sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Que esterco é esse?


Declarações de assessor de Lula, que chamou programas da TV a cabo de "lixo", provocam reações inflamadas no meio cultural



Para muita gente, foi como se a tecla "rewind" do controle remoto tivesse sido acionada. As declarações de Marco Aurélio Garcia, assessor especial do presidente Lula para assuntos internacionais, sobre a programação da TV a cabo, fizeram com que produtores e artistas se sentissem como se o tempo tivesse voltado para trás.

Em debate, na semana passada, Garcia pôs em mira a "hegemonia cultural dos EUA". Bélico, comparou a TV fechada à 4ª Frota, divisão naval americana presente no Atlântico sul. "Eles realizam, de forma indolor, um processo de dominação muito eficiente. Despejam todo esse esterco cultural (...) A emergência desse lixo cultural nos deixou numa situação grave."

É fato que mais de 70% da programação dos canais pagos vem de outros países -EUA à frente. Mas o que causou alvoroço foi o tom adotado. "É um discurso obsoleto", diz o cineasta Bruno Barreto. "Não costumo ver seriados americanos, mas "House" é muito melhor do que qualquer série da Globo", emenda o diretor Domingos Oliveira.

Para se contrapor a Garcia, Daniel Filho, de "Se Eu Fosse Você", vai mais longe e, lâmina afiada, afirma: "Estamos diante de um homem que apoia os governos de Fidel [Castro] e [Hugo] Chávez. As declarações são muito parecidas com as ouvidas nesses países".

Sob a ruidosa briga ideológica, há, porém, dados que tornam menos espalhafatosa a discussão. A Agência Nacional de Cinema registra que só 6,4% dos filmes exibidos pelos canais fechados, no primeiro semestre de 2009, eram brasileiros. Nas emissoras abertas, que são concessão pública, o número é bem maior, certo? Errado. Apenas 12,6% dos filmes são nacionais e, na rubrica "séries e minisséries", 71% do tempo, nas TVs abertas, é ocupado por produtos vindos dos EUA.

É por essas e outras que muitos produtores dizem que Garcia, simplesmente, mostrou ter má pontaria. "No Brasil, se há uma TV hegemônica, que faz a cabeça das pessoas, é a aberta. E, ao contrário do cabo, ela não tem regulação", observa Roberto d'Ávila, que fez programas para Fox e Sony. Cabe lembrar ainda que o cabo tem reduzidos 7,5 milhões de assinantes.

Já para o professor Laurindo Leal Filho, da USP, o que existe na TV brasileira é uma espécie de apartheid. "Uma aliena com "Big Brother" e programas de auditório. Outra, restrita a quem pode pagar, reproduz, mesmo em programas de entrevista, um discurso político alinhado à hegemonia norte-americana e à demonização dos governos populares", diz o intelectual, que se alinha a Garcia.
"Nada disso tem sentido", reage o produtor Kiko Mistrorigo, que trabalha para a Discovery Kids. "O Brasil, como todos os países, tem de participar do caldo cultural mundial."
ANA PAULA SOUSA
F.S.P.

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