Alquimia dos talentos da banda cria milagre da potência incalculável de uma união
A vida de um criador normalmente se divide em duas etapas. Na primeira, o desafio é desbravar e expandir as fronteiras do seu potencial -é mostrar ao mundo e a si mesmo do que ele é capaz. Na segunda, trata-se de não ceder à inevitável fadiga dos anos ou de se deixar levar pela tendência à acomodação -mostrar que ele ainda é capaz.
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Quando os Beatles se separaram, em 1970, John Lennon tinha 30 anos e Paul McCartney, 28. Passadas quatro décadas, há pouca margem para dúvida: nada do que fizeram após a dissolução da banda alcançou a excelência ou o impacto do que criaram nos oito anos juntos. Depois de revelarem ao mundo, unidos, tudo de que eram capazes, passaram a enfrentar o desafio de mostrar ao público, separados, que ainda eram capazes.
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Sabemos o que foram as vidas paralelas de Lennon e McCartney depois dos Beatles. Mas como teriam sido as suas trajetórias individuais se a banda não tivesse existido -se a prodigiosa alquimia da liga Lennon/McCartney jamais tivesse tido a chance de se firmar?
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Posso imaginá-los, sem dificuldade, no panteão da música pop internacional: McCartney na família dos magos da canção como Elton John e Billie Joel; Lennon na tribo dos trovadores rebeldes à la Lou Reed e Leonard Cohen. Astros de primeira grandeza, sem dúvida, mas nada que entrevisse a revolução sonora e cultural dos anos mágicos dos Beatles: a espantosa sequência "Rubber Soul" (1965), "Revolver" (1966), "Sgt. Pepper's" (1967) e "White Album" (1968).
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O mistério dos Beatles evoca um fenômeno análogo na química: o advento do novo por meio da combinação. Quando átomos se ligam na formação de uma molécula, algo original e inusitado emerge: as propriedades de uma molécula de água, por exemplo, jamais poderiam ter sido deduzidas ou previstas de antemão a partir de uma análise das propriedades dos átomos de oxigênio e hidrogênio que se combinam na sua formação. O todo supera a soma das partes.
Nenhum dos Beatles isoladamente se revela dotado de um dom absurdo ou de uma genialidade inequívoca como a que se manifesta no virtuosismo elétrico de Jimi Hendrix, no fraseado poético-melódico de Bob Dylan ou no arrebatamento performático de Mick Jagger. E, no entanto, da alquimia dos talentos emerge uma força que supera em vitalidade e energia transformadora qualquer banda ou expressão individual de genialidade.
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A vida oprime, o som liberta. Os Beatles transformaram a experiência psicoacústica da humanidade; eles educaram o ouvido coletivo a uma nova dimensão da sonoridade na música gravada, assim como a pintura renascentista conquistou a tridimensionalidade na tela plana. O sonho de libertação e florescimento humano de que foram a mais plena expressão não terminou. Ele permanece vivo em sua música. O milagre não é McCartney nem Lennon. O milagre são os Beatles: a potência incalculável de uma união.
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EDUARDO GIANNETTI, 53, é professor do Insper São Paulo e autor de "A Ilusão da Alma" (Companhia das Letras)
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/especial/fj1811201006.htm
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