Erotismo à italiana... em quadrinhos
O jornalista Gonçalo Junior, autor do livro Tentação à Italiana, fala dos quadrinhos eróticos na "bota"
O jornalista Gonçalo Junior |
Pouco mais de seis meses, ele emplacou outra belíssima obra: Tentação à Italiana, pela Opera Graphica, que espanta não só pelo conteúdo, mas pelo formato arrojado (o mesmo dos álbuns do Príncipe Valente).
Num bate-papo descontraído, gentilmente cedido ao Universo HQ pela Opera Graphica, Gonçalo conta desde como nasceu a idéia de fazer o livro até detalhes de seu próximo projeto, que também abordará o erotismo nos quadrinhos, mas dessa vez no Brasil. E no meio do caminho, claro, fala muito sobre Guido Crepax, Milo Manara, Paolo Eleuteri Serpieri, Barbarella, Valentina, Druuna, O Clic...
Tentação à Italiana |
Gonçalo: Levei cerca de seis meses para escrever o livro, entre pesquisas, análises e construção do texto. Tenho uma metodologia de trabalho que procuro seguir com rigor e disciplina, para que o objetivo seja alcançado. Quase nunca faço duas coisas ao mesmo tempo. Quando pego, procuro só largar após o ponto final. Assim, creio, ficou mais fácil de estabelecer algumas idéias críticas a respeito da obra de cada autor, a partir da leitura de praticamente tudo que fizeram em erotismo.
Desse modo, mergulha-se com maior intensidade no universo de cada artista e a "pescaria" fica mais produtiva. A idéia do livro nasceu de uma conversa com o editor Carlos Mann, no começo de 2002. Falávamos da superficialidade com que se costumava tratar os quadrinhos eróticos, uma vez que a crítica sempre ficou muito focada no traço, na beleza feminina estabelecida por esses autores.
Guido Crepax |
UHQ: Você acompanhava regularmente os trabalhos desses autores?
Gonçalo: Sempre fui um grande admirador de Crepax, Manara e Serpieri, além de muitos outros. Acompanhava todos eles com fidelidade canina, a cada álbum publicado no Brasil ou na Europa - que conseguia comprar por aqui. Desde que a Martins Fontes lançou O Clic, em 1987, tornei-me fã.
Paolo Eleuteri Serpieri |
A idéia de escrever um livro mais analítico me empolgou porque sempre estive muito perto da obra desses autores.
UHQ: O livro foi produzido sob a ótica de um fã?
Gonçalo: Pelo contrário. Procurei me impor o desafio de fazer uma análise crítica o mais rigorosa possível desses artistas, mostrar suas referências e influências e lhes dar um caráter de autores de legítimas obras de arte. É, portanto, um livro teórico, sim, mas sem a metodologia e a chatice que se encontra em algumas teses acadêmicas mais conservadoras nesse aspecto.
Milo Manara |
UHQ: Em 2004, você lançou A Guerra dos Gibis, um longo estudo sobre a censura aos quadrinhos no Brasil. Essa guinada para o tema sexo - que normalmente enfrenta certa resistência, tanto de editores quanto de livreiros - não o intimidou?
Gonçalo: Não. Primeiro, porque parti da certeza de que teria onde publicar e não seria censurado de forma alguma. Carlos Mann não limita número de páginas, não faz censura política ou ideológica, não impôs qualquer regra. Diz apenas: "Escreva o que quiser". Não tenho a pretensão de agradá-lo, mas justiça seja feita.
Serpieri e Druuna |
E quero ressaltar que o tema erotismo é o foco de A Guerra dos Gibis 2, que escrevi antes do volume 1 e, provavelmente, não receberá este título. Estudo a censura aos quadrinhos e às revistas erótico-pornográficas entre 1964 e 1985, a partir da trajetória de duas editoras, a Edrel e a Grafipar. Faço um mergulho nesse mundo marginal e mostro como a repressão ao sexo durante a ditadura foi um elemento importante para sustentação do regime.
No momento, tento enxugar esse material já escrito, que renderia um livro de mil páginas. Espero muito publicá-lo em 2006.
UHQ: Em Tentação à Italiana é nítido seu esforço em realçar a linha tênue que separa o erótico do pornográfico, o bom-gosto do vulgar. Acha que atingiu esse objetivo?
Uma das musas de Manara |
Minha visão da pornografia, construída a partir do longo estudo que fiz sobre a indústria editorial do sexo na ditadura brasileira, é o de que ela distorce a visão que o homem forma da mulher e acaba por estragar os relacionamentos entre os sexos. Não quero dizer que deva ser proibida. Longe disso. Compra quem quer e deve continuar assim.
Emmanuelle, Bianca and Venus in Furs, de Guido Crepax |
UHQ: Então, o erotismo é essencialmente mais feminino e a pornografia, masculina?
Gonçalo: Perfeitamente. Essa é a síntese. A pornografia é visual, assim como o sexo para o homem é visual. Por isso, podemos ser tão facilmente manipuláveis. Muitas mulheres desconhecem que têm esse poder.
UHQ: Dos autores que aborda no livro, qual o mais importante em termos de inovação e influência no gênero?
Valentina |
UHQ: Por falar nela, que importância Valentina tem para os quadrinhos adultos europeus?
Gonçalo: Embora Valentina tenha sido muito influenciada pela francesa Barbarella, de Jean-Claude Forest, coube a ela se tornar a ponta-de-lança de uma revolução na linguagem dos quadrinhos, promovida por Crepax.
Pôster de Barbarella |
Ela incorporou a revolução sexual e a contracultura, a nouvelle vague do cinema francês como nenhum outro personagem dos quadrinhos. Nesse contexto, estabeleceu modismos para o comportamento feminino, desnudou o universo da mulher para o público masculino, pregou sua liberdade sexual e o direito ao prazer. Daí sua enorme importância, que tomei a liberdade e a pretensão de ressaltar.
Valentina |
Gonçalo: Muito já se disse que os desenhos bastavam. Não é por aí. Meu propósito foi mostrar que tão importante quanto a arte eram as tramas, os roteiros, os universos densos e peculiares que cada autor criou para suas personagens.
As obras de Crepax, Manara e Serpieri são eternas porque existe nelas uma inegável densidade literária e, conseqüentemente, de valorização artística. Por isso, já duram tanto tempo. E são conhecidas não apenas pela longevidade e constância de sua produção.
Valentina |
Gonçalo: No caso de Crepax, a evolução foi permanente e constante até o fim de seus dias, em 2003. Ou melhor, até quando produziu, pois havia se afastado do desenho por problemas de saúde nos últimos anos. Em quase quatro décadas de produção, ele jamais se acomodou. Além de manter Valentina em atividade e de envelhecê-la num tempo próximo do leitor, nunca parou de experimentar em suas histórias. Ao mesmo tempo, criou personagens marcantes como Bianca e Anita e adaptou clássicos do erotismo e do terror de uma forma bem pessoal e ousada.
Druuna |
Manara também seguiu o mesmo caminho de Crepax nos 15 primeiros anos. Só acho que não devia ter cedido aos apelos do mercado e feito as continuações de O Clic, que são apressadas, incoerentes e repetitivas.
UHQ: Qual a importância dos demais autores da arte erótica citados no livro? Em que medida foram influenciados pelos três grandes mestres?
Franco Saudelli e Jean Claude Forest |
Falo deles na parte final do livro, em pequenos capítulos. Só não sei até onde as inconstâncias do mercado frearam a produção erótica desses artistas. Rotundo, por exemplo, tem um nível excepcional. O que Magnus fez em As 101 Pílulas vai além do extraordinário.
Barbarella |
Gonçalo: Ela entra no anexo não apenas por seu pioneirismo, como já disse, mas porque achei importante mostrar suas peculiaridades. Afinal, poucos leitores brasileiros tiveram acesso a seus quadrinhos. Barbarella foi tão importante para as HQs que ainda não conseguimos dimensionar o quanto. Nem mesmo os franceses se deram conta disso, até onde sei.
UHQ: O maior mérito dos italianos está na reciclagem e adaptação de personagens, temas e padrões americanos, franceses etc., ou na criatividade espontânea, distante da influência estrangeira?
Gonçalo: Fico com a segunda opção. O êxito está principalmente na liberdade que se deram para criar a partir do erotismo. Tanto que ainda são censurados em vários países. Na verdade, existe uma tradição de erotismo na Itália que remonta aos tempos do Império Romano e que reapareceu com força nas artes plásticas e na escultura durante o Renascimento. Nem mesmo a presença forte da Igreja conseguiu contê-la.
Gullivera, de Manara |
Manara e Serpieri fazem quadrinhos pop, universalizados, porém com total liberdade de criação e concepção, dentro dessa tradição italiana.
UHQ: Já quase um século, os Estados Unidos exportam, nos comics, seus padrões para quase todo o mundo. Recentemente, o Japão trilhou os mesmos passos com mangás. Por que essa hegemonia não passou para a Itália, que é o país do design e das artes gráficas?
Morbus Gravis - Druuna |
Como conseqüência, o mercado passou por um período traumático, confuso, quando predominou o plágio e a influência norte-americana nos autores. Principalmente o faroeste. Depois da guerra, essa censura acabou. No começo da década de 1960, surgiu na Europa um movimento simultâneo de valorização dos quadrinhos, principalmente pela Universidade e pelo aparecimento de críticos e historiadores.
A partir desse momento, a Itália começou a desenvolver um quadrinho adulto e mais autoral, que conseguiu se estabelecer, mesmo com a forte presença dos comics e seus temas americanos. Surgiram grandes revistas e autores, com trabalhos consistentes que, de certo modo, devem ter contribuído para permitir uma vida própria às HQs italianas.
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