Um apaixonado pela humanidade
Em sua primeira visita ao Brasil, Giancarlo Berardi, o criador de Ken Parker e Júlia, fala com exclusividade ao Universo HQ e mostra por que é um dos melhores roteiristas de quadrinhos do planeta
O genovês Giancarlo Berardi é um profissional tão talentoso que apenas uma forma de arte nunca foi suficiente para seus trabalhos. Nos anos 60, esse "namoro" começou como autor e ator de peças de teatro e como vocalista e guitarrista da banda Gli Scorpioni (Os Escorpiões). Mas, para alegria de alguns milhares de afortunados leitores, a partir da década de 1970, ele ingressou no mercado de quadrinhos, no qual produziu obras marcantes, inesquecíveis.
Este simpático italiano, que veio pela primeira vez ao Brasil, foi uma das principais atrações do 5º Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte e encantou a todos (colegas de profissão, organizadores e fãs) por sua inteligência e pela simplicidade digna dos grandes.
"Agora entendo por que Ivo Milazzo e Sergio Bonelli gostam tanto daqui", declarou, bastante emocionado, após ser abordado por diversos leitores e atender a todos com a mesma atenção. "É um prazer estar aqui. O afeto que as pessoas demonstram, a disponibilidade. É como estar entre a família. Eu me sinto completamente à vontade".
O leitor João Batista da Cunha (que viajou mais de nove horas de ônibus de Tatuí, interior de São Paulo, para conhecê-lo) emocionou o autor ao lhe presentear com edições de Tex Junior (dos anos 50), Epopéia - Gabriela Cravo e Canela, Epopéia - A Torre de Babel (1956) e Epopéia Especial Tiradentes.
No Brasil, o público que acompanha Berardi é pequeno, porém bastante fiel. Seu trabalho mais conhecido, Ken Parker, recentemente teve sua primeira série (59 volumes) publicada na íntegra e com um padrão gráfico excelente pela Tapejara (no começo se chamava Tendência), de Wagner Augusto. Mas com tiragens reduzidas.
Rifle Comprido, como Ken Parker também é conhecido, estreou no Brasil em 1978, pela Vecchi, que lançou 53 edições. Em 1990, sete anos depois de a antiga editora interromper o título, a Best News tentou retomar o personagem, mas publicou somente dois números. Assim, até a série da Tapejara, os quatro últimos volumes permaneciam inéditos por aqui.
O personagem, que surgiu na Itália em 1977, foi inspirado em Jeremiah Johnson, vivido por Robert Redford no filme Mais forte que a vingança (Jeremiah Johnson, no original), do diretor Sydney Pollack, que chegou aos cinemas em 1972. Inclusive, inicialmente o protagonista do fumetto se chamaria Jedediah Baker. "Mas Bonelli decidiu que seu nome deveria ser algo curto, fácil de memorizar. Ele estava certo! E assim surgiu Ken Parker", disse, em 2000, ao UHQ, o principal desenhista do título, Ivo Milazzo.
A segunda série de Ken Parker (da Parker Editore, a editora fundada por Berardi e Milazzo), de 18 números, saiu no Brasil, em formatinho, pela Mythos Editora, no começo dos anos 2000.
E alguns especiais de Ken Parker, sempre escritos por Berardi, também foram lançados no Brasil. Os Cervos / Hálito de Gelo saiu pela Ensaio em 1994; e o Cluq publicou Onde morrem os Titãs em 1999, como uma minissérie em duas partes, e o álbum Um Príncipe para Norma, no ano seguinte.
A sétima editora a publicar Berardi no Brasil, a Opera Graphica, lançou quatro álbuns do autor desenhados por seu mais ilustre parceiro, Ivo Milazzo. Todos no melhor estilo graphic novel, mas igualmente cativantes: Marvin, o Detetive - O Caso de Marion Colman (2001), Tom's Bar (2002), Contrastes e Noturno (os dois últimos em 2003).
No final de 2004, a Mythos apresentou ao leitor brasileiro Júlia, trabalho atual de Berardi para Sergio Bonelli Editore e também a série mais longeva do autor - já passa das 110 edições na Itália. Por aqui, no número # 5 a revista precisou mudar de nome para J. Kendall - Aventuras de uma Criminóloga, para evitar problemas com a Nova Cultural, detentora dos direitos do nome Júlia para publicações.
Em Júlia, o leitor brasileiro passou a conhecer um Berardi mais maduro. A encantadora criminóloga, cujo visual é inspirado na atriz Audrey Hepburn, foi fruto de uma pesquisa árdua, exaustiva, que resultou num título sólido, que se tornou um dos principais da Sergio Bonelli hoje e conseguiu algo raro até então: atrair mulheres para os fumetti da editora.
Atualmente, a identificação de Giancarlo Berardi com Júlia é tamanha que rendeu uma brincadeira durante o FIQ: sua esposa, a simpática Martina, é muito parecida com a personagem. Seria ela outra inspiração visual para a criminóloga dos quadrinhos? O autor explica que não. "A série nasceu há 14 anos (apesar de a publicação ter começado em 1998); e estou com Martina há sete", contou.
Perto de completar 58 anos (no dia 15 de novembro), o roteirista, que também já escreveu histórias de personagens como Tarzan, Diabolik, Silvestro, Tiki, Nick Raider, Dylan Dog, Nathan Never, Martin Mystère, Mister No, Tex e até Sherlock Holmes, entre dezenas de outros trabalhos, concedeu uma entrevista exclusiva ao Universo HQ. Durante quase uma hora, falou sobre carreira, método de trabalho, amigos, personagens e muito mais.
Ao final, foi fácil compreender por que praticamente todas as pessoas lêem as obras de Berardi acabam se tornando seus fãs, diferentemente do que acontece com a imensa maioria dos roteiristas de quadrinhos do mundo inteiro.
Universo HQ: Você é o que chamamos no Brasil de "roteirista de mão cheia". Quais suas fontes de referência?
Giancarlo Berardi: Mão cheia? Não conhecia essa expressão. Interessante. Bem, eu adoro cinema, literatura, poesia e música, que é muito, muito importante para quem escreve. A música dá senso de ritmo. O roteiro sem ritmo não vale nada.
Para mim, foi muito importante escrever para teatro, ser ator e tantas outras coisas. Eu desenhava, cantava, compunha. Tudo isso está em meu trabalho. Mas a maior diferença, que sempre está sempre presente em meus quadrinhos é a vida. As pessoas.
Com tanta gente que conheci aqui em Belo Horizonte, posso escrever centenas de histórias, pois o único verdadeiro dote que reconheço ter é o de compreender as pessoas, "ler" dentro delas. Cada um tem sua história. Cada um que você encontra tem uma, dez, cem, mil histórias para contar. A mim, cabe apenas ler essas histórias (apontando os dedos indicador e médio para os olhos).
UHQ: É por isso que seus quadrinhos são tão diferentes...
Berardi: É porque gosto das pessoas. Sou um apaixonado pela humanidade.
UHQ: E nos quadrinhos quais foram suas principais referências?
Berardi: Claro que li muitos quadrinhos na infância, mas gosto muito de um grande artista, que para mim foi um dos maiores do mundo: Alex Toth. Foi um gênio dos quadrinhos, da narração, do desenho animado. Um homem difícil de ser descrito, mas capaz de colocar a cultura e qualidade das ilustrações dentro dos quadrinhos, algo que antes dele não existia. Por isso, sempre me impressionou.
Depois vieram outros, inclusive jovens, pois eles têm uma sensibilidade diferente, mais próxima do mundo de hoje. E eu, que já passei dos 50 anos, preciso disso para fazer uma tradução da vida atual, que, afinal, está sendo vivida por eles.
UHQ: E personagens, tinha alguns favoritos?
Berardi: Eu gostava muito do Fantasma e de outros quadrinhos italianos, como Capitão Miki, Grande Blek, que povoaram minha infância.
Mas creio que comecei a fazer quadrinhos justamente para continuar a ler as histórias em quadrinhos. Foi um modo para ter todos os dias um fumetto para ler.
UHQ: Como os quadrinhos entraram na sua vida?
Berardi: Ah, eu fazia tantas coisas... A natureza foi generosa comigo, por ter me dado muitos talentos. Eu gostava de cantar, compor músicas, recitar, desenhar, de cinema. Depois, conheci Ivo (Milazzo) na escola. Nós dois gostávamos de quadrinhos. E como ele desenhava melhor do que eu; e eu escrevia melhor do que ele, resolvemos nos unir e ...
UHQ: E fizeram um "casamento" perfeito...
Berardi: Risadas... Bem, cada caso é um caso.
Mas, concluindo, como nasci e cresci em Gênova, que era distante da produção de cinema, de TV e das editoras, os quadrinhos me propiciaram uma oportunidade única: trabalhar em minha própria casa, fazendo uma coisa da qual gostava.
UHQ: Mudando de assunto: você é torcedor do Genoa ou da Sampdoria (ambos times tradicionais de Gênova)?
Berardi: Nasci como genoano, mas não acompanho mais futebol, porque não tenho prazer em ver 22 milionários correndo atrás de uma bola. Na Itália, o futebol é usado como meio para descarregar a tensão política e social. Não há mais nada do esporte. Alem disso, há muita violência. Gente que se suicida, se mata. Por isso, não gosto. É o ópio do povo.
UHQ: É possível viver trabalhando somente com quadrinhos na Itália?
Berardi: Desde que estreei neste mercado, vivo dos quadrinhos. Na Itália, isso é possível. Mas, claro, é preciso ter talento, profissionalismo e, conseqüentemente, sucesso. Lá, os bons profissionais conseguem viver só de quadrinhos.
UHQ: Quando Ivo Milazzo esteve no Brasil pela última vez, disse mais ou menos isso: Tex faz os leitores sonharem; Ken Parker os faz pensar. Concorda com essa diferença?
Berardi: Eu penso um pouco diferente. Para mim, as pessoas lêem Tex e dormem tranqüilos, porque a história é sempre a mesma: o bem vence e o mal perde. Ken Parker diverte, mas também coloca a dúvida na sua cabeça.
UHQ: Realmente, Ken Parker era um western muito diferente de todos os outros.
Berardi: Sim, pois o protagonista era um homem, que, como qualquer um de nós, aprendia com seus erros e acertos. Eu sempre coloquei em Ken Parker um pouco dos meus sonhos, da minha esperança em um mundo melhor.
UHQ: Apesar de ser cultuado em diversos países, Ken Parker nunca foi um campeão de vendas, não é?
Berardi: Mas o mais importante é que sempre houve pessoas que apreciaram as histórias de Ken Parker. Leitores que, como eu, acreditavam na humanidade.
UHQ: Em que países Ken Parker foi publicado?
Berardi: Em muitos. Portugal, Espanha, Alemanha, França, Turquia... No entanto, não é por estar aqui, mas devo dizer que o primeiro país do qual tive um grande retorno foi o Brasil. Houve uma época em que muita gente saiu daqui para a Itália, para me conhecer, me entrevistar.
Um deles foi o Laerte (autor de Piratas do Tietê). Eu o conheci porque ele foi para lá, assim como tantos outros, que mostravam sempre o mesmo entusiasmo, uma paixão que, num primeiro momento, me surpreendeu. Afinal, eu escrevia minhas pequenas histórias na Itália e não pensava que poderia fazer sucesso do outro lado do mundo.
Foi então que entendi que a humanidade é a mesma; que quando se trata desse terreno, podemos estar no Alasca ou em qualquer outro lugar do planeta, que a mensagem será compreendida.
UHQ: Recentemente, a Tapejara concluiu a primeira série de Ken Parker por aqui. O que acha das edições brasileiras?
Berardi: Os álbuns são ótimos, belíssimos. Um belo trabalho do Wagner (Augusto). Sei, inclusive, que na Itália há fãs que compram essas edições brasileiras.
E as edições de Júlia também são muito boas. Aqui tive o prazer de conhecer Júlio Schneider, tradutor da série, que sempre teve muito cuidado na adaptação para o seu idioma.
UHQ: Na segunda série de Ken Parker, a edição # 12 apresentou a história A Terra dos Heróis, que foge muito do convencional, pois você e Milazzo apareciam entre os personagens. Por aqui, os fãs de faroeste, no geral, não gostaram, mas os que apreciam outros gêneros de quadrinhos adoraram. Como foi a recepção na Itália?
Berardi: Foi a mesma coisa. Alguns acharam que foi uma auto-celebração, que eu e Ivo queríamos nos meter no meio de Ken Parker. Outros consideraram que não era uma história de western verdadeira. E alguns não entenderam que era uma grande metáfora da narração dos quadrinhos, do cinema, sobretudo, pela presença de tantos heróis, verdadeiros atores que acompanharam seus autores por tanto tempo.
E, para mim, foi também um modo de dizer adeus aos nossos leitores, porque eu sabia que eu e Ivo não íamos mais trabalhar juntos na série. Aquela foi a ultima vez que entramos em cena, também numa história em quadrinhos. Então, tinha um significado a mais.
Foi uma forma de fazer os leitores verem como nós trabalhávamos, o nosso modo de pensar, interagir, além de representar um adeus.
UHQ: Muitos fãs de Ken Parker "migraram" para Mágico Vento, de Gianfranco Manfredi. Vê alguma similaridade entre o trabalho de vocês? São amigos?
Berardi: Honestamente, não li tudo de Mágico Vento, só alguns exemplares. E gostei. Manfredi é um grande profissional, escritor de livros, compositor, cantor e ator. Ou seja, temos muita coisa em comum. Nós nos conhecemos, mas não temos um convívio. Como ele mora em Milão e eu, em Gênova, só nos encontramos às vezes.
UHQ: Ao longo de sua carreira, você trabalhou com diversos personagens, como Tarzan, Tex e Diabolik. Quais as diferenças e dificuldades de escrever personagens que não são seus?
Berardi: A diferença é enorme. Mas trabalhar com personagens de outros autores me ensinou uma qualidade fundamental: o respeito pelo trabalho dos demais.
Por isso, cada vez que estive à frente de personagens de outro autor, li atentamente as histórias dele e escrevi as minhas com grande humildade. Eu não estava ali para mostrar aquilo que sei fazer, mas para fazer algo o mais similar possível dentro do que já havia sido realizado.
UHQ: Você nunca pensou em roteirizar séries que se desenvolvem em álbuns com intervalos maiores, como ocorre em outros países europeus?
Berardi: Sim. Eu fiz isso num certo período, nos meios dos anos 80. Mas não gostei. Para um desenhista é bom, pois ele pode desenhar 60 páginas em um ano. Eu escrevo 60 paginas em um mês. Sempre fui muito rápido.
E, naquele modo, não tinha a possibilidade de "escavar" o personagem, não tinha a continuidade nem a quantidade de páginas necessárias para desenvolver uma verdadeira saga. Eu faço personagens, não figuras de papel.
Isso, por favor, sem criticar meus colegas, que trabalham nesse outro estilo, mas eu prefiro a narração popular. Gosto de pensar nos garotos que gastam seu pouco dinheiro para comprar uma história em quadrinhos e se satisfazem com isso. Para esses leitores, esses álbuns franceses são muito caros.
UHQ: Mas impressiona o fato de você manter a qualidade do roteiro num nível tão alto em séries mensais.
Berardi: Isso é questão de quem trabalha. Alguns preferem de uma maneira e uns, de outra. Então, não posso dizer qual é melhor ou pior, pois só trabalho assim.
E obter essa qualidade gera um certo cansaço, pois trabalho dez horas por dia, no meu estúdio. Começo às 9 horas e paro às 19h30min, com uma pausa para comer.
Mas como moro num lugar muito bonito, pequeno, de frente para o mar, me sinto bem ali.
UHQ: No início de sua carreira, você publicou Ken Parker pela Bonelli. Depois, teve sua própria editora. Qual foi a melhor experiência?
Berardi: As duas foram boas. Para compreender os problemas dos editores, precisamos (Giancarlo e Ivo) nos tornar editores. Agora entendo melhor.
Assim como para compreender os problemas de um desenhista é preciso saber desenhar um pouco. Porque, assim, você discutir sobre determinado ponto de vista com o seu parceiro.
Por isso, aconselho todo desenhista a escrever um pequeno roteiro a qualquer momento, para compreender a dificuldade da outra parte.
Mas é muito importante haver um editor como Sergio Bonelli, porque ele nos deu a oportunidade de publicar Ken Parker no início, quando éramos rapazes, muito jovens, por volta dos 24 anos.
E, anos depois, me ofertou a possibilidade de publicar Júlia, série em que estou trabalhando há 14 anos.
UHQ: Mas não são 14 anos ainda...
Berardi: Sim, são quase dez anos de publicação, mas comecei quatro anos antes a prepará-la. Fiz um trabalho de pesquisa, freqüentando um curso de criminologia na universidade, estudando os personagens, os model sheets, os lugares.
Li 150 livros de criminologia...
UHQ: 150?
Berardi: Risadas. Sim, Júlia não é uma série improvisada.
UHQ: Em 1973, você escreveu uma tese sobre a sociologia do romance policial. Essa foi a semente para os roteiros de Júlia?
Berardi: Sim, seguramente. Sempre li literatura negra. Quando tinha nove, dez anos, já acompanhava Sherlock Holmes, que saía pela Mondadori (famosa editora italiana de livros). Depois, continuei, pois era uma literatura popular, nova, que me entusiasmava, com a linguagem do cinema, rápida e com personagens fortes. Portanto, era um aspecto da literatura policial.
Mais tarde, li ficção fantástica, western e tantos outros gêneros. Quando tinha 17, 18 anos, lia um livro por dia. Das 10 da noite às 5 da manhã. Isso por muitos e muitos anos.
UHQ: Daí a importância de ler bastante.
Berardi: Claro. É essa leitura que permite que, depois, você enxergue todas as possibilidades que uma história pode oferecer. Todos os possíveis finais, todas as reviravoltas.
Ler é importantíssimo, sobretudo literatura, que dá a possibilidade de criar a imagem na sua mente. Isso é fundamental, tanto para um roteirista quanto para um desenhista. E quando você tem essa possibilidade, fica muito mais fácil trabalhar.
Hoje, faço 12, 13, 14 histórias ao mesmo tempo. Escrevo diariamente, sem saber o final de cada uma. Começo e sigo sem saber como continuarão. É como o método de um músico que improvisa.
Para mim, não é interessante começar uma história sabendo como ela terminará. Em vez disso, improviso a cada dia, contando um pedaço de uma história nova, isso me entretém.
Se você não possuir uma grande capacidade narrativa, é impossível fazer isso, pois como as histórias são longas, para os personagens não se perderem, a cada dia leio o que fiz anteriormente e crio um novo pedaço.
UHQ: Como é o seu método de roteiro?
Berardi: Primeiro escrevo os diálogos e os divido pelos quadros da página. Em seguida, faço o layout e, depois, a descrição de cada cena no computador. Só então mando por e-mail para o desenhista, que não vê os meus esboços.
Dias depois, ele vai me mandar o layout dele já com o meu roteiro aplicado. Então, sugiro alterações e reenvio. O próximo passo é o desenhista me mandar a página a lápis e, em seguida, a pagina finalizada. Eu controlo todo o processo, para manter o estilo da série.
UHQ: Não é o Sergio Bonelli que faz isso?
Berardi: O Sérgio faz o controle final de tudo, mas eu me encarrego de manter o estilo. Isso é muito importante porque são 15, 16 desenhistas diferentes e dois roteiristas ajudantes. Assim, é claro que cada número da revista pode ser uma coisa diferente.
Então, podemos ter diversas histórias e vários personagens, mas o estilo será sempre o mesmo.
UHQ: Hoje como é sua relação com o Bonelli?
Berardi: No inicio, na década de 1970, foi muito dura. Eu era um "revolucionário" e ele, o patrão...
Mas, com o passar dos anos, a estima e o afeto recíproco aumentaram e hoje temos uma bela amizade, ainda que ele seja o editor e eu, o autor. E nem sempre estamos de acordo em certos assuntos.
UHQ: A palavra final nas edições de Júlia é de quem?
Berardi: Digo que é dele, mas não é imposta. Ele é hábil.
UHQ: Voltando ao roteiro: ele só vai para o desenhista quando está concluído?
Berardi: Não. Mando dez, quinze paginas por vez. O desenhista também não pode saber o final da minha história, como se desenvolve a trama. Assim, ele fica mais interessado.
Ele não precisa saber se o personagem é bom ou mau.
UHQ: Você faz com os desenhistas o que faz com os leitores...
Berardi: O desenhista é meu primeiro leitor. Ou melhor, o segundo, pois o primeiro sou eu mesmo.
UHQ: Com quantos meses de antecedência você produz as histórias?
Berardi: Mais ou menos 12. Eu tenho 12 histórias adiantadas, em andamento. A redação de Júlia é realmente no meu estúdio. Toda estrutura passa por lá.
UHQ: Como é o trabalho com Maurizio Mantero, que colabora nos seus roteiros desde Ken Parker?
Berardi: Bem, primeiramente conto para ele a história. As histórias publicadas são sempre minhas, o argumento, a sinopse. Depois, ele escreve os diálogos e me manda por e-mail. Eu leio, controlo, reescrevo, ajusto, refaço, coloco o que acho necessário e lhe mando de novo.
Maurizio também usa o esquema de layout. Só depois desses ajustes é que seguimos adiante com o trabalho.
UHQ: Ele é o seu melhor colaborador de texto?
Berardi: Ah, Lorenzo Calza (que ajuda Berardi em Júlia) também é um grande roteirista. É um jovem de 36 anos e trabalha comigo a sete ou oito, era um garoto quando começou, assim como Mantero...
UHQ: Significa que você é um bom professor.
Berardi: Talvez mais com Maurizio do que com Lorenzo, que é jovem e me traz a realidade de hoje, da qual não estou tão próximo. Por exemplo: gosto mais da música do passado, enquanto ele aprecia rap. É uma troca de informações entre gerações muito interessante.
E nós dois crescemos com isso, porque ele me apresenta um cantor atual. Aí, falo de um dos anos 60, que ele não conhece. No dia seguinte, já lhe empresto um disco...
Aprender pra mim é a coisa mais interessante da vida. Aquela para a qual estou sempre pronto. Se tiver a possibilidade de encarar, eu vou. Sabe por que não gosto tanto de visitar festivais? Porque as pessoas me tratam como se eu fosse um mestre.
UHQ: Mas, para os leitores, você é...
Berardi: Não, não sou um mestre da cátedra, apenas me esforço para entender as pessoas. Para isso é vital escutar e aprender. Sempre vamos aprender.
UHQ: Vamos falar de Júlia. Como é pensar como uma mulher?
Berardi: Depois de muitos anos, enfim me sentia preparado para fazer um quadrinho protagonizado por uma mulher. Na verdade, esta é uma pré-disposição natural, pois cada um de nós tem uma parte masculina e outra feminina dentro de si.
A minha parte feminina, identifico com a imaginação, a fantasia, a criatividade a sensibilidade.
Cultivei isso por toda a vida, pois gosto de escutar os outros, de me comunicar com as pessoas. E o mundo feminino é mais interessante do que o masculino, por ser mais profundo. Os homens falam de futebol, mulheres, coisas banais; são mais garotões. Já as mulheres têm uma estrutura mental mais complexa, complicada, interessante, mais voltada para a vida.
Além disso, cresci no meio de tias, avós e muitos elementos femininos. Mas, admito, não é fácil tentar pensar como uma mulher. Não se faz isso de forma simples, é preciso uma maturação. Eu comecei Júlia 14 anos atrás, já adulto e me sentia pronto.
A história que me fez sentir apto para Júlia foi Adah (uma aventura tocante sobre uma mulher negra, publicada em Ken Parker # 46), que me fez compreender que eu podia pensar como uma mulher.
O grande dote de um escritor é o mimetismo, a capacidade de entrar em todos os personagens. Quando escrevo sobre um assassino serial, sou um assassino serial. Quando escrevo a respeito de um garoto, sou um garoto. Quando escrevo uma cena humorística, eu rio primeiro. Se faço uma cena triste, sou o primeiro a quase chorar, porque vivo dentro da história. Para mim, não são figuras de papel, são figuras humanas.
UHQ: A Bonelli tem uma tradição de muitos anos de os personagens terem parceiros de aventuras. Por que Júlia, assim como Ken Parker, não tem?
Berardi: Quando apresentei Júlia ao Sergio (Bonelli), disse que queria fazer uma história noir. Ele me escutou por meia hora, depois falou: "Não entendo nada do que está me falando, mas confio em você". Isso, para mim, é uma grande responsabilidade.
Sergio não iria me perdoar nunca se não fosse uma boa série. Ele me deu uma enorme responsabilidade, que seria mais minha do que dele. Então, não houve qualquer tipo de interferência.
E Júlia é um bom titulo. Vendemos 60 mil exemplares por mês, sobretudo para o público feminino, estudantes, mulheres formadas, entre 20 e 30 anos. Claro que há as de 60, 50, 15, mas a média é essa.
Ou seja, trata-se de uma série que tem a sorte de funcionar num momento em que os quadrinhos não vão muito bem na Itália. Os jovens não lêem mais, preferem jogos eletrônicos, celulares, internet, coisas mais da moda. Não têm dinheiro para gastar em quadrinhos, pois não é mais uma coisa importante na vida deles.
UHQ: Qual o seu desenhista favorito de Júlia?
Berardi: Não posso escolher um. Posso falar, sem problema, que adoro os jovens e um amigo caríssimo com o qual trabalho há mais de 30 anos: Giorgio Trevisan, que é um irmão para mim.
Quanto aos mais jovens, me encantam os seus projetos de vida, o que cada um faz, a forma como são apaixonados pelo trabalho e como conseguem conciliar tudo isso. Quando um deles chega ao mercado, acho importante passar um pouco da minha experiência.
É por isso que me considero um afortunado, pois faço um trabalho que adoro e pelo qual sou pago. É uma grande sorte. E a maior sorte é ter um público que me lê. Isso é verdadeiramente grande.
Então, sinto a necessidade de passar tudo isso adiante. Para ajudar os jovens a crescer, a se desenvolver cada vez mais e se tornarem grandes artistas.
UHQ: Júlia tem outra característica que difere dos personagens mais tradicionais da Bonelli (Mágico Vento não se enquadra nesse time): ela tem relações sexuais. Como é a reação dos leitores a isso na Itália?
Berardi: São diversas as reações. Alguns querem que ela faça amor todos os números, mas isso transformaria a revista num quadrinho erótico, e não é o caso.
Há os que se escandalizam. "Como a Júlia saiu com aquele homem que mal conhecia? Ela não deve se prestar a esse papel, é uma mulher que estudou"...
E existem os que entendem que uma mulher jovem deve fazer suas tentativas, como qualquer outra da vida real. E que pode cometer seus erros, tanto no trabalho como no amor. Aliás, mais no amor que no trabalho.
Não escrevo sobre uma heroína, mas sobre uma mulher de hoje, inteligente, sensível, bem-sucedida profissionalmente, intuitiva, independente. Uma mulher normal. E como o que me interessa é contar a vida...
UHQ: Você publicou seus quadrinhos nos anos 70 e 80. Qual a diferença para o mercado atual?
Berardi: Há uma grande diferença. Naqueles anos, se lia muito e o quadrinho era descoberto como uma forma de literatura desenhada, que portava idéias, um novo modo de contar a sociedade.
Ken Parker foi um fenômeno social e muitos jovens cresceram lendo suas revistas e assimilando os valores dos personagens.
Hoje, isso me parece difícil, pois os jovens não têm mais esses valores. São poucos os que possuem. É um fenômeno mundial. O capitalismo é imposto como o único valor, o dinheiro. E quando o dinheiro é o numero 1, todo o resto se perde.
É claro que é necessário manter o desenvolvimento econômico, mas é preciso retomar os valores. Os valores da vida, que são aqueles fundamentais para o homem: a justiça, a consideração pelos outros e todas as coisas que servem para fazer a humanidade evoluir.
UHQ: Seus quadrinhos têm um ritmo muito próximo do cinema. Algum pode ser adaptado para a tela grande ou para a televisão?
Berardi: Há algum tempo, fizemos contatos para transformar Júlia numa série televisiva e alguns no cinema também. Mas é muito difícil, pois é um mundo onde o dinheiro prevalece sobre as idéias, sobre a qualidade.
Então, hoje não me importo em ver Júlia no cinema ou numa série televisiva, se ela não for feita como eu quiser, sem respeito pela personagem e mantendo a dignidade de quem trabalhou com ela.
UHQ: Um pensamento bem diferente do mercado norte-americano de quadrinhos.
Berardi: Sim. Mas hoje sei bem o quero da minha vida. Se quisesse ficar rico, venderia cocaína, não faria quadrinhos.
UHQ: Em 1998, você encerrou sua colaboração de quase 30 anos com Ivo Milazzo. Como é o relacionamento hoje?
Berardi: Foi antes ainda. Em 1998 saiu a edição, mas o trabalho terminou em 1996. Nossa relação é ótima. Somos amigos, nos falamos por telefone, nos encontramos. Mas cada um pegou uma estrada diferente.
UHQ: Ivo pode vir a desenhar Júlia?
Berardi: Não acredito. Seria uma honra, mas o Ivo tem sua carreira, seus trabalhos...
Entendo que, para a maioria dos nossos leitores, seria fantástico ver Ivo trabalhar com um roteiro meu. Mas a retomada de nossa parceria deveria acontecer em Ken Parker. No entanto, se não encontrarmos uma editora com fidúcia, nem vou começar, pois para terminar a série preciso de mais seis, sete, oito episódios e quero uma editora que me diga: "Faça-os!"; e não de uma que verá se a primeira edição vai dar certo para saber se continua.
Interrompi Ken Parker duas vezes, não o farei uma terceira. Ou me dão a possibilidade de acabar a série ou não recomeço.
UHQ: Então, aí vai a pergunta que mais deve ter respondido nos últimos anos: onde Ken Parker está hoje?
Berardi: Na cadeia. É o único italiano que está na cadeia... (Risadas) Todos os outros estão soltos. Ele é um homem de honra.
A única possibilidade de ele sair é eu encontrar uma editora.
UHQ: Hoje você lê quadrinhos?
Berardi: São poucos os que interessam.
De super-heróis, por exemplo, não gosto. Concordo com (Bertolt) Brecht: "infeliz a nação que precisa de heróis". Eles não são humanos, e aprecio a humanidade, as pessoas. Quero falar das pessoas, porque há tanto para dizer. Dentro de cada um de nós há um mundo. E se somos 5 bilhões no planeta, há, pelo menos, 5 bilhões de mundos reais para contar.
Eu não tenho tempo para super-heróis. Tenho tempo para a vida, para relações, para ler mais, para assistir a bons filmes. Hoje leio muitos livros de história, pois me interessa muito mais o passado do que o presente. Para se compreender o presente, deve-se ler sobre o passado.
UHQ: E qual sua opinião a respeito dos mangás, também tão presentes no mercado italiano?
Berardi: Eles são distantes da minha sensibilidade. É um desenho bastante frio, com pouca emotividade. Mas há alguns grandes desenhistas, como (Katsuhiro) Otomo (de Akira).
Ainda assim, é uma cultura muito distante de nós, diferente, que, para mim, é cansativo compreender. Eu entendo, mas não me apaixono. Se preciso ler alguma coisa do Japão, prefiro as poesias, que são extraordinárias, ou os romances. Os quadrinhos são distantes. É o meu limite.
UHQ: Conhece o trabalho de quadrinhistas brasileiros?
Berardi: Só o de Mauricio (de Sousa), que é o Disney da América do Sul; do Laerte, de quem conheço muito bem o trabalho; e do Ziraldo. São todos amigos que amo pessoalmente, e amo também seus trabalhos.
Mas o que deixa triste é ver um país com tanta cultura e humanidade, com tantas histórias, aventuras, ainda não ter a possibilidade de contá-las em quadrinhos. Isso é incompreensível. Creio que o Estado deveria intervir, nem que fosse para fazer uma editora do governo.
Nem que fosse preciso para chamar profissionais de outros países, para criar um filão, uma tradição. Talvez vocês necessitem de ajuda para abrir a estrada dos quadrinhos brasileiros. Depois que isso estiver feito, é só dar vazão à fantasia, à criatividade, ao desejo.
UHQ: Na década de 1970, você quase trabalhou para a Marvel, depois de um contato com John Romita. O que aconteceu?
Berardi: Conheci John Romita em Nova York, onde passei um bom tempo estudando. Quando ele viu uma história minha de terror desenhada pelo Ivo, ainda no lápis azul, ficou impressionado e me perguntou por que eu não ia para lá trabalhar.
Mas eu estava terminando a universidade (nota do UHQ: o autor se formou em Línguas Estrangeiras), tinha a minha família e não sentia a necessidade de mudar definitivamente de país. Pelo contrário, decidi que era hora de conhecer o meu país.
Outro norte-americano que me sondou para trabalhar com ele foi Mort Walker ( Recruta Zero), mas eu era muito jovem e queria mesmo era voltar para casa.
UHQ: Quais as dificuldades de se adaptar As Fundações, de Isaac Asimov, para os quadrinhos, em 1983, na edição # 12 da revista Oriente Express?
Berardi: Adaptar esse conto foi um experimento total, porque foram três desenhistas trabalhando ao mesmo tempo: (Maurizio) Mantero, (Renzo) Calegari e Ivo (Milazzo).
O texto fiz com a ajuda de Maurizio, que também fez as cores. Foi uma mescla incrível, tanto que assinamos M. M. Becami, de Maurizio Mantero, Berardi, Calegari e Milazzo.
Eu gostei do resultado, mas nunca mais a publicaremos, porque não temos os direitos de Asimov.
UHQ: Para terminar, Giancarlo, defina Ken Parker e Júlia.
Berardi: São os meus dois filhos (nota do UHQ: o autor não tem filhos na vida real). Eu os amo muito, por razões diversas, pois eles são bem diferentes.
Mas os filhos sempre trazem um pouco do pai, é inevitável. Ken Parker e Júlia são duas partes de mim. Ambos são extremamente humanos, adoram ler e escrever, exatamente como eu.
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