Em "Corte Seco", a diretora Christiane Jatahy fica no palco e interrompe as cenas, numa peça que faz refletir sobre a realidade de nosso tempo
Por Manoela Sawitzki
Ao entrar na sala de espetáculos tem-se a impressão de encontrar algo inacabado. Dez atores transitam como que sem intenção pré-estabelecida, e alguns acenam para amigos enquanto o público se acomoda. Na lateral direita, uma mesa abriga a diretora carioca Christiane Jatahy e sua equipe técnica. Não há divisórias. Num ambiente de paredes e portas descobertas, objetos de cena empilhados, tudo está à mostra: pode (e deve) ser visto. Assim começa Corte Seco, peça da Cia Vértice de Teatro em cartaz no teatro Sérgio Porto, no Rio de Janeiro. Com ela, a Cia Vértice fecha a trilogia iniciada com Conjugado (2004) e A Falta que nos Move (2005).
O descortinamento da construção cênica e a aparente eliminação de fronteiras entre ator e personagem, situação dramática e acontecimento real, compõem um ardil permanente. O texto apresenta uma sucessão de eventos cotidianos: enfrentamentos entre casais, pais e filhos, tabus sexuais, traumas, romances e acidentes dividem espaço com quiproquós típicos do universo teatral.
Às vezes é realmente difícil entender quem é quem. Vale, no entanto, o que disse o cineasta Robert Altman (referência forte do espetáculo), sobre a confusão gerada pela dificuldade de identificar os personagens em alguns de seus filmes: "É assim que a vida se parece". Os eventos acabam sob a navalha de cortes abruptos comandados ao vivo pela diretora. É ela quem determina, a cada espetáculo, novos cortes e diferentes ordens das cenas.
Cadeiras representam dimensões simbólicas, atribuindo funções a quem as ocupa. Fronteiras traçadas no chão pelos atores logo se convertem num emaranhado que dialoga com a narrativa. Monitores afixados em estruturas móveis revelam imagens de outros espaços do prédio, captadas por câmeras de vigilância. Tudo acontece em tempo real e faz refletir sobre a realidade em nosso tempo. A boa notícia é que o uso do vídeo não soa gratuito. Esse sistema se harmoniza com o que se passa no palco e reserva algumas boas surpresas fora dele.
Em alguns momentos as fórmulas correm o risco de se desgastar pelo excesso, mas o excesso é incorporado como linguagem. Do mesmo modo, as mudanças frequentes de registro e a tal secura do corte podem confundir a ponto de perder densidade dramática. Mas a proposta talvez seja justamente essa: uma narrativa retalhada que se converte em breves focos de conflito. Na narrativa da vida, o que interessa é o instante. Quem é quem já não importa tanto: estamos diante de um espelho estilhaçado.
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