quinta-feira, 29 de setembro de 2011

A lenda de Firefly

Mateus Borges | Opinião |





Uma sequência de batalha, toques espaciais e tropas envolvidas na poeira do deserto. Mal então entra em cena, troca algumas palavras com Zoe e quebra o protocolo para que um colega possa chamar reforços (fazendo uma piada no processo). Quando eles não vêm, tudo o que resta para ele é sentar e observar a causa que amou e lutou chegar ao fim. Seis anos depois, no meio de um trabalho, ele e a tripulação da Serenity são obrigados a fugir.

Essa é a incrível cold open de Firefly. Incrível mesmo. Até melhor: eficaz. Só com esses poucos minutos a série já te explicou:
A dinâmica entre os personagens – Notem a primeira ação de Mal, promovendo alguém para poder chamar reforços. Não é necessariamente correto, não é de acordo com o protocolo, mas é bom para aquele grupo de pessoas e apoiado por boas razões e intenções. Justamente o tipo de coisa que o personagem viria a fazer dezenas de vezes no futuro em cima das mesmas justificativas, ou seja, a base de todas as ordens que ele deu para a tripulação da sua nave, e por consequência, dos relacionamentos e divisões dentro dela, através de uma pequena violação no calor da batalha.

O humor – Nesse mesmo momento, Mal parabeniza o soldado pela promoção que não mereceu. Simples, rápido, até sem grande importância, mas interessante notar como desde o primeiro segundo a série já tinha compreendido, definido e encontrado coisas simples como o estilo de humor, a própria linguagem de cada um.

O tempo e o vilão da história – Com o corte de uma cena épica para o calmo vazio do espaço, a edição nos deixa saber instintivamente que a história se passa em um período pós-guerra. E nessa mesma deixa, a primeira cena no tempo presente da série mostra a Serenity correndo da coisa mais próxima de um vilão que Firefly tem: a Alliance. Como se o visual cinza de suas roupas não fosse suficiente, ela jogou mais esse importante lembrete de que aquele grupo de pessoas significa perigo constante para a tripulação antes mesmo da abertura (também prenunciando, através da fuga, a entrada de Simon e River na nave).

O protagonista – Existe maneira melhor de fazer você simpatizar com alguém do que destruir o sonho dessa pessoa? Do que mostrar algo pelo qual ela tanto lutou ser destruído bem na sua frente? Firefly fez isso com o fim da guerra e a imagem clássica das explosões refletidas nos olhos do protagonista, oferecendo não só a tão importante conexão da audiência com Mal, como algo essencial para que o arco do personagem, os relacionamentos dele e toda aquela posição e aura funcionem:

A sua motivação – Tudo que ele faz é, de uma maneira ou outra, em razão daquela derrota, ver a batalha onde ela ocorreu é mais forte do que ouvir sobre através de algum diálogo no futuro, um roteirista como Whedon sabe e por isso começamos exatamente nela. Até a edição trabalha em favor de fazer a audiência simpatizar com o personagem e entendê-lo, cortando de Mal tendo o seu sonho destruído direto para o simbolismo dele virado de cabeça para baixo na escuridão do espaço.
A estética – De um lado, lasers, naves espaciais, comunicadores e toda a sua típica parafernália sci-fi. Do outro, um imenso deserto, a aparição cowboy de Mal e roupas típicas. Todo o encontro de gêneros da série em um curto espaço de tempo, sem qualquer diálogo que indique ou explique. Space western já é difícil de vender tanto por motivos tanto lógicos quanto narrativos, assim, habilidade em lidar com ele desde o primeiro minuto é sempre um bom sinal de que a série em questão não terá problemas em dar continuidade e desenvolver o seu subgênero com competência.

As funções e personalidades de cada personagem – A primeira impressão sempre é a mais forte, e “Serenity” é brilhante em dar incríveis entradas para os principais:  Zoe dá cobertura para Mal na guerra, sendo forte como de costume e antecipando a sua posição na nave, Jayne está assistindo Mal em um trabalho, focado no dinheiro e beirando o insuportável, Wash brinca com dinossauros enquanto pilota a nave, Kaylee aperta um painel que fica bem ao lado do desenho de uma flor… Detalhando e controlando tudo dessa maneira, a série passa uma segurança tremenda na habilidade da audiência em absorver aquilo, recebendo como resposta um dos elementos essenciais para qualquer programa: confiança.


“We are not gonna die. You know why? Because we are so very pretty. We are just too pretty for God to let us die.” – Isso não quer dizer nada. Apenas é divertido.

Até séries melhores não conseguiram esse feito de compactar tanta coisa em poucos minutos. Não que elas tenham culpa, pilotos são criaturas difíceis por natureza: o roteiro e direção precisam estabelecer personagens, estilo, ritmo, ambientação, estrutura, temas, padrões, aparência, milhares de coisas. Geralmente leva tempo. O piloto de Firefly? Metade do serviço em 10 minutos.  E ao nos aprofundarmos nele, é interessante perceber como completou a outra metade. Afinal, Whedon não estava tentando reinventar a roda com esse episódio: “Serenity” é apenas um conjunto interessante de histórias velhas de gêneros diferentes. Mas no que ele sucede é em procurar um novo ângulo para elas, em pegar elementos básicos da televisão e torná-los elementos básicos de Firefly.

Começando por algo tão simples como o próprio diálogo. Sabem aquelas montagens com personagens de vários filmes dizendo as mesmas frases? Isso não é coincidência, é pura preguiça. E preguiça é o maior inimigo do bom diálogo. Já cansei de ver séries escolhendo respostas padrões para perguntas mais padrões ainda, interações entre amigos engessadas pela previsibilidade, discussões tão feijão com arroz que no final você está implorando por uma batata frita… Em Firefly, Whedon e seus roteiristas NUNCA fazem isso. Dá pra sentir eles obcecados com a tarefa de achar as melhores, mais significativas e divertidas alternativas para frases ou respostas comuns. Não só isso, mas sempre refletindo os personagens nelas. Os seus pontos de vista, os seus sensos de humor, as suas reações, relações e etc. Firefly sempre manteve controle total disso, e se você ama como alguém fala e o que ela fala, impossível não amar esse alguém.

Segundo, a estrutura. É uma cena inicial (teaser, cold open, como você quiser chamar) seguida da abertura e quatro/cinco atos posicionados entre comerciais. Não tem muito como fugir, todos os dramas comuns de todas as emissoras abertas trabalham assim. Mas o que Firefly faz com essa ordem artificial é uma coisa linda de morrer, tão simples como bem executada. Normalmente, em séries de casos da semana (algo que a criação de Whedon, por mais space western que seja, não deixa de ser), você tem a resolução do caso mais ou menos na mesma faixa do minuto 30 ao minuto 37 do episódio. Ou seja, saindo da investigação de mesa ou da interrogação, para a epifania e então direto para o clímax – tudo em menos de sete minutos, atravessando cenas de funções diferentes no processo. Assim, a série ganha um espaço grande para mostrar resoluções comuns: o conforto das vítimas da semana, uma conversa de significado pessoal entre os médicos/vampiros/policiais, uma cena do protagonista tocando piano enquanto a câmera se afasta pela janela, um personagem refletindo sozinho depois de ouvir uma confissão, a velha montagem cheia de amor… Joss Whedon não criou tempo para isso. Enquanto as histórias de séries nessa categoria geralmente sobem e descem de acordo com zonas de conforto, Firefly nunca parava de ir em direção ao céu. Era uma construção constante da história em direção do clímax, que sempre ocorria durante os 10 minutos finais e era posicionado de tal maneira que não permitia um longo período de calma e contemplação após os acontecimentos – com a exceção de uma ou duas inteligentes e pequenas cenas.

Tudo isso, todos esses fatores, levam ao mais importante. Aquele resultado que permite a sobrevivência de Firefly como uma forte figura cultural entre fãs de televisão: o amor que os seus fãs tinham por ela. Essa qualidade deliciosamente desesperada, as palavras e diálogos que são tão bons que acabam sendo facilmente aplicados em conversas e se tornam partes presentes dos vocabulários dos fãs, as melhores histórias no encontro dos temas e personagens tão bem compreendidos por Whedon e seus roteiristas que você só quer passar mais um tempinho com eles, por menor que seja.  Como não amar? Como não querer que uma série dessas retorne? Televisão é um continuo processo de aprimoramento, Firefly saiu pronta do forno.

Dessa maneira, logo depois que a cena tão mencionada ali em cima acabou e a impecável abertura rolou pela primeira vez, eu já sabia que seria um prazer devorá-la. E ainda bem que muitos também perceberam a série desse jeito, se apaixonando tanto que fizeram Firefly seguir em frente como um filme. Quer dizer, séries já voltaram por simples potencial, custo-benefício, maquinações empresariais, acaso… Mas puro amor? Em tempos como esses?
Isso é coisa de lendas.

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