Há artistas que adoram exaltar a si próprios, como Caetano Veloso, e outros que preferem delegar à sua obra a tarefa de garantir-lhes a posteridade. Chico Buarque pertence a esse segundo grupo. Raramente dá entrevistas e, quando o faz, fala pouco. Mesmo entre amigos, prefere comentar o último jogo do Fluminense a falar de seu disco mais recente. Fica amuado, ou parte para o contra-ataque, quando são divulgadas informações sobre sua vida pessoal. Por tudo isso, causa admiração folhear o livro dedicado a ele que a jornalista Regina Zappa lança nesta semana: Chico Buarque (Relume-Dumará; 200 páginas; 15 reais). Escrita com a colaboração do compositor e de sua família, que deram seus depoimentos em várias rodadas de entrevistas, a obra fornece aspectos inéditos da vida e da trajetória artística do autor de A Banda. Embora ela remeta à infância de Chico e chegue até os dias de hoje, está longe de ser uma biografia. É, antes, um perfil. Em diversas passagens do texto, Regina se mostra excessivamente reverente com seu personagem. Filtrando-se a tietagem explícita, no entanto, ele traz boas novidades.
Nos anos 70: de cada três músicas que ele fazia, duas eram censuradas. A solução foi criar um pseudônimo
O livro começa por desfazer alguns mitos formados em torno de Chico Buarque. O primeiro deles é o da timidez. Ela mostra que, na intimidade, entre os músicos de seu conjunto, por exemplo, o compositor é sempre o primeiro a fazer piadas e descontrair o ambiente. A propalada introversão de Chico é apenas um truque para afastar os chatos e as situações indesejáveis. A toda hora, por exemplo, os políticos das cidades por onde ele passa com seu show cismam de lhe prestar homenagens. Como seria deselegante recusá-las, adotou uma estratégia: marca as solenidades para logo depois das peladas de futebol que costuma jogar durante as turnês. Como elas se realizam em locais reservados, não há chance de a platéia ser numerosa. Certa vez, numa cidade do Paraná, recebeu o título de cidadão honorário de calção e chuteiras. Um vereador local discursou longamente apenas para Chico, seu empresário e seu assessor.
Por meio das conversas que manteve com Regina Zappa, Chico Buarque também faz uma reavaliação de seu papel na época da ditadura militar. Ele revela que, a certa altura, começou a se sentir incomodado com sua imagem de símbolo da esquerda no meio artístico. As pessoas confundiam o cidadão com o compositor. Tanto a censura quanto a esquerda passaram a enxergar duplo sentido em todas as músicas que compunha, mesmo as canções de amor. Achavam que, obrigatoriamente, elas deveriam trazer mensagens políticas. Segundo Chico, a única música de protesto que ele compôs até hoje foi Apesar de Você. As demais canções ditas "engajadas" procuravam retratar o Brasil e o povo brasileiro. "A pressão contra meu posicionamento político nunca me inibiu, o que me inibia era a pressão a favor, a cobrança", ele diz.
Chico Buarque e a atriz Marieta Severo, casados por trinta anos, separaram-se recentemente. Pela primeira vez, Marieta aborda o assunto de maneira direta. Ao fazê-lo, acaba por produzir um dos melhores capítulos do livro, traçando um retrato do ex-marido na intimidade, suas manias, suas normas de comportamento e rotinas de trabalho. O mundo emocional do compositor, segundo ela, espelha a "cegueira típica do universo masculino". Durante anos a atriz lhe recomendou que fizesse análise, o que ele recusava. Marieta aborda ainda um tema que sempre foi tratado como tabu: seus excessos com a bebida. Sim, ele chegou a pegar pesado no copo. "Hoje ele tem muito cuidado porque sabe que quando começa a beber..." relata Marieta. "Acho até que eu era alcoólatra", ele admite.
A passagem em que Chico conta como parou de beber é uma das mais exóticas de sua vida. Ele conta ter-se submetido ao tratamento de um bruxo carioca, Lourival de Freitas, mestre na preparação de beberagens à base de ervas que teriam o poder de curar os mais variados males. Chico foi apresentado ao bruxo por Tom Jobim, que também utilizara seus serviços. Além de fazer poções, Lourival realizava pequenas cirurgias, recebia entidades e promovia rituais em que desatava a gritar palavrões. Nada cobrava em troca. Um outro momento relatado por Chico é francamente dramático. Durante vários anos ele recebeu visitas freqüentes da estilista Zuzu Angel, que na época lutava para esclarecer a morte de seu filho, Stuart Angel Jones, nos porões da ditadura. Zuzu desconfiava que acabaria sendo assassinada por sua insistência em elucidar o caso, o que efetivamente aconteceu. Ela costumava deixar bilhetes relatando sua cruzada e não se cansava de pedir a Chico que os guardasse como prova de cada um de seus passos. Embora relembre extensamente a ditadura, o livro é recheado de momentos bem-humorados. A irmã do compositor, Miúcha, por exemplo, conta o que fazia seu pai, o célebre historiador Sérgio Buarque de Holanda, quando as discussões em família esquentavam. Ele se refugiava num canto do escritório e saboreava histórias em quadrinhos da Luluzinha.
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