Nesta última década foi bastante notório o salto que a chamada cultura pop deu em nossas vidas. Nossos gostos, hobbies e meios de entretenimento nunca foram tão presentes em referências no cotidiano, nas mais variadas mídias, e nunca tivemos tanto orgulho de levantar as bandeiras daquilo que consumimos e apreciamos.

Chamada de Geração Y pelos mais velhos, a população nascida no começo dos anos 80 inaugurou o modelo de juventude que absorve lazer e diversão em quantidades astronômicas, movimentando a indústria do entretenimento de uma maneira exponencial que só deve ter sido superada pela – convenientemente chamada – Geração Z, surgida nos anos 90. Deixando os rótulos de lado, o que importa é que temos pouquíssimos jovens – e incluo os  jovens adultos – que podem dizer que nunca seguraram um joystick, empolgaram-se com um grande blockbuster ou desconhecem a brincadeira internética com os memes.

Em tempos de cada vez mais adaptações cinematográficas de obras das mais diversas mídias, de Comic-Con’s com lançamentos maiores e mais comentados a cada ano e da overdose de referências aos quadrinhos e games – “Sucker Punch – Mundo Surreal”, de Zack Snyder, e “Kick-Ass – Quebrando Tudo”, de Matthew Vaughn, para citar poucos –, os interesses convergem, através das facilidades e da abundância de conteúdo, para essa era de ouro do entretenimento.

O anti-herói pós-adolescente
 

Desses jovens adultos que hoje orgulham-se de suas raízes na cultura pop, destacamos o desenhista e escritor canadense Bryan Lee O’Malley, responsável por uma das maiores odes ao entretenimento. Bryan pintou um retrato das gerações que cresceram chutando cascos de tartaruga nos inimigos ou decoraram cada página de super-herói lida na infância e nos presenteou em 2004, com “Scott Pilgrim”, uma obra em quadrinhos – posteriormente levada ao cinema – que aborda inclusive outra questão vivida a partir da Geração Y: o prolongamento da adolescência e as dificuldades em migrar para a assustadora vida adulta.

Ao entrar no universo deste, digamos, anti-herói do cotidiano pós-adolescente, conhecemos uma turma de jovens amigos – ou nem tanto – que levam suas vidas de maneira quase displicente no frio da cidade de Toronto, no Canadá. Encabeçando os acontecimentos temos justamente Scott Pilgrim, de 23 anos, que mora praticamente de favor na casa de seu amigo Wallace Wells e não tem a menor ideia do que fazer com sua vida.

Na primeira das seis edições da obra – que no Brasil foi reunida em três volumes – conhecemos um pouco do cotidiano de Scott e de sua (falta de) perspectiva da vida. Tocando em uma bandinha de garagem chamada Sex Bob-Omb – e aqui você ganha uma moeda se percebeu a referência a um clássico inimigo dos games do Super Mario –, sem um emprego de verdade e mergulhado na indiferença, Scott desperta a estranheza de seus poucos amigos ao iniciar um namoro com Knives Chau, uma adolescente chinesa de 17 anos. “Quantos anos você tem, Scott? 28?”, pergunta em tom de ironia sua rabugenta amiga Kim Pine. O descaso da moça, cujo motivo do constante mal-humor nos é apresentado ao logo da história, reflete o modo como a juventude canadense se comporta na obra de O’Malley, alternando o cinismo ácido com carências e angústias próprias de uma faixa etária mais abaixo.

“A Preciosa Vidinha de Scott Pilgrim” – título do primeiro volume publicado – culmina com a apresentação da personagem responsável por colocar a vida de Scott em movimento. Ramona Flowers, a jovem americana novata na cidade, desperta sua atenção ao povoar os sonhos do garoto de maneira quase obsessiva (a explicação para este fato é ainda mais inusitada), fazendo com que Pilgrim aproxime-se dela de forma desajeitada em uma festa. A partir daí, o jovem ganha uma preocupação na vida: com o envolvimento inevitável, Scott é informado – por meio de diálogos cada vez mais absurdos – de que para permanecer com a moça deverá enfrentar uma “liga” formada por seus sete ex-namorados do mal. Isso mesmo, simples assim.

Referências e mais referências

 

Tem início então a aventura de “Scott Pilgrim Contra o Mundo”, título mais famoso da série, utilizado inclusive em sua adaptação cinematográfica. Scott parte para encarar seus oponentes e aqui o clima de “trama adolescente padrão” é quebrado com humor e uma certa dose de bizarrice. Conhecemos um indiano esquentado com poderes místicos, um arrogante ator de cinema que conta com a ajuda de seus dublês, um vegetariano superpoderoso, dois perversos gêmeos orientais, uma garota que – segundo Ramona – foi “apenas uma fase” e o misterioso e egocêntrico Gideon, sobre o qual a garota prefere nem comentar.

As batalhas são homenagens aos clássicos games de luta dos anos 80 e 90, com direito a barras de energia, vitórias por K.O. e prêmios em moedas ao fim de cada desafio. Esta, aliás, é a característica base da narrativa de O’Malley. “Scott Pilgrim” é todo elaborado com referência à linguagem dos games e desenhos animados, sendo possível a todo momento pescar referências como um “continue” ganho ao final de um nível, uma barra de níveis indicando emoções, efeitos gráficos que ilustram poderes ou golpes especiais e mesmo menções claras a jogos, bandas e músicas de relevância para a cultura pop.

 

Tudo é exagerado e hiperbólico – como os flashbacks das brigas de colégio de Scott ou as reações histéricas de alguns personagens, como a ciumenta Knives -, o que, somado ao traço característico de O’Malley, garante uma personalidade tão forte à obra que é impossível acompanhar o desenrolar da trama sem se habituar e mesmo curtir esta forma de narrativa. O desenho em preto e branco tem claras influências do traço oriental dos mangás e animês, reforçados ainda mais pelo detalhes gráficos das cenas de ação, os enquadramentos e mesmo algumas gags visuais e expressões faciais. Mas a arte de “Scott Pilgrim” é tão “solta” e pessoal que passamos a enxergar isto como não mais que um ingrediente adicionado à sopa de conteúdo pop que é esta história.

Scott é ingênuo – ou simplório, algumas vezes – e irresponsável, e é aí que reside o mote de sua aventura. Após destruir alguns corações e ter o seu próprio pisado de vez em quando, aos poucos modifica o modo como interage com seu ciclo de amigos e vai percebendo a inevitabilidade e a dor do amadurecimento. O velho arco narrativo de autoconhecimento e aprendizado pelos erros é o que amarra as pontas de uma trama que começa tão direta e acaba englobando tantos sentimentos e reflexões da parte de Pilgrim.

Quem disse que as dúvidas acabam com a adolescência? As dificuldades em se tornar um “novo adulto”, em manter não apenas a cabeça no lugar, mas a companhia das pessoas que nos dão suporte, são os desafios aceitos por Scott em “A Hora e a Vez de Scott Pilgrim”, desfecho da série publicado em 2010. No derradeiro momento de clareza e amadurecimento do personagem, fica claro por que o chamei de “anti-herói”. Scott não é tão vítima dos acontecimentos, nem tão bom quanto acredita ser, e precisa passar por cima do próprio egoísmo e da preguiça para enfrentar a vida. Pilgrim nos mostra com competência e humor como é cada vez mais difícil crescer e abandonar alguns hábitos da adolescência, mas ensina como tudo se torna mais fácil se você tem algumas vidas extras e uma espada katana concebida pela sua força de vontade.

Nas telonas
 

Uma obra com esse grau de imersão na cultura pop só poderia se espalhar por outras mídias. “Scott Pilgrim Contra o Mundo” foi a adaptação cinematográfica lançada em 2010 e dirigida por Matthew Vaughn (“X-Men: Primeira Classe”). O longa foi bem recebido pelos fãs, que compreenderam algumas poucas modificações necessárias à nova linguagem e aplaudiram o zelo na transposição da trama para as telas. Contudo, o filme não atingiu a audiência esperada para uma obra tão “jovem” deste tipo, talvez pela necessidade de uma certa base de conhecimento para um melhor aproveitamento dos detalhes da trama.

“Scott Pilgrim Contra o Mundo” é ainda assim um filme carismático, que nos brinda com o visual que a história merece. O elenco – encabeçado por Michael Cera (“Superbad – É Hoje”), no papel principal, e Mary Elizabeth Winstead (“Premonição 3”), como Ramona, – é firme e se mostra bem à vontade para interpretar a turma de Toronto que divide o tempo entre seus pequenos empregos (não no caso de Pilgrim) e os pubs locais. Destaque para Kieran Culkin, irmão de Macaulay Culkin, como o sarcástico companheiro de quarto de Scott, Wallace Wells.

A repercussão com o lançamento nos cinemas acabou jogando luzes sobre a obra, que ganhou uma espécie de prólogo animado retirado diretamente dos quadrinhos. O vídeo apresenta os personagens e complementa a história para quem chegou a Scott diretamente pelo longa. Assista abaixo, em inglês:

Pilgrim também ganhou uma versão na mídia preferida de Bryan O’Malley: os videogames. “Scott Pilgrim vs. the World: The Game” foi lançado em agosto de 2010 para Playstation 3 e Xbox 360, pelas mãos da Ubisoft, trazendo a experiência de um game de luta beat’em up onde você anda em uma direção e enfrenta inimigos pela tela, como o clássico “Streets of Rage”, e permite ao jogador escolher entre Scott, Ramona, Kim Pine ou Stephen Stills – vocalista da Sex Bob-Omb e amigo próximo de Scott. O jogo, obviamente carregado de referências diversas ao próprio universo dos games, foi bem recebido pelo público e chegou a receber nota 8.0 do site IGN, famoso portal que analisa filmes, games, música e outras mídias.