sexta-feira, 27 de maio de 2011

Universo HQ entrevista Gonçalo Junior
Erotismo à italiana... em quadrinhos



O jornalista Gonçalo Junior, autor do livro Tentação à Italiana, fala dos quadrinhos eróticos na "bota"

 
Gonçalo Junior
O jornalista Gonçalo Junior
Em agosto, o jornalista Gonçalo Junior, merecidamente, receberá o Troféu HQ Mix por ter escrito o melhor livro teórico de 2004, o imperdível A Guerra dos Gibis, da Companhia das Letras.

Pouco mais de seis meses, ele emplacou outra belíssima obra: Tentação à Italiana, pela Opera Graphica, que espanta não só pelo conteúdo, mas pelo formato arrojado (o mesmo dos álbuns do Príncipe Valente).

Num bate-papo descontraído, gentilmente cedido ao
Universo HQ pela Opera Graphica, Gonçalo conta desde como nasceu a idéia de fazer o livro até detalhes de seu próximo projeto, que também abordará o erotismo nos quadrinhos, mas dessa vez no Brasil. E no meio do caminho, claro, fala muito sobre Guido Crepax, Milo Manara, Paolo Eleuteri Serpieri, Barbarella, Valentina, Druuna, O Clic...

Tentação à Italiana
Tentação à Italiana
Universo HQ: Quanto tempo foi gasto da pesquisa à elaboração do texto final de Tentação à Italiana?

Gonçalo: Levei cerca de seis meses para escrever o livro, entre pesquisas, análises e construção do texto. Tenho uma metodologia de trabalho que procuro seguir com rigor e disciplina, para que o objetivo seja alcançado. Quase nunca faço duas coisas ao mesmo tempo. Quando pego, procuro só largar após o ponto final. Assim, creio, ficou mais fácil de estabelecer algumas idéias críticas a respeito da obra de cada autor, a partir da leitura de praticamente tudo que fizeram em erotismo.

Desse modo, mergulha-se com maior intensidade no universo de cada artista e a "pescaria" fica mais produtiva. A idéia do livro nasceu de uma conversa com o editor Carlos Mann, no começo de 2002. Falávamos da superficialidade com que se costumava tratar os quadrinhos eróticos, uma vez que a crítica sempre ficou muito
focada no traço, na beleza feminina estabelecida por esses autores.

Crepax
Guido Crepax
Então, Carlos perguntou o que eu achava de escrever um livro sobre o tema. Propus três pequenos volumes sobre cada autor que considerava os maiores de todos - Crepax, Manara e Serpieri. Ele ligou para (o editor) Franco de Rosa, que sugeriu juntarmos todos numa só edição. Assim nasceu Tentação à Italiana. Bolamos o título na hora. Passei 2002 inteiro amadurecendo a idéia e o escrevi ao longo de todo o primeiro semestre do ano seguinte.

UHQ: Você acompanhava regularmente os trabalhos desses autores?

Gonçalo: Sempre fui um grande admirador de Crepax, Manara e Serpieri, além de muitos outros. Acompanhava todos eles com fidelidade canina, a cada álbum publicado no Brasil ou na Europa - que conseguia comprar por aqui. Desde que a Martins Fontes lançou O Clic, em 1987, tornei-me fã.

Serpieri
Paolo Eleuteri Serpieri
De lá para cá, procurei colecionar tudo que havia saído antes no Brasil sobre esses mestres. Como, por exemplo, o amplo espaço dado pela revista
Grilo, no começo da década de 1970, a Crepax, quando lançou seus quadrinhos no país.

A idéia de escrever um livro mais analítico me empolgou porque sempre estive muito perto da obra desses autores.


UHQ: O livro foi produzido sob a ótica de um fã?

Gonçalo: Pelo contrário. Procurei me impor o desafio de fazer uma análise crítica o mais rigorosa possível desses artistas, mostrar suas referências e influências e lhes dar um caráter de autores de legítimas obras de arte. É, portanto, um livro teórico, sim, mas sem a metodologia e a chatice que se encontra em algumas teses acadêmicas mais conservadoras nesse aspecto.

Milo Manara
Milo Manara
Fui bastante crítico e implacável especialmente com Manara, que cometeu alguns equívocos, como as continuações de
O Clic e o álbum Encontro Fatal. Para mim, foram os grandes erros de sua carreira. O último é uma bizarra história na qual uma mulher é estuprada todos os dias ao longo de quase um mês por ordem de um agiota, que quer punir o marido da garota. Terrível, sem nada de erotismo. Ou, talvez, eu não tenha tido a capacidade de compreender qual foi seu propósito neste álbum.

UHQ: Em 2004, você lançou A Guerra dos Gibis, um longo estudo sobre a censura aos quadrinhos no Brasil. Essa guinada para o tema sexo - que normalmente enfrenta certa resistência, tanto de editores quanto de livreiros - não o intimidou?

Gonçalo: Não. Primeiro, porque parti da certeza de que teria onde publicar e não seria censurado de forma alguma. Carlos Mann não limita número de páginas, não faz censura política ou ideológica, não impôs qualquer regra. Diz apenas: "Escreva o que quiser". Não tenho a pretensão de agradá-lo, mas justiça seja feita.

Serpieri
Serpieri e Druuna
Portanto, jamais pensei que pudesse ter algum tipo de restrição quanto ao tratamento do tema. E uma reação assim depois do livro pronto não tem acontecido em relação à imprensa. Todos os jornais e revistas têm recebido o livro com grande entusiasmo e muitos elogios quanto ao formato, ao acabamento gráfico. Estou esperando apenas as críticas quanto ao conteúdo, à tese que tentei construir sobre cada autor.

E quero ressaltar que o tema erotismo é o foco de
A Guerra dos Gibis 2, que escrevi antes do volume 1 e, provavelmente, não receberá este título. Estudo a censura aos quadrinhos e às revistas erótico-pornográficas entre 1964 e 1985, a partir da trajetória de duas editoras, a Edrel e a Grafipar. Faço um mergulho nesse mundo marginal e mostro como a repressão ao sexo durante a ditadura foi um elemento importante para sustentação do regime.

No momento, tento enxugar esse material já escrito, que renderia um livro de mil páginas. Espero muito publicá-lo em 2006.


UHQ: Em Tentação à Italiana é nítido seu esforço em realçar a linha tênue que separa o erótico do pornográfico, o bom-gosto do vulgar. Acha que atingiu esse objetivo?

Manara
Uma das musas de Manara
Gonçalo: Sim. Acredito que identifico elementos artísticos suficientes nas obras de Crepax, Manara e Serpieri para confirmar que eles eram e são mestres do erotismo, a partir de um conceito de arte.

Minha visão da pornografia, construída a partir do longo estudo que fiz sobre a indústria editorial do sexo na ditadura brasileira, é o de que ela distorce a visão que o homem forma da mulher e acaba por estragar os relacionamentos entre os sexos. Não quero dizer que deva ser proibida. Longe disso. Compra quem quer e deve continuar assim.

Emmanuelle, Bianca and Venus in Furs, de Guido Crepax
Emmanuelle, Bianca and Venus in Furs, de Guido Crepax
Mas o gênero estereotipa a mulher, faz com que o homem pense que ela age como ele, quando sabemos que o sexo na cabeça feminina é diferente, tem outro time, é mais sensorial, tátil, exige envolvimento, comprometimento etc. Crepax, Manara e Serpieri vão muito além disso. O primeiro, então, é, para mim, um dos mais importantes autores eróticos e de quadrinhos em todos os tempos.

UHQ: Então, o erotismo é essencialmente mais feminino e a pornografia, masculina?

Gonçalo: Perfeitamente. Essa é a síntese. A pornografia é visual, assim como o sexo para o homem é visual. Por isso, podemos ser tão facilmente manipuláveis. Muitas mulheres desconhecem que têm esse poder.

UHQ: Dos autores que aborda no livro, qual o mais importante em termos de inovação e influência no gênero?

Valentina
Valentina
Gonçalo: Crepax. O que ele estabeleceu a partir de seus experimentos múltiplos e revolucionários em arte e linguagem na narrativa seqüencial foi seguido com bastante fidelidade por Manara e Serpieri. As fantasias sexuais, a presença do sonho e de elementos da psicanálise que Valentina tanto vivenciou são características marcantes principalmente em Druuna. Há muito mais semelhanças e aproximações entre ela e Valentina do que se imagina.

UHQ: Por falar nela, que importância Valentina tem para os quadrinhos adultos europeus?

Gonçalo: Embora Valentina tenha sido muito influenciada pela francesa Barbarella, de Jean-Claude Forest, coube a ela se tornar a ponta-de-lança de uma revolução na linguagem dos quadrinhos, promovida por Crepax.

Barbarella
Pôster de Barbarella
Barbarella estabeleceu uma ousadia sem precedentes, mas teve vida curta, além de viver fantasias por demais exóticas num mundo distante, fantasioso, típico da ficção científica - sem querer tirar os méritos dessa incrível personagem. Já Valentina estava mais próxima do leitor, da realidade de um mundo em profundas transformações políticas, culturais e de comportamento, como aconteceu na década de 1960.

Ela incorporou a revolução sexual e a contracultura, a
nouvelle vague do cinema francês como nenhum outro personagem dos quadrinhos. Nesse contexto, estabeleceu modismos para o comportamento feminino, desnudou o universo da mulher para o público masculino, pregou sua liberdade sexual e o direito ao prazer. Daí sua enorme importância, que tomei a liberdade e a pretensão de ressaltar.

Valentina
Valentina
UHQ: Quanto do sucesso das obras desses autores se deve à arte (com suas belas personagens), e quanto se deve aos roteiros?

Gonçalo: Muito já se disse que os desenhos bastavam. Não é por aí. Meu propósito foi mostrar que tão importante quanto a arte eram as tramas, os roteiros, os universos densos e peculiares que cada autor criou para suas personagens.

As obras de Crepax, Manara e Serpieri são eternas porque existe nelas uma inegável densidade literária e, conseqüentemente, de valorização artística. Por isso, já duram tanto tempo. E são conhecidas não apenas pela longevidade e constância de sua produção.


Valentina
Valentina
UHQ: Você acha que os trabalhos deles continuaram evoluindo ou atingiram um auge e estagnaram?

Gonçalo: No caso de Crepax, a evolução foi permanente e constante até o fim de seus dias, em 2003. Ou melhor, até quando produziu, pois havia se afastado do desenho por problemas de saúde nos últimos anos. Em quase quatro décadas de produção, ele jamais se acomodou. Além de manter Valentina em atividade e de envelhecê-la num tempo próximo do leitor, nunca parou de experimentar em suas histórias. Ao mesmo tempo, criou personagens marcantes como Bianca e Anita e adaptou clássicos do erotismo e do terror de uma forma bem pessoal e ousada.

Druuna
Druuna
Talvez Serpieri esteja numa encruzilhada com Druuna. Suas duas últimas histórias mostram certo cansaço, parece perdido porque não consegue sair do ambiente físico que criou para sua personagem e tem partido para delírios e devaneios que confundem cada vez mais os leitores. Ele poderia experimentar mais, levá-la para outros mundos. Já pensou Druuna na Terra, com uma calça jeans bem apertada e um decote generoso?

Manara também seguiu o mesmo caminho de Crepax nos 15 primeiros anos. Só acho que não devia ter cedido aos apelos do mercado e feito as continuações de
O Clic, que são apressadas, incoerentes e repetitivas.

UHQ: Qual a importância dos demais autores da arte erótica citados no livro? Em que medida foram influenciados pelos três grandes mestres?

Franco Saudelli e Jean Claude Forest
Franco Saudelli e Jean Claude Forest
Gonçalo: Artistas - prefiro chamá-los assim - como Liberatore, Magnus, Frollo, Saudelli e Rotundo têm suas peculiaridades e o pouco que saiu deles no Brasil mostra um talento apenas um pouco abaixo da linha estabelecida por Crepax, Manara e Serpieri.

Falo deles na parte final do livro, em pequenos capítulos. Só não sei até onde as inconstâncias do mercado frearam a produção erótica desses artistas. Rotundo, por exemplo, tem um nível excepcional. O que Magnus fez em
As 101 Pílulas vai além do extraordinário.

Barbarella
Barbarella
UHQ: Barbarella é uma personagem criada na França. Por que a incluiu no livro?

Gonçalo: Ela entra no anexo não apenas por seu pioneirismo, como já disse, mas porque achei importante mostrar suas peculiaridades. Afinal, poucos leitores brasileiros tiveram acesso a seus quadrinhos. Barbarella foi tão importante para as HQs que ainda não conseguimos dimensionar o quanto. Nem mesmo os franceses se deram conta disso, até onde sei.

UHQ: O maior mérito dos italianos está na reciclagem e adaptação de personagens, temas e padrões americanos, franceses etc., ou na criatividade espontânea, distante da influência estrangeira?

Gonçalo: Fico com a segunda opção. O êxito está principalmente na liberdade que se deram para criar a partir do erotismo. Tanto que ainda são censurados em vários países. Na verdade, existe uma tradição de erotismo na Itália que remonta aos tempos do Império Romano e que reapareceu com força nas artes plásticas e na escultura durante o Renascimento. Nem mesmo a presença forte da Igreja conseguiu contê-la.

Gullivera, por Manara
Gullivera, de Manara
Os italianos tiveram um outro período de trevas durante o regime fascista de Mussolini, mas o cinema resgatou isso. Noutro aspecto, Manara não faz quadrinhos para impressionar os americanos. Ele trabalha como ninguém o mundo das fantasias sexuais humanas universais. Há um meio termo aí. Você não vê - à exceção do magistral
Rever as Estrelas (para mim, sua obra-prima) - temas nacionalistas nas histórias.

Manara e Serpieri fazem quadrinhos pop, universalizados, porém com total liberdade de criação e concepção, dentro dessa tradição italiana.


UHQ: Já quase um século, os Estados Unidos exportam, nos comics, seus padrões para quase todo o mundo. Recentemente, o Japão trilhou os mesmos passos com mangás. Por que essa hegemonia não passou para a Itália, que é o país do design e das artes gráficas?

Morbus Gravis - Druuna
Morbus Gravis - Druuna
Gonçalo: Como disse, é uma questão cultural mais ampla e complexa, que exige certa proximidade e conhecimento para ser compreendida ou explicada. A Itália era completamente dominada pelos comics até 1938, quando Mussolini proibiu, por meio do Ministério da Cultura Popular, sua publicação. Trato disso com detalhes no livro - e também em A Guerra dos Gibis.

Como conseqüência, o mercado passou por um período traumático, confuso, quando predominou o plágio e a influência norte-americana nos autores. Principalmente o faroeste. Depois da guerra, essa censura acabou. No começo da década de 1960, surgiu na Europa um movimento simultâneo de valorização dos quadrinhos, principalmente pela Universidade e pelo aparecimento de críticos e historiadores.

A partir desse momento, a Itália começou a desenvolver um quadrinho adulto e mais autoral, que conseguiu se estabelecer, mesmo com a forte presença dos
comics e seus temas americanos. Surgiram grandes revistas e autores, com trabalhos consistentes que, de certo modo, devem ter contribuído para permitir uma vida própria às HQs italianas.

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