Boa adaptação de obra de Kafka
Lionel Fischer
Autor de uma obra vasta e diversificada, Franz Kafka (1883-1924) talvez possa ser considerado o maior escritor do século XX. E verdadeiros tratados já foram escritos analisando a produção deste gênio falecido ainda tão jovem - e aqui cumpre registrar que, em vida, Kafka publicou muito pouca coisa e, pouco antes de morrer, pediu a seu amigo Max Brod que destruísse tudo que ainda não chegara ao público; mas, para o bem de todos e felicidade geral da literatura, Max Brod não o fez. E dentre as obras não publicadas - e esta provavelmente não foi escrita com essa finalidade - consta "A carta ao pai", que ora ganha adaptação teatral.
Rebatizada de "Da carta ao pai - ou tudo aquilo que eu queria te dizer", a obra está em cartaz no Centro Cultural Solar de Botafogo. Alessandra Gelio assina dramaturgia e direção, sendo que o texto foi escrito com a participação dos atores Igor Angelkorte e Jean Machado, que dividem a cena com o violonista Chico Monjellos, que em dado momento profere algumas palavras.
Para os que não leram o texto original, este pode ser definido como uma espécie de lúcido e dilacerado "acerto de contas" de Kafka com seu pai, pessoa extremamente rigorosa e cuja relação com o filho deixou nele marcas profundas, das quais jamais se libertaria completamente e que foram responsáveis, em certa medida, por muitas de suas criações. Mas aqui foram introduzidos relatos de outros pais e filhos, que enviaram suas histórias para serem compartilhadas em cena, de acordo com o release.
Tal proposta, em si interessante, me parece que surgiu como uma tentativa de conferir uma ainda maior contemporaneidade ao texto, como se problemas entre pais e filhos se mantivessem basicamente os mesmos. E outra novidade diz respeito à estrutura narrativa: aqui estamos diante de dois homens de teatro, sendo que a um deles cabe escrever o texto, criar um personagem, e ao outro interpretá-lo. Também muito interessante tal idéia, que aos poucos vai sendo desenvolvida mesclando fragmentos de textos de Kafka com outros. Só achei um tanto superficial o início do espetáculo, quando os atores interagem diretamente com a platéia oferecendo café, fazendo perguntas etc., mas sempre num clima desnecessariamente festivo, diria mesmo um tanto artificial.
Mais adiante, no entanto, a interação com a platéia ocorre de forma a envolvê-la realmente na história, já numa atmosfera bem mais próxima do contexto criado por Kafka. E neste particular reside o principal mérito da encenação: a forma que a diretora Alessandra Gelio encontrou para converter os espectadores em cúmplices, ou ao menos tentar retirá-los da condição de meros assistentes e torná-los - até certo ponto, naturalmente - sujeitos da história representada.
E cabe ainda destacar a participação da encenadora junto ao elenco, pois, excetuando-se as gracinhas iniciais, já apontadas, tanto Igor Angelkorte quanto Jean Machado se entregam visceralmente às dolorosas questões levantadas pelo texto, dando vida aos personagens como se os mesmos fossem uma extensão de si próprios. Sem dúvida, performances que revelam jovens profissionais com uma bela trajetória a ser vivida nos palcos.
Quanto à equipe técnica, são corretos os figurinos de Tiago Ribeiro, a iluminação de Chico Monjellos e Vanessa Gref, a cenografia assinada pelo grupo e a música, em perfeita sintonia com o que está ocorrendo em cena, executada com precisão e delicadeza por Monjellos.
DA CARTA AO PAI...- Dramaturgia e direção de Alessandra Gelio. Com Igore Angelkorte e Jean Machado. Centro Cultural Solar de Botafogo. Quarta e quinta, 21h.
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