VIP’s
Entre sutilezas narrativas, aprumo técnico extraordinário e referenciais conflituosos de um personagem em crise, eis que surge um novo produto audiovisual nacional que ajuda a redefinir parâmetros do cenário em que se inclui.
Até pouco tempo atrás, não se acreditava no cinema brasileiro. E afirmo isso com base nas longas conversas e leituras que fiz acerca do assunto. E não culpo os cinéfilos por falta de patriotismo, mas sim um sistema de produção cômodo que se apegava a uma leitura unilateral, superficial e imbecil do cenário brasileiro.
Possivelmente, o maior problema das produções nacionais seja justamente traçar abordagens temáticas tão restritas e pífias acerca de um país forjado em alicerces culturais tão ricos. Tivemos um histórico cinematográfico marcado com pornochanchadas de valores artísticos – e narrativos – nulos e, o Cinema Novo que, apesar de bastante relevante principalmente em valores de produção, foi empregado de maneira pueril.
Recentemente, neste cenário, presenciamos uma onda de filmes que se firmavam em violência, revolta, apelo social, e sexo; ou, alternativamente, comédias bestinhas, para distrair uma sociedade tão assediada pelos mesmos temas citados anteriormente. Não me levem a mal, essas temáticas são fantásticas, obviamente quando exploradas de maneira correta. Não é à toa que temos produtos de diretores como Fernando Meirelles, Guel Arraes e José Padilha, que percorrem essas tais propostas e que acabam tornando-os amplamente difundidos, trazendo uma carga verdadeiramente cinematográfica para uma arte que ainda flerta tanto com o modelo de telenovelas. Em suma, por um longo período o cinema não era levado – nem se levava – a sério; com exceções, é claro.
Roteirizado por Bráulio Mantovani e Thiago Dottori e com argumento inclusive de Toniko Melo (também diretor do filme), “VIP’s” traz a história de um garoto que sempre idealizou a figura do pai, um experiente piloto de avião, que por sua vez não era presente na vida de seu filho. O garoto cresce internalizando essa ideia de pilotar, juntamente com toda a filosofia de vida que isso demanda. Já adulto, ele procura meios para realizar esse sonho por meio de sua excepcional desenvoltura, e acaba se tornando um famoso traficante e farsante que passa a assumir diversas identidades.
Com referências cinematográficas interessantes, “VIP’s” nos traz uma temática de exploração universal em seu contexto e com ela trabalha de maneira bastante eficaz. Contudo, o mais interessante não fica nem mesmo por conta das mirabolantes empreitadas do personagem principal, mas sim pelo engenhoso e sutil estudo acerca da falta – ou excessos – de identidades do mesmo. A maneira aleatória como, em algumas passagens do filme, são lançadas “pistas” acerca do ponto-chave da trama, faz com que esse estudo não se apresente fantasioso nem forçado e segue perfeitamente a proposta e o ritmo do filme.
Contando com um Wagner Moura mais carismático que nunca e um elenco secundário fantástico, o filme encontra total suporte nas mãos destes. Wagner, que acredito ter se firmado em definitivo como melhor ator brasileiro em atividade, consegue total liberdade para transitar entre as diversas personalidades que encarna no filme. Ora como um colegial inocente – com uma peruca impagável -, ora como traficante rústico, e até mesmo como um multimilionário tímido, o ator consegue momentos genuínos de sentimentos, como quando pilota pela primeira vez – onde cita, por exemplo, “Tora! Tora! Tora!” -, ou em seu estado de confusão mental ao renegar sua própria identidade; ou até mesmo em um simples atender de telefone empresarial, quando tudo parece bastante verdadeiro.
Além do Wagner, o filme traz nomes como o argentino Jorge D’Elía, interpretando um poderoso gângster; Milhem Cortaz, em rápida aparição; Arieta Corrêa, como um affair do protagonista; e Gisele Fróes, fazendo as vezes da mãe do mesmo. Essa última merece atenção especial, pois nota-se um carinho maternal bastante genuíno, que tem seu grande potencial demonstrado na cena onde, após ver o seu filho se passando por outra pessoa na televisão, ela gargalha da situação absurda e logo após desaba em lágrimas ao perceber o quanto aquela falha de conduta cabe também a ela.
O roteiro trabalha de maneira sutil o conflito do personagem principal com sua identidade e seus referenciais familiares. Se por vezes nos é apresentado uma figura paterna protetora e idealizada – notem como sempre ele está fardado -, a figura materna é uma grande incógnita. Se o carinho que essa última tem para com seu filho fica gritante em tela, a relação deles é pautada em uma cumplicidade danosa, talvez por um eterno martírio que a mãe carrega.
E mesmo que não pareça tão sutil trabalhar parte do terceiro ato durante um baile de máscaras, este é perfeitamente justificado, já que gera o estopim dos pontos crucias do filme e materializam-se em tela os verdadeiros conceitos por trás desses. Acredito que o roteiro peca ao trabalhar tão rapidamente com a “ascensão” do personagem como o grande empresário, fato que foi caracterizado como o ‘grande golpe’ do mesmo. Contudo, a forma como a história evolui do plot de um “vigarista” para contar a história de alguém que não apenas acredita na personagem que incorpora, mas que nos faz acreditar nessa, é o grande acerto do filme.
Novamente as grandes sacadas da película aparecem discretamente, como a referência à enigmática mulher promíscua que permanece – textualmente – um mistério, ou dos planos finais do salão de beleza da mãe do protagonista, que sempre foi apegada à imagem das personalidades famosas e que ao final põe as fotos do seu filho junto àquelas figuras públicas, talvez até se orgulhando dele, mesmo estando ciente do que aquela fama temporária significou.
Outro ponto espetacular do filme é a direção de Toniko Melo. Desde tomadas aéreas bem realizadas a uma exploração precisa de seu elenco , Toniko faz bom proveito da história que tem em mãos. A forma com que ele trabalha a relação protagonista com sua mãe merece destaque. Em determinada cena, em um encontro entre ambos, Toniko consegue transpor a distância que permeia os dois, mesmo quando estão fisicamente juntos. Ele trabalha com o foco e com os elementos de cena de maneira interessante, que por sua vez compactuam com uma fotografia fria e uma bela trilha sonora; trilha essa que é, por sinal, outro grande destaque.
A montagem tem papel fundamental no ritmo ágil do longa. Temos um trabalho excelente explicitado em uma passagem em que o protagonista inventa uma história mirabolante para contar aos policiais, ou onde Sandra, personagem da Arieta Corrêa, pergunta ao protagonista quem ele é, e em uma repulsão à sua verdadeira identidade (à lá Teddy Daniels de “Ilha do Medo”, de Martin Scorsese), somos apresentados a alguns inserções de recortes de cenas anteriores que representam o estado mental confuso do protagonista, que por ora questiona qual sua atual ou real personalidade.
O longa toma grandes proporções qualitativas quando trabalha em cima de um personagem que não encontra sua plenitude em ser somente um, mas teima em se reinventar, o que, no fundo, apenas maximiza em tela a verdadeira essência de todo ser. Notem que não citei em momento algum o nome do personagem de Wagner – que é tido como: Marcelo, Carrera, Denis, Constantino e Bizarro -, pois acho importante respeitar essa margem de interpretação que o próprio filme oferece.
Ganhador de quatro prêmios no Festival do Rio, “VIP’s” é um filme que se apresenta leve em sua maior parte, mas tem um conteúdo bastante complexo e relevante. De grande qualidade estética, passando por um bom roteiro e um elenco de vastas qualidades, esse é um dos longas responsáveis por talvez uma das fases mais importantes do cinema brasileiro, que é aquela que universaliza seus conceitos e propostas – sem se ater somente ao restrito âmbito regional -, e que, principalmente, se leva a sério.
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