Avaliação: nota 10
 
 


Em mais de 35 anos de carreira, Pedro Almodóvar levou grandes obras ao público admirador de um cinema irreverente e original. Suas tramas, sempre focadas na imprevisibilidade de seus personagens, experimentaram os limites do drama, como em “Fale com Ela”, e da comédia exagerada ou kitsch, como em “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos”, dentro de uma filmografia praticamente irretocável. Em “A Pele que Habito”, um thriller surpreendente, o cineasta experimenta uma temática diferente de suas obras anteriores e obtém sucesso ao elaborar uma de suas películas mais curiosas.

Na trama, Robert (Antonio Banderas) é um cirurgião plástico renomado que abriga em sua mansão um curioso experimento científico. Vera (Elena Anaya) é o objeto de trabalho de Robert, que está em processo da construção de uma pele resistente para implantar na moça que aparenta ser uma sobrevivente de alguma tragédia. Ainda que negue, o cirurgião implanta em Vera traços muitos semelhantes de sua ex esposa, que morreu em um acidente. Contar além disso é comprometer o desenrolar do enredo, que mostra seis anos da vida desses personagens e as transformações que enfrentaram neste tempo.

O que é mais marcante no longa é a forma como Almodóvar estrutura sua narrativa. Com os três atos bem definidos do roteiro, de forma não linear e estratégica, o primeiro deles nos entrega ao início de uma trama estranha, que pouco lembra as obras anteriores do cineasta. Logo o suspense é encaminhado para o segundo ato e começamos a compreender a vida daquelas pessoas em tela. E principalmente: como elas chegaram até onde estão. Seis anos vão e vem no tempo do filme, agregando informações e em um crescente interessante. No último dos atos, intitulado curiosamente como “Volta ao presente”, tudo é possível. De repente, o público fica imerso em uma história que supera expectativas não só per si, mas principalmente do próprio Almodóvar.

O primeiro ato mostra delicadamente e com diversos planos detalhes os experimentos realizados por Robert, sem necessitar ser autoexplicativo, já que isso é o de menos para aquele momento. É uma característica forte de “A Pele que Habito” a tendência da não explicação, que será compreendida nas cenas seguintes ou nos flashbacks bem posicionados.  Tecnicamente, Almodóvar investe na clausura dos ambientes, não apenas dentro da “cadeia” em que Vera vive, mas de uma forma geral. Suas cores saltam os olhos quando aparecem meio à penumbra ou até mesmo  nos planos fechados que o cineasta opta fazer.

Os momentos seguintes possibilitam que o público possa juntar as peças e, principalmente, ter as reações corretas sobre a trama. É impressionante o terror e o pavor causados pelo filme. O transtorno psicológico dos personagens é passado em tela de forma magistral, fazendo com que ali não tenhamos vilões nem mocinhos, mas pessoas presas em novos mundos. Robert não tem limites para seus experimentos e castra completamente a liberdade de Vera que, por sua vez, induz ao desenvolvimento de uma síndrome de Estocolmo sempre duvidosa. Até onde ela realmente aceita seu novo destino? Em paralelo, Marília tem uma função delicada, condicionada a ajudar Robert, mas bastante vulnerável às situações. O alívio cômico fica por conta de seu filho Zeca (Roberto Álamo), em uma das sequências mais bizarras de Almodóvar, que mistura o kitsch, o machismo e a ganância.

As características famosas de Almodóvar estão lá. As cores quentes permeiam os cenários, quebrando a sobriedade de determinadas sequências. Aliás, para quê elemento melhor do que o sangue vermelho que se torna arte nas mãos do cineasta? Percebam também como os quadros da casa de Robert mostram muito de sua correlação com a própria obra, com corpos desnudos e sem rostos. A direção de arte e o figurino deslumbram e criam todo aquele universo apresentado com personagens estão sempre prontos a se desfazerem uns dos outros, sejam empunhando uma arma ou proferindo rápidos jogos de palavras.

A trilha sonora de Alberto Iglesias, parceiro antigo de Almodóvar, pontua os níveis de tensão que a trama alcança até o seu desfecho, quando o público já está impressionado por aquelas sequências tão ousadas e cruéis. A música é fator essencial para a construção da atmosfera da trama, que varia entre tensão, drama e até mesmo terror. Em diversos momentos, os olhos mais atentos podem notar referências a outras obras dele mesmo, como “Áta-me” e “De Salto Alto”, ou até mesmo do mestre do suspense, Alfred Hitchcock.

O elenco, encabeçado por Banderas em mais uma parceria com Almodóvar, é um espetáculo a parte. Banderas dosa suas diferentes nuances no decorrer da trama, ainda que possa ser visto como um psicopata ou um homem vingativo. A todo tempo, questionamos sua paixão pela ciência em contraponto com a paixão pela ex-esposa, ou mesmo a angústia dos acontecimentos que abateram sobre sua filha. A beleza estonteante de Elena Anaya faz com que os olhos não sejam tirados dela, sempre inebriados com aquela personagem tão paradoxal e instável.

Marisa Paredes, sempre divina, é responsável pelo melodrama familiar, mas que não cai no mal gosto por esconder dos próprios personagens do filme algumas verdades. O público é o seu principal canal de comunicação. Jan Cornet e Roberto Álamo cumprem suas devidas funções, se transformando (de diferentes formas) diante do espectador. A jovem Bianca Suárez, que interpreta Norma, filha de Robert, tem pouco a fazer em cena, mas assume com peito seu conflito que talvez seja o motivador de toda aquela loucura vista na obra.

Baseado em uma história escrita por Thierry Jonquet, “A Pele que Habito” é um espetáculo narrativo que há um bom tempo Almodóvar não nos trazia (o que não exclui suas últimas obras, sempre ótimas). Aqui, ele constrói mais um mundo cheio de imprevisibilidades e coerente em seus argumentos. Com uma metáfora magnífica em seu título, além dos jogos de cena (como os canais de televisão que Vera tem acesso, que fazem uma representação do seu mundo de prisão e caça), a obra está pronta para ser aclamada pelos próximos anos por oferecer mais um trabalho de contação de histórias irretocável de Pedro Almodóvar e se estabelecer como uma de suas principais contribuições cinematográficas.
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Diego Benevides
é editor chefe, crítico e colunista do CCR. Jornalista graduado pela Universidade de Fortaleza (Unifor), atualmente é pós-graduando em Assessoria de Comunicação, pesquisador em Audiovisual e professor universitário na linha de Artes Visuais e Cinema. Desde 2006 integra a equipe do portal, onde aprendeu a gostar de tudo um pouco. A desgostar também.