il Trasformista, filme de 2002 escrito por Manfredi |
Manfredi: Eu comecei escrevendo roteiros para cinema, muito antes de trabalhar com quadrinhos. Por isso, é normal que haja traços cinematográficos no meu estilo.
Nos dois casos, trata-se de contar por imagens. A diferença é que, ao contrário do que se pensa, roteirizar quadrinhos é muito mais complexo, sobretudo porque trata-se de imagens paradas e, também, porque um
Mágico Vento |
Em outras palavras, o roteirista de uma revista em quadrinhos também deve ser o diretor. O desenhista é livre para interpretar a situação de acordo com seu talento, mas eu me preocupo, acima de tudo, em não forçá-lo a fazer coisas que o deixem pouco à vontade ou em dificuldades.
Por exemplo, se um desenhista não é muito bom para fazer mulheres, evito passar a ele uma história cheia delas. Se ele não gosta de retratar monstros porque tem um talento mais realístico, não lhe dou histórias assim. Procuro escrever o tipo de trama que acho mais certa para o artista e que o deixe em condições de expressar suas qualidades e, se possível, divertir-se trabalhando.
Mágico Vento |
Manfredi: Trabalho em vários campos e, por isso, estou acostumado a mantê-los separados. Se penso numa história para os quadrinhos, escrevo uma história em quadrinhos. Se penso num filme, escrevo diretamente o filme.
Muitos escrevem romances esperando que se tornem um filme e, dessa forma, geralmente fazem romances péssimos. Se alguém quisesse fazer um longa-metragem extraído de Mágico Vento, eu cobraria os direitos e deixaria que essa pessoa fazer do seu jeito, sem dar palpite, porque para mim Mágico Vento é um quadrinho, não um filme.
É evidente que eu ficaria torcendo para que não saísse um filme ruim como, por exemplo, o recente Blueberry. Quando fui assisti-lo, me pareceu que o roteirista várias vezes citava mais Mágico Vento que Blueberry. Infelizmente o resultado foi uma confusão narrativa tão grande que não fez justiça a nenhum dos dois.
UHQ: A série deve durar até que número?
Mágico Vento |
UHQ: O senhor gostou das edições brasileiras de Mágico Vento?
Manfredi: O formato pequeno, o papel e o tipo de tinta utilizados, infelizmente, impedem que o leitor brasileiro curta a beleza de certos desenhos. Principalmente quando trata-se de artistas que usam muito o preto, os desenhos ficam prejudicados.
Mas quanto ao cuidado editorial, as traduções das histórias e as rubricas Correio de Poe e Blizzard Gazette, o Mágico Vento brasileiro é muito bem feito, graças ao excelente trabalho de Julio Schneider.
UHQ: Hoje, em quantos países Mágico Vento está sendo publicado?
Manfredi: Além de Itália e Brasil, Mágico Vento também é lido em Portugal (nota do UHQ: país que recebe as edições da Mythos), Turquia, Croácia e Eslovênia.
Saíram alguns números na Califórnia, como teste. E estamos acertando contratos com França e Espanha.
Mágico Vento |
Manfredi: Neste momento, as edições gigantes custam muito caro e vendem pouco. Mas sairá um Maxi, ou seja, um Mágico Vento especial com cerca de 250 páginas, que já começamos a preparar.
Além disso, a partir da edição 101 da série normal, os episódios serão mais longos, com 30 páginas a mais de história.
UHQ: E um encontro de Mágico Vento com Tex ou Ken Parker, pode acontecer algum dia?
Manfredi: Eu não aprecio os crossovers. Os personagens de quadrinhos nunca deveriam se encontrar uns com os outros. Quando isso acontece, geralmente as histórias tornam-se terrivelmente confusas.
UHQ: A tradição de duplas nos fumetti da Bonelli é muito forte (Tex e Kit Carson, Dylan Dog e Groucho, Martin Mystère e Java, Zagor e Chico e outros). Mágico Vento não é exceção, sempre acompanhado de Poe...
Poe e Mágico Vento |
Ned e Poe representam o modo como considero a amizade uma relação misteriosa (mesmo porque é de natureza não-sexual) entre pessoas que não têm os mesmos gostos, a mesma formação, o mesmo modo de ver as coisas, mas que podem se completar.
Mágico Vento |
E não se deve absolutamente confiar num amigo que não tem a coragem de mostrar alguma fraqueza ou fragilidade, de confessar suas dúvidas e anseios ao outro. Enfim, os amigos perfeitos não existem, porque a amizade é saber reconhecer e tolerar as imperfeições do outro. O amor pode se permitir ser cego, a amizade não, ela vê muito bem.
UHQ: Como é trabalhar para a Sergio Bonelli Editore?
Capitan Miki |
Discutir sempre faz bem, e me ajuda a entender o ponto de vista dele e, quando é o caso, saber reconhecer quando erro e ajustar a mira. Editores assim quase não existem mais hoje.
Eu, que também escrevo romances e publiquei nove com várias editoras, posso garantir que é cada vez mais raro um editor ler o que publica, e é mais ainda o que troca idéias com o autor.
Os escritores sofrem mais com isso do que com as críticas ou com a censura que havia uma época, porque acabam por se perguntar "se nem quem me publica lê o que faço, como essa coisa que escrevi poderá interessar ao público?".
Blek |
Manfredi: Antes de começar a escrever quadrinhos, eu era um grande leitor, não só dos títulos bonellianos. Agora não posso mais fazer isso, porque roteirizando HQs o dia todo e em quase todos os dias do ano, nos momentos livres prefiro relaxar lendo outra coisa, assistindo a filmes, participando de encontros, ficando com minha família (esposa e três filhas) e com os amigos, tocando ou andando a cavalo.
Preciso fazer outras coisas, senão acabo pensando em forma de quadros seqüenciais.
Gordon Link |
Manfredi: O editor era (Gino) Casarotti, da Dardo, uma editora de prestígio que havia publicado Blek e Capitan Miki, dois personagens que eram muito mais populares que Tex na Itália dos anos 50 e 60.
UHQ: Quais quadrinhos você lê atualmente? Quem são seus artistas de quadrinhos favoritos?
Manfredi: Como disse, leio pouco. Em geral, privilegio os quadrinhos novos e feitos por jovens estreantes, para ver se chegam novas tendências e talentos trazendo um pouco de ar fresco ao ambiente.
Em outros momentos, releio quadrinhos que considero obras-primas, com os quais sempre há algo a aprender, mas que a crítica - erroneamente - não considera como clássicos.
Mr. Natural, de Robert Crumb |
UHQ: Você gosta dos super-heróis? Quais seu favoritos?
Manfredi: Eu sempre gostei de Batman, porque é um esquizofrênico no seu perpétuo vaivém entre cômico e dramático. Também gosto dos personagens de Stan Lee, que é um mestre não só como roteirista, mas justamente como criador de personagens.
Stan Lee |
UHQ: O senhor gostaria de escrever as histórias de algum personagem ou título em especial?
Manfredi: Não. Na minha idade prefiro contar histórias de personagens criados por mim.
UHQ: Na sua opinião, por que o western norte-americano faz tanto sucesso na Itália?
Manfredi: Eu me fiz várias vezes essa pergunta, e não achei a resposta. Talvez os italianos gostem dos fora-da-lei porque aqui ninguém respeita as leis, nem os que as criam e as aprovam no Parlamento.
Talvez os italianos gostem de sonhar com um mundo em que, no final, se acaba num duelo: um vence e outro perde. E geralmente vence o melhor.
Una Fortuna D’Annata, romance de Manfredi lançado em 2000 |
UHQ: Hoje você se dedica somente aos fumetti ou ainda escreve romances e peças de teatro? Se sim, como consegue tempo para tudo isso?
Manfredi: Eu continuo fazendo várias coisas, mas os quadrinhos tornaram-se a principal. Sacrifico o tempo das férias e das viagens, e isso me pesa cada vez mais.
Mas quando fico mais de uma semana sem escrever, sofro. Devo ser um incurável grafômano, atormentado pela mania de escrever.
UHQ: É possível para um artista sobreviver trabalhando apenas com os fumetti na Itália? Quanta ganha, em média, um roteirista nesse ramo?
Manfredi: É muito difícil viver só de escrever. Eu consigo e me considero um privilegiado. Mas para um escritor não faz muito sentido preocupar-se com dinheiro. Seja muito ou pouco, ele está sempre atrás de uma mesa escrevendo. O que não é o máximo da vida.
Il Piccolo Diavolo Nero, livro de Manfredi lançado em 2001 |
Manfredi: Gosto de muitos deles. Tenho alguma afinidade com (Alejandro) Jodorowsky. Eu gostava muito de seus filmes também.
UHQ: Qual sua opinião sobre a invasão dos mangás no mundo inteiro? Você gosta desse estilo?
Manfredi: Eu gosto de mangá. Sim, eu gosto. Não tanto pelo estilo gráfico, que nós ocidentais podemos não entender muito bem, porque segue uma tradição muito particular, quanto pelos conteúdos que destacam certas tristezas, melancolias profundas, ansiedades e perturbações sexuais e do crescimento que, antes, não apareciam nesse gênero de quadrinhos.
Além disso, eles são mestres em misturar gêneros, passando de um a outro na mesma história com grande desenvoltura.
Luna Fatal |
UHQ: Você gosta de futebol? Torce para qual time?
Manfredi: Desde pequeno eu torço pela Juventus, mas sem grande entusiasmo. Diante de uma partida (qualquer uma, não só as da Juve) geralmente eu adormeço. Tenho a impressão de que depois de Maradona o futebol acabou.
As novas estrelas são falsas, a publicidade é muito maior que seu valor técnico. Aliás, como os astros do rock, que já nem cantam mais, fazem o público cantar e limitam-se a passear em palcos enormes, fazendo-se aclamar como pastores medíocres. E não falo só daqueles mais comerciais: nem o Bono, do U2, eu suporto.
UHQ: Você conhece o Brasil? E os artistas brasileiros, conhece algum?
Dylan Dog |
Mas fico irritado com o Carnaval do Rio, o oba-oba e todo aquele Brasil para turistas, que há décadas se repete sempre igual, mas que é falso como uma pizza congelada.
Dito isso, no plano da grande literatura de vocês, confesso que não sou entendido. E me envergonho disso, porque tenho muitos amigos entre os escritores latino-americanos em geral, mas nenhum brasileiro. E ainda não sei o porquê.
Por exemplo, recentemente estive na Semana Negra de Gijón, nas Astúrias, Espanha, uma convenção literária internacional, onde já estive antes e onde conheci Paco Taibo II (mexicano), Luis Sepúlveda (chileno), autores cubanos, venezuelanos, argentinos, mas quase nunca vejo brasileiros presentes. Por quê?
Gordon Link |
UHQ: O que espera de sua visita ao Brasil em outubro?
Manfredi: Em outubro, estarei no Festival de Quadrinhos de Belo Horizonte. Espero que vocês possam me sugerir filmes, discos, quadrinhos e livros que possam enriquecer meu conhecimento e me fazer apreciar as novas tendências. Eu vou levar uma mala vazia para trazer cheia.
Mágico Vento |
Manfredi: Eu acho que os leitores brasileiros apreciaram aquele misto de "mágico" e "histórico" que talvez seja a principal característica de Mágico Vento. De resto, esse misto não é uma novidade para a cultura de vocês. Quem sabe, pode ser que no íntimo eu seja mais brasileiro do que penso.
Então, agradeço por vocês terem me adotado e agradeço à Mythos Editora, naturalmente, por ter tido a coragem de publicar um quadrinho assim tão estranho e particular.
E agradeço a vocês por esta longa entrevista. Até breve.
Nenhum comentário:
Postar um comentário