Livros: A efervescência criativa da obra A Invenção de Hugo Cabret
Brian Selznick nos tranporta para o universo nostálgico inspirado pela Belle Époque em livro infantil recomendado para todas as idades.
Com mais de quinhentas páginas, a primeira impressão que se tem sobre “A Invenção de Hugo Cabret”, escrito por Brian Selznick e adaptado para o cinema por Martin Scorsese (o filme chega em fevereiro nas telonas brasileiras), é de que ele é um livro cinematográfico. Um instigante e mágico storyboard que ganhou publicação em uma edição especial e bem acabada que a editora brasileira SM lançou no país em 2007.
Brian Selznick é norte-americano. Além de escritor, ele também é ilustrador, formado pela Rhode Island School of Design. Durante um período de sua vida, Selznick trabalhou em uma livraria e lá guardou tudo que aprendeu com livros infantis para aplicar sua experiência em obras como “O Rei Robô”, “Menino de Mil Faces”, “A Caixa de Houdini” e “A Invenção de Hugo Cabret”.
A trama se passa na Paris de 1930. Em meio a fatos históricos como a revolução industrial e o surgimento do cinema na França, Brian Selznick traz Hugo Cabret, um órfão que vive sozinho na estação de trem parisiense. Cabret perdeu o pai em um incêndio, uma figura que admirava especialmente por sua dedicação ao ofício de relojoeiro e pela atenção dispensada na criação de seu filho. Após o incidente, Cabret passa a viver com o tio que morava e trabalhava na estação de trem de Paris. Com ele, o garoto aprende a roubar para sobreviver às novas e precárias condições de vida.
Como a desgraça não é pouca na vida de Hugo Cabret, seu tutor simplesmente desaparece depois de um tempo e o deixa só em um dos quartos no vazio corredor das dependências da estação. Para não ser descoberto pelo inspetor do local, Hugo cumpre com a obrigação incumbida a seu tio de manter o funcionamento dos relógios da estação, assim ninguém sentiria a ausência do funcionário e, consequentemente, nunca investigaria as dependências do lugar já que somente ele vivia ali.
A situação seria mantida assim até Hugo descobrir que misteriosa mensagem teria sido deixada por seu pai em um autômato, um boneco confeccionado com peças de relógio e programado para reproduzir a escrita humana (um robô adaptado para a época). A chave para o funcionamento do autômato está no caderno de anotações de seu pai que, em função de uma das peripérsias de Hugo, acaba nas mãos de Georges Méliès, então dono de uma lojinha de brinquedos próxima da estação que Cabret vive.
O universo do protagonista é paradoxalmente solitário e afetuoso, aquele típico afeto encontrado com mais facilidade em contos infantis. Hugo Cabret tem que viver toda sua vida no anonimato para não ser pego pelo inspetor da estação de trem e ser jogado em um orfanato qualquer. Apesar de ser praticamente um eremita, o garoto transborda sensibilidade e calor humano, demonstrados na comovente ligação que possui com seu pai.
Um dos maiores acertos da editora brasileira foi preservar o trabalho de Selznick em sua diagramação. A edição nacional de 2007 respeita as decisões do autor, fator fundamental para o “consumo” da obra em nosso país. “A Invenção de Hugo Cabret” é um livro que transmite sua mensagem não apenas pela disposição ou pelas escolhas das palavras de Selznick em um parágrafo ou mesmo pelo apuro intelectual ou lúdico do autor. Trata-se de um livro físico, visual, que intercala os parágrafos de seus capítulos com ilustrações do próprio autor. Ainda não há informações se haverá um relançamento no Brasil pela SM em função da estreia do filme do Scorsese. No entanto, fica a expectativa de que não seja mais uma daquelas edições que alteram a diagramação e a arte da capa em prol de referências visualmente explícitas ao filme (leia-se: pôster do filme como capa do livro).
As ilustrações de Selznick lembram rabiscos improvisados pelo próprio protagonista. Não primam pelo rigor artístico e nem precisariam ou deveriam, já que, em função destas características, servem à trama e à imaginação do leitor com muita eficácia. A arte do americano é parte intrínseca de sua própria narrativa textual, uma não sobreviveria ou seria tão plena caso a outra não existisse. Assim, o livro apresenta-se como um storyboard para cinema com desenhos que simulam zooms e planos-sequências inspirando a imaginação cinematográfica de seus leitores.
Nada mais apropriado. “A Invenção de Hugo Cabret” é um conto comovente com personagens bem construídos, mas é acima de tudo uma grande homenagem à sétima arte em seu momento de efervescência criativa e de encantamento das plateias, os seus primeiros passos. As obras de Charlie Chaplin, François Truffaut e, principalmente, Georges Méliès projetadas pelos olhos de Hugo nos fazem lembrar porque amamos tanto esta manifestação artística que estimula os mais variados sentidos do corpo e da alma humana.
Para os interessados somente na obra cinematográfica – o que de maneira alguma pode ser considerado como sacrilégio, como costumam apregoar os que inconscientemente consideram uma obra audiovisual inferior à literatura -, não estranhem o envolvimento de Martin Scorsese na película. Acostumado aos violentos subúrbios norte-americanos, Scorsa se aventura em um terreno mais suave que o de costume. No entanto, o livro reverencia aquilo que o cineasta mais ama e nutre sua carreira: seu próprio ofício.
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