sábado, 24 de dezembro de 2011

10 anos sem George Harrison

O beatle mais jovem e tímido se afastou cedo dos holofotes – mas a vida dele só se tornou ainda mais profunda, rica e selvagem

por Brian Hiatt

O garoto magricela com cabelo escuro e grosso ficava sentado na fileira do fundo de uma sala de aula lotada, com a cabeça abaixada, olhos intensos fixos no caderno. Enquanto a professora falava, ele rabiscava com o lápis, como se anotasse cada palavra. Só que George Harrison não estava escutando. Aos 13 anos, filho de um motorista de ônibus, ele viajava em visões de seu futuro, enchendo os cadernos com desenhos obsessivos de guitarras – o instrumento que desejava tocar desde que começara a ouvir os sucessos de Elvis Presley, a incorporação sônica de toda a diversão e alegria que faltava na sombria Liverpool pós-guerra. Tempos depois, encheu os cadernos de letras de músicas, partituras e, de vez em quando, o desenho de uma motocicleta.

George ficou amigo de um colega de classe mais velho, Paul McCartney, que precisava de um guitarrista para uma banda nova. “Conheço alguém”, disse Paul ao líder do grupo, John Lennon. “Ele é um pouco novo, mas é bom.” Harrison passou no teste, tocando a música instrumental “Raunchy” na parte de cima de um ônibus de dois andares em uma noite – e, assim, virou um beatle, ou pelo menos um dos quarrymen. Só que os companheiros de banda nunca deixaram de pensar nele como um parceiro júnior – um “beatle da classe econômica”, na formulação sardônica de Harrison – e logo ele começou a pressionar para conquistar uma posição melhor.

George Harrison não era exatamente o beatle silencioso: “Ele nunca calava a boca”, diz o amigo Tom Petty. “Era a melhor companhia que você pode imaginar.” Ele era o beatle mais teimoso, o menos afeito ao showbiz, até menos preso ao mito da banda do que Lennon. Gostava de repetir uma frase que atribuía a Mahatma Gandhi: “Crie e preserve a imagem de sua escolha”. Harrison desafiou a primazia de composição de Lennon e McCartney; introduziu ao Ocidente – praticamente sozinho – a música indiana, por meio da amizade com Ravi Shankar; foi a primeira pessoa a fazer do rock um veículo para expressão espiritual desavergonhada e, com o Concerto para Bangladesh, filantropia em grande escala; fez mais sucesso em Hollywood do que qualquer beatle, produzindo filmes como A Vida de Brian, do Monty Python; e desmentiu a reputação de recluso solitário ao montar o Traveling Wilburys, uma banda que era tanto um clube quanto um supergrupo.

Como o novo documentário dirigido por Martin Scorsese, Living in the Material World, e o livro que o acompanha deixam claro, George Harrison não tinha ocupações casuais: ele seguiu seus interesses em ukulele, corrida de carros, jardinagem e, especialmente, meditação e religião oriental com uma energia incansável. “George era muito curioso, e, quando se interessava por algo, queria saber tudo”, diz a viúva, Olivia Harrison, que o conheceu em 1974 e se casou com ele quatro anos depois. “Também tinha um lado louco. Gostava de se divertir, sabe.” A primeira esposa de Harrison, Pattie Boyd, descreveu-o como oscilando entre períodos de meditação intensa e festas pesadas, sem meio-termo. “Ele meditava por horas a fio”, ela escreveu na autobiografia Wonderful Tonight. “Então, como se fosse difícil demais resistir aos prazeres da carne, parava de meditar, cheirava cocaína, se divertia, paquerava e festejava... Não havia normalidade nisso também.”

Diz Olivia: “George não via preto e branco, alto e baixo como coisas diferentes. Não dividia seus humores ou sua vida em compartimentos. As pessoas pensam: ‘Ah, ele era assim ou assado, ou muito extremo’. Mas todos esses extremos estão dentro de um círculo. E podia ser muito, muito calado ou muito, muito espalhafatoso. Quer dizer, quando começava, já era. Ele não era, digamos, um banana, isso eu garanto. Ele conseguia ir mais longe do que todos”.

Harrison e os colegas de banda perderam shows de talento local para uma banda liderada por um anão – mas nem isso os abalou. “Éramos convencidos”, afirmou Harrison. As coisas se reverteram intensamente, e ele adorou aquilo no início, adotando as fases do sucesso de “uma maneira quase adolescente”: seu aprendizado de menor de idade no bairro da luz vermelha de Hamburgo (onde perdeu a virgindade enquanto os outros beatles fingiam dormir no mesmo quarto – e aplaudiram no final); o processo doloroso de desenvolver seu próprio estilo na guitarra, calcado no country e no R&B; o início da beatlemania; a fama, o dinheiro, as mulheres, a união entre os quatro. “Éramos pessoas relativamente sãs no meio da loucura”, disse Harrison. Nos primeiros anos, também idolatrou Lennon em particular: “Ele me disse que admirava muito, muito o John”, conta Petty. “Provavelmente queria muito a aceitação dele, sabe?” Só que, em 1965, Harrison experimentou ácido e, de repente, passou a não acreditar nos Beatles. “Não demorou muito para se dar conta de que ‘não é isto’”, conta Olivia. “Ele percebeu: ‘Não é isto que vai me sustentar. Não vai ser o suficiente para mim’.”

“É bom ser popular e ser procurado, mas, sabe, é ridículo”, disse Harrison à Rolling Stone em 1987. “Percebi que é algo sério, minha vida está sendo afetada por todas essas pessoas gritando.” Ele se sentia fisicamente inseguro. “Com o que está acontecendo, presidentes sendo assassinados, toda a magnitude da nossa fama me deixou nervoso.” No set de Os Reis do Iê-Iê-Iê, George conheceu Pattie Boyd, uma modelo loira e magra; no set do filme seguinte dos Beatles, Help! , encontrou a música indiana clássica – que o levou a uma busca que duraria muito mais que seu casamento. A tentativa de dominar a cítara o levou à ioga, que o levou à meditação, que o levou à espiritualidade oriental, que ajudaria a definir sua vida. “Ele estava buscando algo muito superior, muito mais profundo”, disse Shankar, virtuose da cítara que se tornou amigo e mentor de Harrison. “Parece que ele já tinha algum histórico indiano nele. Caso contrário, é difícil explicar por que ficou tão atraído por um tipo de vida e filosofia, até religião, em particular. Parece muito estranho, a não ser que você acredite em reencarnação.”

Por um tempo, era como se ele estivesse sentado nos fundos da sala de aula dos Beatles, rabiscando cítaras – daí “Within You without You”, a bela e anômala faixa de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. No entanto, depois de perceber que nunca seria mais do que um citarista mediano, George voltou a se focar na guitarra e na composição, criando algumas das melhores músicas dos Beatles: “Something”, “Here Comes the Sun”, “While My Guitar Gently Weeps”, além de “Not Guilty” e “All Things Must Pass”, que Lennon e McCartney erroneamente rejeitaram. Também começou a tocar guitarra com slide, desenvolvendo uma voz instrumental emotiva e diferenciada que refletia seu espírito recém-liberado.

Lutar por seu lugar na banda e pelo lugar de suas músicas nos discos era exaustivo – tanto quanto simplesmente ser um beatle. “Às vezes, eu me sinto como se tivesse mil anos”, afirmou Harrison – que tinha 27 quando os Beatles se separaram. “Aquilo estava me envelhecendo... era uma questão de parar ou acabar morto.” Os dias de turnê da banda tinham acabado, mas a beatlemania o deixou com algo parecido com um transtorno de estresse pós-traumático. “Se você tivesse 2 milhões de pessoas gritando para você, acho que demoraria muito tempo para parar de ouvir isso na sua cabeça”, diz Olivia. “George não foi feito para aquilo.”

Harrison fez amizade com Bob Dylan (“Eles tinham uma conexão de alma”, segundo a viúva) e Eric Clapton, e seus momentos com os dois artistas o mostraram um caminho adiante. Quando os Beatles implodiram em 1970, ele lançou o álbum triplo All Things Must Pass, abrindo seu baú de músicas.

No ano seguinte, a pedido de Shankar, Harrison persuadiu Clapton, Dylan e Ringo Starr, entre outros, a se unirem para o Concerto para Bangladesh, que definiu o modelo para todos os grandes shows beneficentes nos 40 anos seguintes. O show foi um triunfo, mas o resultado foi uma confusão dolorosa, à medida que os esforços de Harrison para fazer a renda chegar aos refugiados enfrentavam códigos fiscais e burocracias. O casamento dele também estava desmoronando: de maneira infame, Pattie o trocou por Clapton, embora a amizade dos dois tenha sobrevivido de alguma forma. Apesar de toda a base espiritual, Harrison estava bebendo demais, festejando demais, dormindo com várias pessoas. “Senses never gratified/Only swelling like a tide/ That could drown me in the material world” (Sentidos nunca satisfeitos/ Só subindo como uma maré/ Que poderia me afogar no mundo material), cantou, esgotado, na faixa-título do álbum seguinte, Living in the Material World.

A turnê norte-americana de Harrison em 1974 foi a última dele, com exceção de uma curta temporada no Japão em 1991. Com longos solos de Shankar, vocais fracos de Harrison e a recusa em tocar músicas conhecidas dos Beatles (ele gritava durante versões desanimadas de “Something”), as críticas foram brutais. Harrison ficou angustiado com as multidões desordeiras e a intensamente festeira banda de apoio que ele havia escolhido. Aquilo não parecia mais ser o mundo dele. “George falava muito sobre seu sistema nervoso, que ele simplesmente não queria mais ouvir barulhos altos”, conta Olivia, que começou a namorá-lo no ano da turnê. “Não queria ficar estupefato. Não queria ficar estressado.”

Harrison lançou mais sete álbuns solo, mas ficou cada vez menos interessado em qualquer plano de carreira convencional. “George não estava procurando isso”, diz Petty. “Não queria ter um empresário ou um agente. Estava fazendo o que desejava. Acho que não dava valor algum ao estrelato.”

Seu relacionamento com Olivia o deixou centrado, e ele diminuiu as festas. Harrison ficou extasiado quando o casal teve seu único filho, Dhani, em 1978. “As únicas coisas que ele achava que eu tinha de fazer na vida são ser feliz e meditar”, conta Dhani, que cresceu na Friar Park – a mansão de 120 quartos no interior da Inglaterra que Harrison comprou em 1970, prejudicando as finanças até de um beatle. A propriedade era linda e misteriosa, com cavernas, gárgulas, cascatas e vitrais instalados por Sir Frank Crisp, um milionário excêntrico que foi dono dela até morrer, em 1919. Harrison tinha fixação por restaurar os jardins do terreno de 14 hectares, que estavam em estado lastimável.

Quando criança, conta Dhani, “Eu tinha certeza de que ele era só um jardineiro” – uma conclusão razoável, já que Harrison trabalhava 12 horas por dia ali, perdendo jantares em família enquanto perseguia sua visão, plantando árvores e flores. “Ser o jardineiro, não conviver com ninguém e simplesmente ficar em casa, isso era muito rock and roll, sabe?”, diz Dhani, que entendia a paixão do pai: “Quando você está em um jardim realmente bonito, isso te faz lembrar constantemente de Deus”.

Depois de um hiato de cinco anos entre álbuns, Harrison convocou o produtor Jeff Lynne para Cloud Nine, de 1987, que lhe fez chegar ao Número 1 com “Got My Mind Set on You,” uma cover animada de uma obscuridade dos anos 60. O mais importante: uma sessão para gravar um lado B – uma colaboração casual com Lynne, Dylan, Petty e Roy Orbison – o levou ao Traveling Wilburys, o projeto pós-Beatles do qual ele mais gostou.

Ele gostava de fazer parte de uma banda novamente, sem falar da colaboração com Dylan, amigo e herói. “Fico muito mais à vontade jogando em equipe”, dizia Dylan a Petty. O Wilburys gravou dois álbuns (Dhani se lembra de passar tempo com Jakob Dylan jogando o game
Duck Hunt no Nintendo enquanto a banda trabalhava no segundo disco, no andar de baixo), mas nunca fez um único show. “Toda vez que George fumava um e tomava algumas cervejas, começava a falar de fazer turnê”, conta Petty. “Acho que falamos seriamente sobre isso uma ou duas vezes, mas ninguém se comprometeu de verdade.” Um terceiro álbum do Wilburys era sempre uma possibilidade. “Nunca achamos que não daria tempo”, afirma Petty.

Em vez disso, depois de uma turnê de 13 datas no Japão com Clapton, Harrison voltou a ser um jardineiro. “Ele não queria ter obrigações”, diz Olivia. Continuou compondo e gravando músicas no estúdio em casa, mas recusou ofertas para aparecer em premiações – ou para qualquer outra coisa. “Simplesmente tenho de abrir mão disso tudo”, dizia. “Não me importo com discos, filmes, estar na TV ou todas essas coisas.”

Em 1997, foi diagnosticado com câncer na garganta e passou por um tratamento com radioterapia. Dois anos depois, um homem com problemas mentais conseguiu entrar em Friar Park e deu uma facada no pulmão de Harrison. George se recuperou, mas Dhani acredita que os ferimentos enfraqueceram o pai quando este enfrentou um câncer de pulmão, mais tarde. A doença se espalhou para o cérebro e George Harrison morreu em 29 de novembro de 2001. Olivia tem certeza de que o quarto do hospital se encheu de uma luz brilhante enquanto a alma deixava o corpo dele. 

“Ele dizia: ‘Olha, não somos estes corpos, não vamos nos prender a isso’”, diz Petty, que faz meditação desde que o amigo o introduziu na prática. “George falava: ‘Só quero me preparar para ir do jeito certo e para o lugar certo’.” Ele az uma pausa e ri. “Tenho certeza de que conseguiu.”

Em meados deste ano, Dhani Harrison, agora com 33 anos, voltou para Friar Park e passou um longo tempo olhando para o jardim. Nunca esteve tão bonito – as árvores que o pai plantou finalmente cresceram. “Ele provavelmente está rindo de mim”, afirma Dhani, “dizendo: ‘É assim que tem de ser’. Você não constrói um jardim para si mesmo, agora mesmo – constrói para gerações futuras. Meu pai definitivamente tinha visão de longo prazo”.

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