quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

DO FUNDO DO LAGO ESCURO - PEÇA TEATRAL




Sábato Magaldi


Domingos Oliveira não esconde que Assunto de Família (Do fundo do lago escuro) seja uma peça sobre sua infância. Antes de lançar-se à maquina de escrever, releu Longa jornada noite adentro, de O'Neill, a mais pungente e admirável autobiografia da História do Teatro. Ele fez bem em enfrentar o difícil tema e em escolher o grande modelo: resultou uma das mais sensíveis e reveladoras obras do nosso repertório moderno.





 

Nessa busca do tempo perdido, Domingos utilizou todos os recursos à sua disposição. A reconstrução da memória deu um toque de inconfundível verdade ao diálogo. Nada é postiço, fabricado ou dispensável. Está-se diante de um mundo fechado, um núcleo que se basta na sua unidade. E, no entanto, essa família retrata toda uma realidade brasileira - econômica, social, psicológica, sexual e política.



A nostalgia não envolve os episódios em atmosfera poética esgarçada. Cabe afirmar, ao contrário, que o autor prefere a dureza, o jogo dramático rude, o desmascaramento da aparência exterior, senão bonita, ao menos ordenada. Enquanto a família robustece seu ardor cívico ouvindo os inflamados discursos de Carlos Lacerda, nos idos dos anos 50, pouco antes do suicídio de Getúlio Vargas, seus valores internos desabam e se sente que desaparece um mundo.



Domingos não chega a mostrar-se impiedoso, porque seu feitio não admite o ressentimento. Assunto de Família é, antes, um exercício de desnudamento. Deve ter-lhe doído recriar tantos fantasmas, mas o texto não permanece na confissão pessoal, nem vê a realidade a partir do próprio umbigo. A soma de experiências vividas dá às histórias um sabor de verdade. E se abre para o depoimento sobre uma época, fornecendo uma visão clara de uma parcela expressiva do Brasil, a partir do retrato de uma família carioca abastada.



A permanência da casa em Botafogo como cenário, quando os edifícios de apartamentos já dominavam a paisagem do Rio, situa financeiramente a família, sustentada pela locação de imóveis deixados por seu chefe, morto há quatro anos. Aliás, significativamente a peça se passa no dia em que se comemora o aniversário do falecimento, com a ida ao cemitério. Quem herdou o poder foi a viúva, d. Mocinha, que gere a casa de acordo com seus princípios, submetendo toda a família à sua vontade superior.




O dramaturgo, dentro de estrita verossimilhança, concentra a ação num só dia, em três atos, e se supõe a continuidade natural do tempo. Os intervalos, assim (no espetáculo há apenas um), se destinam ao repouso do espectador, sem servir para separar os acontecimentos. Os móveis da ação têm tanta credibilidade que os episódios escorrem, bem concebidos e encadeados.


Assunto de Família reúne dois protagonistas: o menino Rodrigo e sua avó materna, d. Mocinha - ao menos como foco preferido pelo autor. Rodrigo procura a cadela Kitti (que se saberá ter morrido, enquanto a família foi ao cemitério), tem uma aula particular, dialoga com todos, recebe a visita do primo Ricardo.



D. Mocinha é autoritária, cultua a memória do marido (mesmo sabendo de suas aventuras extraconjugais), mostra um profundo conhecimento dos homens, joga cartas para distrair-se e cumpre deliciada o ritual de ouvir as catilinárias de Lacerda contra o regime Vargas. Vinda de um passado de fartura, ela nem percebe que os aluguéis recolhidos são insuficientes para as despesas até o final do mês, embora a argúcia a faça descobrir um abuso de confiança do genro e procurador Henrique, pai de Rodrigo.



Conceição, mãe de Rodrigo, sibmete-se à autoridade de d. Mocinha e ocupa o pequeno espaço que lhe resta com exigências severas aos empregados. Henrique, descoberta a venda não autorizada de dois imóveis no Andaraí, refugia-se em aparente dignidade e acaba por ceder à proposta de conciliação, que salvaria o orgulho ferido.



Participam ainda deste álbum de família Orlando, filho de d. Mocinha, o típico malogrado que se afoga em bebida e retira por antecipação o que lhe caberia da herança; Ricardo, filho problemático de Orlando, marcado pela separação dos pais; Pinheiro, quase um agregado da família, presença obrigatória no jogo doméstico; Adalgisa, a simpática professora particular de Rodrigo; e dois empregados - o jardineiro Manoel e a arrumadeira Iracema, envolvidos entre si e com os meninos.



 

A peça poderia, de um certo ângulo, ser vista como um quadro de decadência familiar, mais um decantado réquiem da classe burguesa, o que a aproxima de Tchecov de As três irmãs e de O jardim das cerejeiras. De outro lado, Domingos pontua a fraqueza moral de Henrique com outras marcas da decadência de costumes.



Não é mera coincidência que, naqueles anos, diante do temor que tem Conceição de engravidar, Henrique a sodomize. E os últimos diálogos que se travam entre Ricardo e Rodrigo: sugere-se claramente que o primeiro leva o segundo ao galpão com o objetivo de também sodomizá-lo, como já havia proposto. Esse o pano de fundo que aguarda a voz de Lacerda, no pronunciamento das nove horas da noite.



A partir de dados tão amargos, Assunto de Família se afasta de qualquer possível parentesco tchecoviano. A "reconciliação" do casal adulto, sob o olhar complacente da matriarca, fortalece o vínculo familiar, mesmo se debaixo de um acordo hipócrita. A cena com os meninos revela um quadro constrangedor, quando a tradição apregoada da família é de um machismo triunfante. Nada disso tem importância: sob a tutela lacerdista, d. Mocinha e os seus ultrapassarão o mar de lama que existia à volta do antigo ditador, e sabe-se que outras lutas políticas vão delinear-se no horizonte.



 

A decadência, no caso, não implica o desaparecimento de uma classe, como ocorre na dramaturgia de Tchecov. Sem proselitismo e sem ideologia expressa de nenhum tipo, Domingos Oliveira mostra que a falta de escrúpulos talvez contribua para o enriquecimento familiar. Afinal, Henrique vendeu os imóveis do Andaraí e adquiriu terrenos no então longínquo Leblon. Se ele conseguisse regularizar os títulos de propriedade, sem dúvida teria feito um ótimo negócio...

O texto, sem desejá-lo, é irônico e cruel.


Com o título Do fundo do lago escuro, a peça foi considerada o Melhor Texto de Comédia do IX Concurso de Dramaturgia - Prêmio Serviço Nacional de Teatro/1977. No programa do espetáculo, o próprio autor discute o problema, afirmando: "O texto tinha ganho o prêmio de melhor comédia, embora fosse obviamente um drama. Isto se deveu, segundo informações internas, ao fato de não poder dar o prêmio de drama a uma peça que não fosse diretamente 'política' etc. Enfim, esta besteira conhecida de todos. Quando comecei a ler a peça, porém, comecei a verificar que realmente aquilo era engraçado. Eu estava muito emocionado e quanto mais me emocionava, por algum caminho estranho, mais engraçadas ficavam certas frases da peça".


O gênero dependerá, certamente, da linha atribuída pelo encenador ao espetáculo. Voltando a Tchecov: ele considerava comédias suas peças, enquanto Stanislavski as montava como dramas, no Teatro de Arte de Moscou. Fernanda Montenegro lembra que Assunto de Família "...é uma comédia, no sentido clássico". E acrescenta que é tênue o limite entre os gêneros, e assim se poderia classificá-la como comédia dramática ou drama cômico: "O processo da vida burguesa é um processo tragicômico. É trágico para quem o vive, e cômico para quem o assiste.



 

A tônica do gênero não é fundamental para definir o texto. Importa observar que Domingos Oliveira soube estruturá-lo com mão firme, dando à sucessão de acontecimentos o caráter de inexorabilidade. Ficcionista poderoso, ele fixa com rigor um microcosmo. Que remete ao macrocosmo da vida do Brasil. Uma das obras que melhor desvendam o caráter de nossas classes dirigentes. (1980).

Nenhum comentário:

Postar um comentário