Valentina |
UHQ: Em Valentina, Guido Crepax usa várias referências culturais, que vão da literatura ao cinema, passando, inclusive, por outros quadrinhos. A nova geração de leitores brasileiros, cercada por comics e mangás, saiu perdendo por não ter a chance de conhecer Valentina e outras HQs européias, por sua pouca popularidade?
Gonçalo: Sem dúvida. Muita gente mais nova que ler Tentação à Italiana vai se deparar com um universo completamente novo de histórias em quadrinhos. Isso porque esses artistas não são publicados no Brasil há quase 15 anos, com exceção de Serpieri, que saiu até 1998.
Lamentavelmente, a crise que afetou nosso mercado editorial de quadrinhos nesse período desestimulou o lançamento desses artistas, o que seria fundamental para nos dar uma referência diferente, um outro ponto de vista, o da cultura européia.
Valentina, de Guido Crepax |
Os álbuns eróticos de Manara e Hugo Pratt são um exemplo. Isso é importante até mesmo para a formação dos nossos desenhistas e roteiristas. O universo do super-herói e do mangá, salvo exceções, é mais pueril, de entretenimento, massificante, até fútil.
UHQ: Recentemente, dos grandes centros produtores de quadrinhos, só no Japão houve um crescimento nos quadrinhos eróticos. Nos demais ocorreu uma retração. A que atribui isso?
Jane Fonda interpretando Barbarella no cinema |
Os eróticos italianos pecam nesse período por não se renovar. Manara e Serpieri, nos últimos anos, perderam o fôlego, não conseguem impressionar mais com novos trabalhos, embora os desenhos continuem deslumbrantes. Mas o que plantaram está fixo no solo, consagrados para sempre.
Quanto aos mangás eróticos, creio que o Japão experimenta aquele momento de transcendência moral, de censura, de ruptura, de liberdade, que não havia antes. Há o encanto da novidade do sexo, do pornográfico. Talvez surjam daí grandes trabalhos que ultrapassem esse conceito. Mas confesso não ser a pessoa ideal para analisar isso.
La Planete Oublieé - Serpieri |
Gonçalo: As duas coisas, provavelmente. Druuna era muito conhecida no Brasil nos dez anos em que permaneceu inédita aqui, o que mostra a incrível força da personagem. Valentina foi assim antes de ser lançada no Grilo, em 1971.
Todos que estavam antenados com a contracultura sabiam dela e desejavam ler suas histórias. Druuna agrada ao brasileiro por razões que não precisam ser descritas aqui. A identificação é muito grande e imediata.
UHQ: Ranxerox causou alvoroço por aqui, na década de 80, quando saiu na revista Animal. Adolfo Aizen chegou a criticar Tamburini e Liberatore, por criarem um personagem tão violento e amoral, que tinha como amante uma ninfeta viciada e prostituta. Por ser inspirada numa realidade exagerada do movimento punk a obra tornou-se datada, se comparada a Crepax, Manara e Serpieri?
Ranxerox |
Tamburini e Liberatore anteciparam o gênero de violência extremada que predominaria no cinema nos anos de 1990 e certamente influenciaram até cineastas como Oliver Stone (Assassinos por Natureza) e Quentin Tarantino (Pulp Fiction). Acredito que Ranxerox não foi ainda devidamente estudado e digerido. A influência punk é óbvia, mas não vejo ali algo datado. Parece-me, sim, bem atual.
Ranxerox |
Pode-se até dizer que esse não era o propósito dos autores. Mas como diria Ernesto Sabato, a verdadeira obra de arte transcende os fins de quem a criou. Essa minha visão está mais bem explicada na parte que dedico a Liberatore no livro.
UHQ: Crepax, Manara e Serpieri influenciaram os quadrinhos eróticos no Brasil?
Maria Erótica, de Cláudio Seto |
Desde a década de 1960, com a Edrel e depois a Grafipar, começamos a criar personagens femininas marcantes com mais ou menos pitadas de erotismo, como a inesquecível Maria Erótica, de Cláudio Seto, fortemente influenciada por Valentina. As duas sonhavam muitas sacanagens. Mesmo assim, Seto foi bem original e criativo.
UHQ: No Brasil, o quadrinho erótico se expandiu dos anos 60 até meados dos 80, com inúmeras revistas, a adesão dos melhores artistas ao gênero e até o aparecimento de editoras especializadas. Mas isso nunca se traduziu em respeitabilidade, pois sempre foi visto como "pornografia", ao contrário da Europa. Por que essas trajetórias foram tão desiguais?
Maria Erótica |
Tudo bem que nossos autores, por uma questão de sobrevivência, partiram mais para o pornográfico a partir do final da década de 1980, mas tivemos dois momentos de grande sofisticação com a Edrel e a Grafipar, entre 1964 e 1983.
Artistas ali revelados ou consagrados como Mozart Couto, Rodval Mathias, Watson Portela, Nelson Padrella, Cláudio Seto, Fernando Ikoma, Minami Keizi, Julio Shimamoto e Flavio Colin fizeram coisas incríveis, entre o muito lixo que as duas editoras publicaram. Falta alguém estudar isso deixando o preconceito de lado.
Se houvesse maior atenção e interesse dos editores, creio que a produção teria se sofisticado bastante, porque o mercado comporta isso. Sexo vende. É preciso considerar isso sempre.
O Quadrinho Erótico de Carlos Zéfiro |
Gonçalo: Certamente. Se fosse italiano, talvez sua carreira tivesse tomado um outro rumo, que não o de viver com salário de funcionário público modesto.
Os Alunos Sacanas de Carlos Zéfiro |
De qualquer modo, mesmo escondido sob um pseudônimo, teria uma outra notoriedade. Mas, cá entre nós, Zéfiro parece ser o autor de quadrinhos mais conhecido do Brasil. Todo mundo já ouviu falar em seus "catecismos". Parece um Pelé dos quadrinhos.
Tenho notado isso na divulgação do livro. Pessoas completamente alheias aos quadrinhos têm me perguntado, quase sempre com certo orgulho, sobre sua importância.
The Third Book Of Saudelli - Bondage & Foot Fantasies |
Gonçalo: Trato disso na introdução do livro. Os quadrinhos viraram uma questão de segurança nacional para Mussolini durante a Segunda Guerra Mundial.
O Ministério da Cultura Popular, com seus professores-técnicos alucinados, começou a ver piolho na cabeça de careca. Passaram a dizer que os quadrinhos estavam a serviço da difusão de uma ideologia tipicamente imperialista norte-americana. Implicaram com heróis como Flash Gordon, Mandrake e Tarzan. E baixaram uma determinação proibindo a publicação generalizada de quadrinhos ianques.
Foi uma loucura, porque a Itália não tinha tradição de fazer quadrinhos e precisou improvisar. Seguiu-se, então, um período de plágio deslavado.
The Blonde, de Saudelli |
Gonçalo: Deve-se considerar, nesse aspecto, o vínculo católico da Itália ao longo de dois mil anos. O país abriga o Vaticano, a sede mundial da Igreja. "Naturalmente", a pressão moral sobre a pornografia continua forte, apesar do florescimento do erotismo no neo-realismo e nas histórias em quadrinhos.
Mas há um detalhe: não existe propriamente um cinema pornográfico italiano, mas mundial, pois praticamente a indústria se uniformizou, segue tendências, padrões e formas de realização baratas e sem qualquer cuidado quanto à produção - exatamente como estabeleceram os norte-americanos. Os filmes são os mesmos na Espanha, na Itália, na França, na Alemanha.
Antes, criava-se situações cômicas para dar um tempero, quando ainda era erótico. Hoje, nem isso. Vão direto ao sexo. Só estabelecem um tema para cada produção - grupal, oral, anal etc.
As comédias eróticas italianas, por outro lado, continuam gozando de certa respeitabilidade, embora a fórmula tenha se esgotado.
Outra das beldades de Milo Manara |
Gonçalo: Seria muita pretensão conseguir isso com o livro. Mas não custa sonhar, diante da repercussão que tem tido. Ficaria extremamente honrado se algum editor brasileiro se interessasse em publicar Crepax, Manara, Serpieri, Rotundo etc.
Há boatos de que uma editoras estaria interessada em Crepax. Vamos torcer.
Barbarella |
Gonçalo: Parece-me que está restrito aos quadrinhos pornográficos e aos poucos mangás eróticos aqui lançados. Falta alguém para tentar produzir algo mais ambicioso e elaborado. Disse e repito: sexo vende. Dê ao público uma capa maravilhosa e um conteúdo soberbo que a coisa anda.
Nesse gênero, podemos fazer grandes coisas, fugir da influência norte-americana ou japonesa, pois somos um povo tropical, naturalmente erotizado, como os italianos. Temos peculiaridades, podemos brincar com situações de modo original, com nossas lindas mulheres de bundas - e agora seios - grandes.
Valentina |
Gonçalo: Como disse, estou começando a reescrever A Guerra dos Gibis 2, no qual enfoco a produção de revistas de sexo durante a ditadura militar, com ênfase na censura, mais uma vez.
Quem gostou do volume 1 e de Tentação à Italiana, vai curtir bastante, porque há o mesmo zelo e preciosismo em resgatar a história, sempre com o máximo de profundidade.
Desta vez, contarei a história de heróis anônimos que lutaram contra a ditadura com muito prazer - sexual.
UHQ: Como foi a repercussão sobre Tentação à Italiana?
Gonçalo: Impressionante. Algumas pessoas chegaram a dizer que só comentariam depois de passar o "estado de choque" em que se encontravam após folhear a edição. Isso se deve à ousadia de Carlos Mann e Franco de Rosa. E pensar que fui contra o formato do livro. Achava uma loucura inviável. Está aí. E vamos em frente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário