar e distinguir os que consideravam “artistas” dos que tratavam como meros “artesãos”.
Mais de meio século se passou e ainda testemunhamos diretores prestes a serem convertidos em “autores” terem de lidar com precaução diante dos efeitos nem sempre positivos associados a essa distinção. O caso mais recente é o de Michael Mann, que no mês passado teve sua obra elevada olimpicamente ao lugar de honra da mais alta das distinções cinéfilas, uma retrospectiva na Cinemateca Francesa.
Cauteloso, Mann deu uma entrevista ao hábil Serge Kaganski, crítico do semanário francês “Les Inrockuptibles”, quando da estreia de seu “Inimigos Públicos” no qual se posiciona de modo contrário às leituras que a crítica vem fazendo da fase mais recente de seu trabalho. Além desses esclarecimentos úteis, Mann explicita seu interesse estético do uso do digital e põe pingos nos is em relação a interpretações demasiado simbólicas que acompanharam a recepção crítica de “Inimigos Públicos”.
Leia abaixo alguns trechos:
Pergunta – Como muitos de seus filmes, “Inimigos Públicos” conta mais uma vez uma história em que um tira persegue um gângster: dois homens posicionados de cada lado da barreira moral. Modo de sugerir que tais barreiras são movediças, imprecisas?
Michael Mann – Meu interesse é por pessoas, por seres humanos, não pelo que Edgar J. Hoover, o diretor do FBI de 1924 a 1972, chamava de o Bem e o Mal. O que movia Hoover era uma ambição monomaníaca que não tinha mais nada a ver com um sentido objetivo de justiça. Eu creio que essa maneira de ver o mundo em categorias bem definidas é um pouco ingênua. Os indivíduos têm motivações complexas. Já conceitos tais como a verdade, a justiça, reduzidos a noções simplistas à moda americana, são úteis apenas para as HQs.
Dillinger foi um ser humano em toda sua complexidade. Eu não vejo nele nem um monstro, nem um sociopata. A vontade dele era ser popular, ser amado pelas pessoas, encontrar o grande amor... Ele não era alguém sedento de sangue. Quando foi acusado de ter intencionalmente matado um tira em Indiana, ele sempre alegou ser inocente. De fato, ele matou o tira, mas no calor da ação. Ele não pretendia ser o Super-Homem. Mesmo quando estava no auge da celebridade e era manchete de jornais, ele continuou a preparar os assaltos com sobriedade e democraticamente, em acordo com seus cúmplices. Ele nunca se deixou cegar por sua atividade e pela celebridade de suas ações, sempre manteve cabeça fria. Um personagem de cinema deve guardar a mesma complexidade que uma pessoa de verdade. Os personagens unidimensionais me entediam.
Pergunta - O filme se passa durante a Depressão: crise do sistema bancário, guerra contra o inimigo público, o que evoca certos aspectos do presente... Por meio do gênero e suas convenções, poderíamos ver uma crítica aos anos Bush?
Mann – Você pode, claro, mas não foi essa minha intenção. Quando começamos a trabalhar no filme, a crise atual ainda não havia acontecido. Ao contrário, a economia parecia a pleno vapor. A pré-produção teve início em 2007, eu comecei a filmar no início de 2008, a Bolsa estava muito bem.
Pergunta - Mas não se pode impedir de traçar um paralelo entre a “guerra contra o crime” que você mostra no filme e a “guerra contra o terrorismo”...
Mann – Não, de fato, eu absolutamente não tentei estabelecer nenhum paralelo entre o passado e o presente. Esse tipo de procedimento não me interessa. Não vou ao cinema para receber uma mensagem, mas para viver uma experiência. E a melhor experiência para mim pode ser encontrada numa realidade alternativa. Com Dillinger, tentei conduzir o espectador até lá, na América dos anos 30. Não se tratava de modo algum de trazer os anos 30 e Dillinger para o presente. Os únicos detalhes históricos de meu filme são a invenção por Hoover da “guerra contra o crime”, o fato de ele ter apontado Dillinger como “inimigo público número 1”, e que isso tenha cativado os americanos. Quando rodávamos o filme, era a época das primárias nas eleições. Nós tínhamos para consulta os jornais de 1933. Qualquer que fosse o período que consultássemos, Dillinger era a personalidade mais conhecida dos EUA, logo depois do presidente. Apesar disso, apesar de toda aquela atenção, ele continuou a viver “normalmente”: ele saía, ia jantar em restaurante, ia a boates, assaltava bancos...
Pergunta - Você é um estilista, um formalista. Para você o estilo é mais importante que a história?
Mann – Um filme estiloso cuja história é fraca atrairá nossa atenção durante cinco minutos, não mais. Um cinema puramente formalista é algo imaterial, não tem nenhum sentido. Minha prioridade é contar uma boa história e fazer de tal modo que a história tenha um impacto no espectador. O estilo é o que torna esse impacto mais ou menos forte e a tarefa do realizador é encontrar o melhor meio de veicular o impacto mais forte. Ponto final. Para o estilo enquanto tal, eu não estou nem aí. Assim como estou me lixando para a maneira como as pessoas me percebem: como um artista ou um “entertainer”... Para mim, o crime capital de um realizador é se tomar por isso ou aquilo. Se me tornasse vaidoso e me observasse filmar, eu me condenaria a um fracasso certo e total! Pensar em seu próprio estilo não passa de sedução imatura.
Pergunta - De qualquer modo, o estilo tem um pouco de importância...
Mann – Certamente! Mas se eu filmasse uma sequência estilisticamente estonteante, mas inútil à totalidade do filme, eu a cortaria e a eliminaria sem hesitar.
Pergunta - Você se encontra na ponta do trabalho com ferramentas digitais. Qual é o impacto desse tipo de recurso no seu trabalho?
Mann – No caso de “Inimigos Públicos”, filmar em digital deu à imagem um sentido mais agudo ao realismo, como se fosse um aumento de realidade, mais intenso que a verdade. Fizemos testes comparativos entre a câmera com película e a digital. A clássica deu resultados bem bons, do tipo belo filme de época. A digital me proporcionava a sensação de estar vivo em 1933, de ser contemporâneo da época no filme, de quase poder tocar na gota d’água que cai no carro preto. Essa sensação de extrema realidade era a que eu buscava. Não queria que o público visse meu filme como um truque retrô. Era preciso que o espectador tivesse a sensação de viver na história. Eu sempre fico satisfeito quando um filme tem o poder de me fazer embarcar nele e me fazer abandonar a realidade prosaica da vida, fico embasbacado quando o cinema me faz mergulhar num filme como no fundo de uma piscina, adoro essa sensação... Esquecer o tempo, esperar que o filme, a experiência, não acabe rápido.
Pergunta – Na França, consideramos o realizador como o autor de um filme. Nos EUA, é sobretudo o produtor. Onde você se situa nesse debate?
Mann – As coisas não são, assim, tão estanques. Nos Estados Unidos, pode-se apropriar do poder do qual se tem necessidade. Basta se conhecer suficientemente bem, saber o que se quer, do que é preciso para fazer seu filme. Às vezes, é preciso assumir certos riscos se você quer ter o controle. Pessoalmente, eu controlo o “final cut” há não muito tempo. Mas também gosto de ouvir a opinião do pessoal dos estúdios porque eles são inteligentes, sensíveis. O arquétipo hollywoodiano segundo o qual o estúdio é malvado frequentemente é falso. Ninguém nunca me obrigou a mudar isso ou aquilo, mas às vezes me fizeram observações, sugestões com frequência interessantes. Vou mesmo mais longe: hoje, temos menos problemas trabalhando com um grande estúdio do que com um produtor independente. Com um independente você é obrigado a lidar com dez produtores, 15 conselheiros que se consideram artistas e toda essa merda. Com um grande estúdio, você trabalha com grandes caras. Um tornado lançou os cenários pelos ares? Você dá de ombros, mantém o rumo e o problema estará resolvido em alguns dias. Não choramingamos, não gememos, somos profissionais.
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