Amigos, reproduzo abaixo um post recente em que antecipava o fim inevitável da Modern Sound, conforme noticiado nos jornais esta semana, afetada pelas transformações no mercado do disco. Com o fim da loja, acaba um dos melhores espaços de música ao vivo da cidade, e dos mais baratos. O clima musical da loja, criado não só pelos produtos à venda, mas sobretudo pela presença constante de músicos, DJs, produtores musicais, estudantes e amantes da música, é insubstituível. Havia um intercâmbio constante de idéias e informações sobre o mundo do disco, dos shows etc. Quem viveu, viveu.
Mergulhamos agora na era do superindividualismo. Cada um no seu canto, com seu iPod ou coisa que o valha, sem ouvidos para o mundo que o cerca. O compartilhamento de sons e idéias, só por e-mail e afins. Para ouvir um bom show, só pagando os preços exorbitantes que se cobram por aí. Para comprar CDs, só baixando na internet ou indo ao supermercado. Como lembra o Pedro Tibau, um dos sócios, há dez anos havia 40 lojas de discos em Copacabana, hoje, só resta a Modern.
Mas a loja vai fechar as portas no dia 31 de dezembro e, até lá, venderá seu acervo de CDs e tais com 30% de desconto. Também vale a pena conferir a programação musicial até o último dia do ano.
O tempo escorre pelos dedos, incessante, para sempre... O mundo digital vai se insinuando em nossas vidas de forma tão avassaladora quanto silenciosa. Quando nos damos conta, nossos hábitos já mudaram. Há alguns anos, estava almoçando com minha amiga Denise Lopes no bistrô da Modern Sound, o Allegro Bistrô. Era uma feijoada despretensiosa para abrir o sábado de folga. Por coincidência acabamos numa mesa a menos de um metro do palco, onde rolava a tradicional sessão de jazz e bossa nova da programação da manhã da casa. Naquele sábado era o quarteto do saxofonista Idriss Broudrioua, com Sergio Barroso, no baixo; Boto na batera; e Dario Galante, no piano. A poucos metros de nossa mesa, meio escondida por uma pilastra, almoçava a mesma feijoada nada menos que Leny Andrade, com amigos.
Leny Andrade deu uma canja na apresentação de Idriss Broudrioua: feijoada e jazz.
Ao percebê-la, chamei a atenção de Denise, afirmando que apostava que ela ia acabar dando uma canja. Ficamos ali na expectativa e, dito e feito. Lá pelas tantas, Idriss convida a diva para cantar com o grupo. Ela reluta, diz que está almoçando, mas as palmas do público e a insistência do saxofonista francês acabam falando mais alto. Leny então sobe ao palco, Pedrinho Tibau rapidamente providencia um microfone e abre um canal na mesa de som. E lá fomos nós embalados por uns cinco ou seis temas, com direito a improvisação vocal e o escambau.
Me lembrei então de uma frase do Ruy Castro: a Modern Sound é o único lugar do mundo onde se ouve jazz e boa música pelo preço de uma coca-cola. E é verdade. Se em vez de feijoada eu estivesse apenas bebendo um refrigerante, era isso que a conta traria no final. O Lula Vieira me disse certa vez, emocionado, que em todas suas viagens pelo mundo nunca havia encontrado um lugar como a Modern. Nem mesmo em Nova York, cidade dos night clubs, como Blue Note, Village Vanguard, entre tantos, você encontra um ambiente tão musical como a Modern. Meu orientador na tese, prof. Marco Antonio da Silva Mello, é outro fã incondicional. Ele, que é compositor nas horas vagas de temas sofisticadíssimos, encontra ali um espaço de puro prazer. Todos os gringos que levei lá piraram. E olha que levei muito gringo lá.
O Arthur Dapieve certa vez escreveu uma belíssima crônico sobre a inutilidade de resistir à tentação que os CDs exercem a um desavisado que garimpe nos móveis da Modern. Quantas vezes me vi nessa situação. Me lembro que deixei boa parte de uma indenização recebida na loja, e saí satisfeito com umas cinco sacolas de CDs. Minha amiga Bia Caiado lembra das dicas do Pedrinho: mais do que dicas, seduções de um vendedor de discos.
É um ambiente freqüentado por músicos e periféricos. Gente com instrumentos ou CDs, perambulando palas baias onde se garimpam preciosidades difíceis de encontrar. O papo é sobre arranjos, partituras, concertos e shows, instrumentos musicais, jam sessions, timbres e petit histoires e anedotas que viram lendas e mitos. Vi ali figuras no início de carreira a músicos consagrados, como Paulo Moura, Claudio Roditi, Carlos Malta, Mauro Senise, Nivaldo Ornellas, entre tantos. E amigos queridos, como Andrea Dutra. Vi shows antológicos de samba e MPB, com Moisés Marques, Edu Krieger, Orquestra Lunar, Bárbara Mendes, Maria Rita e Monica Salmaso. Vi dois shows do meu pai, Gaudencio Thiago de Mello. Enfim, a Modern é um lugar de músicos e amantes de música.
E é também um botequim, não na sua infra-estrutura, mas na sua atmofesra calorosa. Quer dizer, por trás de toda aquela sofisticação tem um ambiente absolutamente relex, informal e barato. A loja tem mais de 40 anos e começou com a venda de discos importados pelo patriarca da casa, Pedro Passos, que, diga-se de passagem, foi dono do botequim Rosa de Ouro, no Baixo Voluntários, antes de abrir uma portinha para vender seus discos, na galeria do antigo cinema Bruni Copacabana. A casa sobreviveu à crise que devastou suas rivais (como a Bill Board) graças a um estoque variadíssimo. Na Modern se encontra desde Reginaldo Rossi a gravações raras de Von Karajan. Uma puta seção de clássicos e outra de jazz. Mas também, música do mundo, rock'n'roll, pop, trilhas, MPB, importados, independentes, caseiros e por aí vai. Me lembro que comprei discos vinis de Marlui Miranda, Bola de Nieve e Dom Salvador. Depois, CDs de Ani DiFranco, Serge Gainsburg, Papa Wemba, Miossec, uma versão japonesa dourada do Kind of Blue, com Miles Davis, John Coltrane, Bill Evans e Cannonball Arddeley.
Mas aí chegou a era digital. E como disse lá no início, o tempo escorre e o mundo muda. E esse lugar único, está com os dias contados. Conversando outro dia com Pedrinho Tibau, ele desabafou:
— A internet matou os direitos autorais. Das fotos à música, todos baixam tudo pela internet, de graça. Não tem como concorrer com isso. E logo, logo o setor literário também vai entrar nessa onda, com os leitores digitais. Vamos ver as livrarias desaparecer, como estamos vendo as lojas de disco.
Há uma proposta de transformar o lugar num miniCanecão, uma casa de shows de médio porte e um palco menor para concertos mais comedidos, reduzindo o espaço da loja de CDs. Neste momento, enquanto escrevo estas mal traçadas, alguns possíveis investidores analisam a proposta. O Rio de Janeiro está mesmo precisando de um lugar como a Modern. Um lugar que não seja nos confins da Barra da Tijuca e que não cobre um olho ou uma orelha por um show. Já perdemos o Mistura Fina, o Tio Patinhas, o Ponto de Encontro, o Beco das Garrafas, o Hipódromo Up, o Cinemathèque, e tantos outros. Se ficarmos sem a Modern, o Rio ficará mais silencioso. Todo mundo ouvindo seus iPods turbinados, individualmente, mas sem um lugar para os músicos e os amantes da música transitarem, se encontrarem, sem jam sessions, sem improvisações. Terei que pagar R$ 200 só de ingresso para ouvir Leny Andrade numa casa de shows da Barra da Tijuca.
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