domingo, 25 de abril de 2010

CARLOS PAREDES


O mundo segundo Carlos Paredes

Por Viriato Teles

Escrito em Julho de 1998


Morre aos 79 anos o maior mestre da Guitarra Portuguesa: Carlos Paredes - o humilde génio e dono do maior legado da memória de um povo de guitarristas. Em 1998, o Jornalista Viriato Teles falou dele, deixando viva uma memória, como mais ninguém sabe contar.

Texto de Viriato Teles
Tenham a bondade, senhoras e senhores. Instalem-se bem. Depurem os tímpanos e afaguem a alma, para que não percam uma só nota daquilo que vão ouvir. Estes sons raros e delicados vêm de uma antiquíssima galáxia povoada de gente boa, onde o mais importante são os Amigos e as infinitas formas de partilhar com eles os sentimentos, os afectos, as emoções.

Os Amigos, então. São eles, mais do que a própria guitarra que tanto venera, aquilo que acima de tudo importa no universo de Carlos Paredes. À volta da música surge a conversa, sempre em busca de um superior conhecimento do mundo. Para Mestre Paredes, as coisas são tão simples como respirar: «As pessoas gostam de me ouvir tocar guitarra, a coisa agrada-lhes e eles aderem. Não há mais nada.» (Público, 20.3.90).

É, pois, normal que Paredes se espante, com as emoções que ele mesmo provoca junto de quem o ouve: «Já me tem sucedido fazer as pessoas chorar enquanto eu toco... E eu não compreendia isto, mas depois percebi que é a sonoridade da guitarra, mais do que a música que se toca ou como se toca, que emociona as pessoas.»

A guitarra, as pessoas, a vida - eis aquilo que verdadeiramente conta para Carlos Paredes. Mas quem é, afinal, este homem tão humanamente humano? Quem é este Paredes, para lá da guitarra de que os seus dedos ágeis conhecem os mais íntimos recantos? Não é questão a que possa responder-se facilmente, tanto pelo seu permanente acanhamento em referir-se a si próprio, como pela lealdade dos que lhe estão ou estiveram mais próximos e que preferem guardar para si os momentos partilhados com o músico.

São lendárias as histórias da sua distracção congénita, da sua simplicidade comovente, episódios de alegrias, emoções e ternuras contados sem maldade em serões de amigos comuns. E é aí que devem continuar, longe dos apetites mundanos que acabariam por transformar estes momentos únicos em banalidades de um qualquer anedotário. Vamos, pois, aos factos que são do conhecimento mais ou menos geral.

Nascido em Coimbra a 16 de Fevereiro de 1925, respectivamente filho e neto de Artur e Gonçalo Paredes, Carlos aprendeu a tocar guitarra portuguesa quando tinha apenas cinco anos. Ainda tentaram ensinar-lhe piano e violino, mas «Por preguiça», não se ajeitou aos instrumentos. «A minha mãe, coitadita, arranjou-me duas professoras», conta o músico. «Eram senhoras muito cultas, a quem devo a cultura musical que tenho. Passávamos horas a conversar e uma delas murmurava: "Não sei o que hei-de dizer aos seus pais". Mas aprendi muito com elas.» (Jornal de Letras, 17.3.92).


Aos nove anos muda-se com a família para Lisboa, onde conclui a instrução primária, no jardim Escola João de Deus. Passa pelo Liceu Passos Manuel antes de ingressar no Instituto Superior Técnico, onde não chega a licenciado. Casa e tem filhos. E nunca pára de tocar a sua guitarra.

A música é, já nessa altura, uma paixão a que Carlos Paredes se entrega com intensidade. Mas só em 1957, com 32 anos, dá pela primeira vez notícias em disco, num EP gravado para a Alvorada. Três anos depois, a sua música é utilizada por Cândido da Costa Pinto na curta-metragem "Rendas de Metais Preciosos", mas será em 1962 que, com a banda sonora encomendada por Paulo Rocha, gravará a primeira das suas composições mais geniais – "Verdes Anos", apenas, tal como o filme.

O cinema, de resto, é uma presença constante na obra de Paredes, e ao longo da década de 60 a sua música ilustrou filmes de Pierre Kast e Jacques Doniol-Valcroze, Jorge Brun do Canto, Manoel de Oliveira, António de Macedo, José Fonseca e Costa, Manuel Guimarães e Augusto Cabrita. Para teatro, destaca-se o seu trabalho para a peça "O Avançado Centro Morreu ao Amanhecer", de Cuzzani, levada à cena em 1971 pelo Grupo de Campolide - por cuja selecção musical ficou responsável durante mais meia dúzia de anos.

Quanto a discos publicados, é o que se sabe. Perfeccionista sempre insatisfeito, Paredes fez rarear as edições das suas músicas, que actualmente se resumem a três CDs de originais, dois em colaboração (com António Victorino d'Almeida e Charlie Haden), uma gravação ao vivo em Frankfurt, e algumas colectâneas de raridades.


O primeiro álbum (que era como então se chamava aos discos de 33 rotações por minuto), publicou-o Paredes em 1967, na Valentim de Carvalho: chama-se "Guitarra Portuguesa" e foi gravado em Paço d'Arcos, com Fernando Alvim como acompanhante à viola e Hugo Ribeiro na técnica. Alain Oulman, o francês de alma lusa que escreveu para Amália músicas como "Gaivota", assinava o texto de apresentação deste jovem músico que se estreava em disco grande aos 42 anos.

"Movimento Perpétuo", editado em finais de 1971, confirmou em definitivo o carácter único da sua música. Depois veio Abril. Deixando para trás projectos que ficariam semi-gravados (e que só muito mais tarde, em 1996, surgiriam na colecção de inéditos "Na Corrente"), Paredes entregou-se de corpo e alma à revolução emergente, percorreu o país de ponta a ponta, com a mesma generosidade com que, no tempo da ditadura, espalhava a sua arte por colectividades e pequenos grupos dos tais Amigos que se juntavam para ouvir estas músicas mágicas que anunciavam um mundo melhor. E, assim, só em 1988 voltaria a publicar um trabalho de estúdio, "Espelho de Sons".

Durante quase todo este tempo foi, também, funcionário do Ministério da Saúde, que faria dele arquivador de radiografias no Hospital de São José - até que, já nos anos 80, um ministro mais atento o promoveu, à sua revelia, a um cargo onde não tinha que fazer rigorosamente nada (um dos tais imprevistos admiráveis que um dia alguém contará). E só então lhe sobrou o tempo todo para a dedicação plena à guitarra, a que Paredes atribui todas as virtudes da sua arte: "A própria guitarra, o próprio tipo de sonoridade da guitarra é que emociona", garante.



A modéstia de Carlos Paredes é a única coisa que pode comparar-se em grandeza, com o seu enorme talento. Não se pense, porém, que esta atitude tem o quer que seja de auto-apoucamento, de falta de confiança e/ou de consciência do valor próprio da sua arte. Pelo contrário: «A música que eu faço tem normalmente estrutura da pequena canção, da cançoneta. Por isso é que eu costumo dizer sou um compositor de pequena música. É um termo que nunca utilizo no sentido pejorativo, mas que foi necessário, no critério de alguns musicólogos, distinguir um determinado tipo de música, a que também se chama música ligeira de um outro, a música clássica. Esta seria a "grande música" e, como música ligeira me parece um termo muito vago, então optei por lhe chamar "pequena música"." Mas atenção: «Quando eu falo de pequena música, pretendo apenas qualificar música que, estruturalmente, é simples e que pode até ser, do ponto de vista estético pouco apreciada, mas que não deixa de ser música. Se eu toco para várias pessoas que me ouvem com atenção, é porque lhes estou a dar prazer. E mesmo que esteticamente seja uma música menor, em termos de qualidade, não tenho que me envergonhar dela, não acha?» (Se7e, 5.10.83).

Este enorme pudor que colocou Paredes no pedestal mais alto da dignidade humana reflecte, apenas, a extrema exigência de rigor que tem para consigo próprio e que, como notou o jornalista António Costa Santos, "o leva a cada passo à mais feroz autocrítica e, por conseguinte, a considerar que a opinião do interlocutor, só é válida e respeitável, como poderá, a priori, ser mais adaptada à realidade do que a sua". Isto porque Paredes "acredita que, se os outros afirmam algo, é porque como ele faz, dissecaram em conversa prévia com os seus botões toda a que antes de botarem sentença. E como, para Paredes, seremos sempre mais do que ele capazes de, após reflectir, ver correctamente a essência das coisas, temos razão e ele vai pensar nas novas perspectivas que lhe abrimos, no que 'aprendeu' connosco" (Expresso, 21.3.92).

Carlos Paredes é, pois, daquele género raro de seres que praticam as relações humanas segundo uma ideia ideal que passa por uma ilimitada vontade de compreender, de olhar as pessoas dentro dos olhos, conhecê-las, gostar delas. E de comunicar com elas na sua globalidade humana de virtudes e de defeitos, sendo que há defeitos que podem ser qualidades e virtudes que podem afinal não ser assim tão virtuosas, tudo dependendo da perspectiva, do momento, daquela razão tão última e tão íntima que às vezes nem o próprio consegue definir.



"Explica-me os morangos", pediu uma vez jacques Brel ao seu amigo Olivier Todd. Brel, sonhador inveterado de um plat pays em tantas coisas parecido com o nosso, sabia que os morangos só se podem descrever e saborear. Com a música de Paredes passa-se algo de semelhante: não se explica, apenas se ouve e se sente.

Paredes é, por natureza, um homem que não se cansa de aprender, daqueles para quem a dúvida é sempre mais criativa do que a certeza final. Por isso nunca toca duas vezes uma música exactamente da mesma maneira. Por isso, também, só a muito poucos concedeu o privilégio de participarem intimamente na sua arte: Fernando Alvim e Luísa Maria Amaro, antes de todos; Victorino d'Almeida e Charlie Haden, quebrando as barreiras entre linguagens musicais aparentemente distintas, e poucos mais.

Do mesmo modo, Paredes consegue ser o maior mestre vivo da guitarra portuguesa sem nunca ter tido a sua ao serviço do fado dito tradicional. Porque, explica o músico, «o fado aconteceu em Portugal por razões bem concretas, foi uma expressão autêntica de um certo tipo de lirismo», mas «foi empobrecido por força das pressões sociais que estavam interessadas na sua adulteração e foi prejudicado na sua autenticidade por quem estava interessado em transformá-lo em objecto mistificador».



Por discrição e porque Paredes só se sente bem no meio dos amigos, encontramo-lo mais depressa - ainda que também raramente - em discos de cantores como Adriano Correia de Oliveira ("Que Nunca Mais", com textos de Manuel da Fonseca e arranjos de Fausto) e Carlos do Carmo "Um Homem no País", com letras de José Carlos Ary dos Santos), ao lado de poetas como Manuel Alegre ("É Preciso Um País") ou incentivando e procurando entender as experiências sonoras de músicos mais jovens. E que bem que sabe ouvir o Mestre assumindo discreta mas apaixonadamente a condição de puro participante em trabalho alheio, como sucede nos discos citados do Adriano e do Charmoso...

Para Carlos Paredes, a música é, antes de tudo, um acto de amor: «Para se fazer música com prazer tem muita importância a amizade entre as pessoas. Não se pode fazer música friamente e com cálculo, profissionalmente, no mau sentido da palavra, a receber x à hora. Não pode ser assim.» (Se7e, 16.3.88). Por isso, como se sente melhor a tocar é «em família, na intimidade. Acompanhando o tocar de uma conversa em que falamos de nós, dos amigos, dos acontecimentos da vida diária.»

Num tempo dominado pela crescente novagentização da sociedade, as palavras que Carlos Paredes partilha com o mundo, nas entrevistas que já deu, são a prova de que existe um país muito parecido com o nosso e que também se chama Portugal, mas onde as coisas fazem outro sentido. Ouçamo-lo quando lhe pedem para definir a sua arte: "A música que faço é um produto das circunstâncias imediatas do tempo em que eu vivo, e passará a ser encarada de outra forma quando essas circunstâncias desaparecerem. É urna coisa que, se perdurar graças aos discos, ficará apenas com o valor de documento, como acontece com toda a pequena música, desde os Beatles ao Manuel Freire. E já ficarei muito orgulhoso se, daqui a muitos anos, puder ser entendido como um compositor que se integrava bem nos acontecimentos desta época ... » (Se7e, 5.10.83).



Carlos Paredes é isto. Sereno, frontal, humilde. Mas sempre seguro das convicções - mesmo se as convicções não são mais do que as incertezas em que acreditamos. Atento aos pormenores de tudo o que acontece em seu redor, Paredes não deixou que as transformações do mundo lhe passassem ao lado. À semelhança de muitos outros que, como ele, dedicaram toda a vida a lutar "para que ninguém mais tivesse que lutar", como diria Vinícius, também Paredes sentiu o peso de algum desencanto. "O ideal não morreu e verifica-se que há determinadas coisas que só um sistema avançado pode resolver. Mas não pode ser de uma forma mecânica; é preciso ver, meditar e sobretudo ter um grande respeito pelos outros" (Expresso, 21.3.92)



Um grande respeito pelos outros. Eis o que faltou às utopias, mas nunca deixou de estar presente na vida, na música e nos gestos de Paredes. É nesse mundo de Amigos que se respeitam e se amam, que vive Carlos Paredes; é desse mundo, onde a Verdade e o Prazer caminham de mãos dadas, que nos ilumina com a grandeza simples dos sons que só ele sabe inventar.


Um génio? Ele diz que não, que é apenas um homem igual aos outros, capaz de amar e de sofrer, de rir e de chorar. «Geniais são as pessoas que respeitamos muito Génio era Mozart.» Génio, génio grande e generoso, é este Carlos Paredes, digo agora eu. E o futuro que me desminta, se for capaz.


Lisboa, Julho de 1998

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