domingo, 17 de abril de 2011

Ricky

Abra o coração para sentir o verdadeiro poder do pequeno Ricky.

Avaliação: 9
 
 


Em 2000, o cineasta francês François Ozon realizou o maravilhoso “Sob a Areia”, protagonizado pela sua diva Charlotte Rampling, que deu início ao que ele chamou de “trilogia da morte”. Uma denominação um pouco pesada, visto que a morte desse título está mais relacionada à ausência do que ao que temos como fatídico. Cinco anos depois, o segundo filme “O Tempo Que Resta” abordou uma outra vertente da perda, ainda que longe da competência da primeira produção. Em 2009 e, como sempre, atrasado ao estrear no Brasil, Ozon finaliza a trilogia com “Ricky”, que investe no realismo fantástico para contar, ao jeito naturalista do cineasta, uma bela história do começo ao fim.

A trama mostra Katie (Alexandra Lamy), uma mãe de classe média baixa que trabalha em uma fábrica e cria sozinha sua filha Lisa (Mélusine Mayance). Na realidade, mais parece que a filha cuida da mãe. Não que esta seja desleixada ou não se importe com a cria, mas a garotinha parece ter muito além do que a idade aparente e assume responsabilidades indevidas. É ela que acorda a mãe para ir ao trabalho, prepara o café da manhã e se vira quase sempre sozinha. Em um dia de trabalho, Kate conhece Paco (Sergi López) e uma atração forte surge entre os dois. Logo, eles se tornam pai de Ricky, um garotinho que nasce aparentemente irritado e chorão. Com o desafio de criar duas crianças, a família passa a perceber que Ricky é mais especial do que imaginavam.

Logo no prólogo, quando vemos Katie desabafando sobre as suas obrigações maternas, somos cativados por aquela curiosa personagem. Alexandra Lamy empresta uma sensibilidade grandiosa a Katie, ao mesmo tempo em que ela parece um tanto quanto cruel. O choro é uma mistura de angústia e de oportunidade de alívio, mas somente ao fim da projeção saberemos o que essa personagem tem a nos oferecer. Em seguida, o roteiro, também de Ozon, volta no tempo e mostra os conflitos familiares que servirão de mote para a trama. Não é difícil perceber que a pequena Lisa é uma personagem muito mais especial do que os outros em cena, já que é pelo olhar dela que se passa a maior parte da história. A atuação da pequena Mélusine Mayance colabora para isso, indo além do comum e impressionando a cada minuto.

Ozon filma Lisa de uma forma grandiosa. Não em quesitos estéticos, já que essa nunca foi uma marca do cineasta, mas com seu naturalismo e sensibilidade de sempre. Até mesmo uma tomada em que Lisa espera, de costas, a chegada da mãe consegue emocionar. A proeza de Ozon está na forma como ele conta sua fábula. A montagem, recurso sempre de destaque em suas obras, se alia às sequências poderosas e, por vezes, repetitivas, mas que contribuem com a construção da sua atmosfera narrativa.
Sem explicar ao pé da letra o que Ricky realmente é (um dos acertos do roteiro), facilmente percebe-se que aquele bebê é um catalisador de crenças (não religião) e resoluções para a vida daquela família. É por meio dele que Katie,  Lisa e Paco transcenderão de alguma forma em suas vidas quase miseráveis. Ricky é apenas uma ferramenta disso tudo. Com suas asas, o bebê procura a liberdade e a paz, tudo aquilo que a família não tem. A cena em que Katie procura pelo filho em um lago simboliza seu crescimento e a compreensão da vida. Por mais que o roteiro não se questione o tempo todo sobre o que realmente está acontecendo, o que costuma ser um erro, é de responsabilidade do espectador contribuir com aquela história. Ricky seria um anjo?

Durante toda a projeção, é importante que o público esteja de peito aberto para comprar seus argumentos. Como ressaltado, é uma história que extrapola os limites normais e, ainda assim, nem sempre faz questão de parecer perfeita. O longa não traz efeitos especiais e visuais perfeitos, e nem se preocupa com isso. A trilha sonora é discreta e não interfere tanto no lado emotivo da película. Nã há pretensão em ser um filme hollywoodiano que veio para impressionar com sua técnica, mas sim uma produção galgada na sensibilidade de sua história pura. A cena final, com um lindo abraço, simboliza tudo isso.

Com uma filmografia quase irretocável, cheia de sucessos de público (como “8 Mulheres”) e crítica (como os maravilhosos “Amor em 5 Tempos” e “Swimming Pool”), Ozon traz em “Ricky” toda a sua experiência em contação de histórias para oferecer ao público uma grande oportunidade de pensar sobre o valor que as coisas e as pessoas têm. Dessa forma, o francês nos enche de emoção e finaliza sua “trilogia da morte” com algo que mais parece uma “trilogia da esperança”.

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Diego Benevides
é editor geral, crítico e colunista do CCR. Jornalista graduado pela Universidade de Fortaleza (Unifor), atualmente é pós-graduando em Assessoria de Comunicação e estudioso em Cinema e Audiovisual. Desde 2006 integra a equipe do portal, onde aprendeu a gostar de tudo um pouco. A desgostar também.

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