sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Western Feijoada - O Faroeste no Cinema Brasileiro










Rodrigo Pereira, 31 anos, é jornalista e pesquisador de cinema. Em 2002, defendeu na UNESP/SP a dissertação “Western Feijoada: o faroeste no cinema brasileiro”, que deve virar livro até o final deste ano. Também lançará neste ano, ao lado de Daniel Camargo e Fábio Velozzo, a biografia de Antônio Teffé (ou Anthony Steffen), astro ítalo-brasileiro de westerns spaghetti, morto no Rio de Janeiro em 2004.

Tratando de um tema geralmente ignorado pela historiografia oficial do cinema brasileiro – o filme de faroeste nacional – ele também discute em sua pesquisa a importância do cinema de gênero no Brasil e a falta de registro histórico acerca de temas, filmes e pessoas importantes de nossa cinematografia. Em entrevista concedida ao Cinequanon no dia 30 de março de 2005, Rodrigo falou sobre sua dissertação, seus projetos e, é claro, sobre western.




De onde surgiu seu interesse pelo faroeste brasileiro, um assunto tão específico e ao mesmo tempo obscuro de nossa cinematografia?

Rodrigo Pereira –
Cresci numa cidade do interior do interior de São Paulo, Lucélia, que tem cerca de 20 mil habitantes. Ter contato com informação lá era um processo muito difícil. Então, aprendi muita coisa sobre cinema com meu pai – um anti-cinéfilo por excelência, o tipo de pessoa que não é capaz de dizer o nome do diretor de nenhum filme que viu na vida. Ele gosta muito de faroestes, e reparava no meu interesse, pois eu perguntava muito sobre os filmes que ele tinha visto. Aí uma vez ele disse uma coisa que foi como uma revelação: “não sei se você sabe, mas aqui em Lucélia foi rodado um faroeste uma vez” – o filme é “Homens sem Paz”, rodado em 1956 e lançado em 1957.

Até aí você não sabia que havia westerns no Brasil?

Rodrigo –
Não, e fiquei chocado, porque você cresce imaginando que o western é algo delimitado temporalmente e geograficamente. Então aquilo foi uma surpresa: “puxa, teve um faroeste no Brasil”. (Mal sabia eu que, na minha pesquisa, ia descobrir que foram realizados aqui cerca de 100 filmes de faroeste apenas no período do cinema sonoro...) E comecei a ficar meio obcecado com aquilo, porque o que havia disponível de bibliografia sobre cinema nacional não tinha referência a este filme. Os únicos livros que citavam “Homens sem Paz” eram o “Dicionário de Cineastas Brasileiros”, do Luiz Felipe Miranda, e o livro do Alex Viany, “Introdução ao Cinema Brasileiro”, publicado em 1959, mas esse só trazia a ficha técnica. Depois, em 2002, saiu o “Dicionário de Filmes Brasileiros”, do Antônio Leão da Silva Neto, que também cita o filme. Se você pegar “A História do Cinema Brasileiro”, por exemplo, um livro ótimo organizado pelo Fernão Ramos, não tem nenhuma referência a “Homens sem Paz” e nem ao fato de ter havido westerns no cinema brasileiro.

E como você decidiu dar início à pesquisa propriamente dita?

Rodrigo –
Pois é, eu já tinha essa curiosidade, que aumentou quando resolvi fazer, como trabalho de conclusão de curso de Jornalismo na UNESP, a biografia do ator principal de “Homens sem Paz”, Maurício Morey, que atualmente mora em Santa Rita do Passa Quatro (SP). Quando marquei a entrevista por telefone, falei sobre um faroeste que ele havia feito nos anos 50, e ele falou assim: “um faroeste, não; eu fiz três”. Aí as coisas começaram a mudar, não era apenas um faroeste brasileiro, já tínhamos três. Enfim, fiz um livro sobre a vida dele (nunca publicado) e, na pesquisa para o livro, vinha muito aqui na ECA [Escola de Comunicações e Artes da USP] pegar revistas de época como a “Cinelândia”, e vi que o cara era um astro muito respeitado. Principalmente o primeiro faroeste dele, de 1954, chamado “Da Terra Nasce o Ódio”, foi um sucesso gigantesco, e gerou uma história curiosa: existe um faroeste muito famoso lançado no Brasil em 1958 com o título “Da Terra Nascem os Homens”, e cujo título original é “The Big Country”. Nesse caso, é evidente que a distribuidora brasileira tentou aproveitar o sucesso de um faroeste brasileiro para tentar vender um filme hollywoodiano.

E esse tipo de informação se perdeu na historiografia à qual temos acesso hoje?

Rodrigo –
Sim. Na verdade, não se faz história do cinema brasileiro sem jornais e revistas de época. Isso é fundamental para você entender como os filmes eram recebidos. Hoje, se você falar em “Da Terra Nasce o Ódio”, ninguém conhece, mas se você pegar os jornais da época, é surpreendente encontrar no Estadão, por exemplo, uma crítica elogiosa ao filme. Você sabe que nessa época o cinema brasileiro era extremamente malhado, e de repente ali tem uma crítica superpositiva, dizendo que o filme apontava novos caminhos para o cinema brasileiro e deveria servir de lição para o Franco Zampari e para as pessoas que montaram os grandes estúdios aqui em São Paulo. O crítico considerava que “Da Terra Nasce o Ódio” era um exemplo de como fazer um bom trabalho com pouco dinheiro, pois o filme foi feito de maneira completamente independente: um fazendeiro de Santa Rita do Passa Quatro produziu, e o irmão do Maurício Morey, Antoninho Hossri, dirigiu, usando as fazendas da região.

E como essa curiosidade acerca do tema chegou à academia, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UNESP?

Rodrigo –
Na verdade, nunca tive um projeto de fazer mestrado. O que eu tinha era um trabalho sobre um único ator de três faroestes. Mas isso me levou a pensar muito sobre essa questão do faroeste no cinema brasileiro, e tive vontade de sentar para escrever um livro. Só que essa de “sentar para escrever um livro” é o tipo de coisa que não acontece se você não tem alguma estrutura colocando prazos, metas. E, depois que eu me formei, meu afastamento da vida acadêmica foi completo, estava mais cuidando de me firmar como jornalista e tudo mais. Mas sempre que passava num sebo e encontrava, por exemplo, uma “Cinema em Close Up” [revista de cinema da década de 1970] com o Tony Vieira [ator e diretor de faroestes e policiais dos anos 70] na capa, eu comprava, pensando “isso ainda vai servir para alguma coisa”. Aí, em 2000, eu estava desempregado em Bauru, e uma namorada que ia prestar mestrado sugeriu que eu prestasse também. Então, escrevi meu pré-projeto juntando tudo o que tinha guardado, e acabei sendo aprovado.

Sua pesquisa cobre que período?

Rodrigo –
Minha pesquisa se refere apenas ao cinema sonoro, porque é o que ainda é possível assistir e verificar (houve faroestes no cinema mudo, mas os filmes estão perdidos, inclusive um muito famoso chamado “Sofrer para Gozar”, rodado em Campinas em 1923). O período em que se produziram westerns no Brasil dura 30 anos, de 1953 até 1983, quando foram realizados cerca de 100 filmes desse gênero. Houve anos em que foram feitos até cinco faroestes, outros anos em que foram feitos um ou dois. Há uma variação, mas a questão é que, de 1953 (quando foi realizado “O Cangaceiro”, do Lima Barreto) até 1983, não se passa um ano sem que você tenha pelo menos um faroeste brasileiro estreando no cinema. A partir de 1983, isso acaba, pois há uma mudança muito grande no mercado do cinema nacional com a introdução da indústria pornô. Até houve alguma coisa depois, em Santa Catarina, feita por um cara chamado João Amorim, e também muita coisa tosca, como os filmes do Afonso Brazza, em vídeo. Mas, em película e com lançamento no cinema comercial, depois de 1983, só teve mesmo “O Cangaceiro” do Massaini, de 1997, que é um western – e dos piores, aliás.

A imprensa de época também foi um suporte importante na sua pesquisa de mestrado, da mesma forma que no Trabalho de Conclusão de Curso?

Rodrigo –
Sim, fundamental. Afinal, foi pesquisando jornais de época que, além de encontrar os westerns do Maurício Morey, acabei descobrindo outros westerns de outras pessoas. Então, enquanto eu fazia a biografia dele, vi que, ao contrário da impressão de que aqueles eram casos excepcionais, na verdade se fazia muito daquilo. E aí mais uma surpresa: à medida em que fui aumentando meu campo de pesquisa, vi que nos anos 60 também houve faroestes, assim como nos anos 70 e até o começo dos anos 80. E isso é louco, porque você lê tudo o que existe sobre cinema brasileiro e não encontra referência a isso.

Dos filmes sobre os quais você encontrou registro, a quantos assistiu durante a sua pesquisa? Como os conseguiu?

Rodrigo –
Quando terminei a dissertação eu tinha visto trinta, mas agora devo estar perto de uns 40. O meu sonho é um dia ter todos esses filmes, mas é muito difícil conseguir: alguns não foram sequer telecinados, outros se perderam, o material ainda disponível em VHS está geralmente em péssimo estado...

Você também procurou profissionais desses filmes para conversar, como fez com o Maurício Morey?

Rodrigo –
Sim. Não sei nem até que ponto isso foi importante para a dissertação, mas o instinto jornalístico falou mais alto nesse caso. Muitas entrevistas acabaram dando em nada, outras foram bastante ilustrativas e bateram com algumas idéias que eu tinha a respeito do assunto. Por exemplo, falei com o Carlos Coimbra, e ele confirmou que a inspiração dos filmes de cangaço dele eram os westerns. Entrevistei também o Heitor Gaiotti, ator símbolo da Boca do Lixo (onde foram produzidos muitos westerns) e parceiro do Tony Vieira, ator e diretor de muitos faroestes. Outro entrevistado importante foi o Ozualdo Candeias, a quem chamo de Sergio Leone brasileiro, pois ele fez um filme deslumbrante chamado “Meu Nome é... Tonho”, que é muito acima da média dos westerns feijoada. Falei também com o Rubens Prado, que fez uma série de westerns de sucesso com um personagem chamado Gregório.

Em meio a dezenas de filmes brasileiros que retratam conflitos na zona rural, como você delimitou o seu objeto, isto é, os faroestes propriamente ditos?

Rodrigo –
Essa é uma questão fundamental, por que, por exemplo, dois clássicos do cinema brasileiro como “Vidas Secas” e “Deus e o Diabo na Terra do Sol” tratam de conflitos rurais, mas não são de forma alguma westerns. Então a definição depende muito de você assistir aos filmes (o que é difícil, por que muita coisa se perdeu) e observar a estrutura básica, que é a luta do bem contra o mal numa terra sem lei e em processo de civilização. Então, você precisa ter o Bem bem definido, o Mal bem definido, a história tem de se passar num lugar em vias de se tornar civilizado como entendemos que seja civilização. É isso que caracteriza o western americano, o western spaghetti e está muito claramente colocado, por exemplo, nos filmes de cangaço do Carlos Coimbra.

Então, para você, o que se costuma chamar de filme de cangaço é western?

Rodrigo –
Sim, tanto que se encontram nesses filmes frases como “Quando havia cangaceiros”, “Numa terra sem lei” – típicas do western. Ali, os cangaceiros são o mal encarnado, o que impede aquela região de se tornar civilizada, e você tem forças que vão tentar colocar ordem na casa. Esses filmes são os chamados nordesterns: têm cangaceiros e seguem a estrutura narrativa de um western. Não é assim em filmes de cangaço como os do Glauber, por exemplo, embora me pareça que em “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” a estrutura esteja bem clara – e colocada até no próprio título.

Mas encarar Glauber como um diretor que realizou um western não é uma questão polêmica?

Rodrigo –
Claro. Tanto que, na minha dissertação, o “Dragão da Maldade” não está considerado como western feijoada. Na verdade, num primeiro momento, eu tinha optado por trabalhar até “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, mas aí me convenci de que não tem nada a ver, de que a questão do bem e do mal não está de maneira nenhuma definida nesse filme. Então, como esse se revelou um alarme falso, fiquei com medo de trabalhar o “Dragão da Maldade” na dissertação. Mas hoje, depois de rever o filme muitas vezes, não tenho a menor dúvida de que se trata de um faroeste, e de que não tem problema nenhum o Glauber ser o maior cineasta brasileiro, ter feito filmes politicamente engajados e intelectualmente bem desenvolvidos, e ter dirigido um filme que segue os preceitos de um gênero puramente comercial. Aliás, recentemente, saiu um livro chamado “Glauber Rocha – Um Olhar Europeu”, de Cláudio Valentinetti, e o que observei lendo esse livro é que, se para a imprensa brasileira o Glauber raramente falava em westerns, para a Cahiers du Cinema ele falava sobre isso de uma maneira muito tranqüila, citando sua admiração por John Ford, pelos westerns spaghetti e pelos faroestes do Sam Peckinpah. De fato, é gritante a relação de “Dragão da Maldade” com o western spaghetti nas cores, na maneira de conduzir a trama etc. Com esse filme, o Glauber também ganhou o prêmio de melhor direção no Festival de Cannes, bem na época em que o western spaghetti estava explorando a possibilidade de um discurso à esquerda.

E toda essa questão simplesmente não aparece nos textos acadêmicos e nem na imprensa brasileira?

Rodrigo –
Não. E tenho duas hipóteses sobre isso. A primeira é: como todo o texto para jornal é editado, o Glauber podia falar da relação dos filmes dele com o western spaghetti, e os jornalistas preferirem usar o que ele falava sobre Godard. Se você procurar a crítica brasileira sobre os westerns spaghetti na época, verá que esses filmes eram detonados – até mesmo o clássico “Era Uma Vez no Oeste”, cujo diretor, Sergio Leone, era acusado de subdiretor e medíocre. Parecia ser até uma obsessão da imprensa brasileira naqueles tempos acusar o western spaghetti de ser uma imitação do americano – e nada mais equivocado, pois, se você assiste a um filme desses, saca na hora que não é americano, pelo grau de violência e pela maneira como desconstrói a mitologia. Mas, percebendo a resistência da imprensa brasileira ao tema, ele pode também ter evitado o assunto, deixando para assumir a influência do faroeste italiano sem constrangimentos na Europa, ainda mais porque a Cahiers tinha interesse nessa discussão. No entanto, com o Glauber morto, não há como saber.

Se existe essa relação do filme dele com o faroeste italiano, ela não pode ter tido mão-dupla?

Rodrigo –
Em alguns casos específicos, sim. O que se tem de definitivo quanto à relação do western spaghetti com o Cinema Novo brasileiro é que o Damiano Damiani, diretor do primeiro faroeste spaghetti de esquerda (e, por extensão, do primeiro faroeste de esquerda), que no Brasil foi chamado de “Gringo”, mas também é conhecido (e foi lançado em DVD) com o título “Uma Bala para o General”, adorava Glauber Rocha. Nesse filme, por exemplo, o Klaus Kinski faz o papel de um padre revolucionário que o Damiano identificou em várias entrevistas como “uma mistura do Antonio das Mortes com o Beato Sebastião” de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. De fato, não tem como o cara olhar para aquele ambiente de deserto, aquela situação de vaqueiro/cangaceiro, de conflito por causa de terra, e não associar à mitologia do western.

Voltando à questão do western de maneira geral, você acredita que essa estrutura básica do “bem contra o mal numa sociedade em processo de civilização” se aplica a qualquer western?

Rodrigo –
Sim, mas quando você chega no western spaghetti, isso vai ficando mais complexo, como se nota em filmes “The Good, The Bad and the Ugly”, do Sergio Leone, que no Brasil foi chamado de “Três Homens em Conflito”, mas no original quer dizer “o Bom, o Mau e o Feio”. Esse filme justamente brinca com essas coisas, porque faz a gente se perguntar o tempo todo: afinal, quem é o bom, quem é o mau e quem é o feio. Mas ainda assim você é capaz de identificar, nesse filme, que o personagem do Clint Eastwood é “do bem”. E também é preciso observar o seguinte: há filmes classificados como westerns porque se passam no velho oeste, mas que não são propriamente westerns, pois não têm o conflito básico. O crítico francês Jean Louis Rieupeyrout, autor de “O Western ou o Cinema Americano por Excelência”, diz uma coisa importante nesse sentido: para ele, o faroeste nasce de uma necessidade de países que não têm tanto tempo de existência quanto os europeus e não tiveram experiências como a das novelas de cavalaria (que também tratam basicamente de enfrentamentos do Bem e do Mal).

Mas esse enfrentamento do bem e do mal numa terra em vias de civilização precisa ocorrer necessariamente nos Estados Unidos para ser um western genuíno?

Rodrigo –
Na minha opinião, não. Acho esquisito quando se afirma que o western só pode existir nos Estados Unidos do século 19, porque assim este seria o único gênero cinematográfico com lugar e hora para acontecer. O que define um gênero é a sua estrutura narrativa. Tente lembrar quantos westerns você conhece que começam com a identificação do ano. Isso praticamente não existe. Por exemplo: o que se considera genericamente western é o processo de civilização dos EUA em direção ao Oeste. Mas se você tomar isso como regra, “Meu Ódio Será sua Herança” não é western, pois se passa na revolução mexicana! Agora, alguém consegue assistir a esse filme e dizer que não é um western?

Voltando aos westerns nacionais, fale um pouco das características específicas que você observou no faroeste brasileiro.

Rodrigo –
Uma das coisas que observei é que nos westerns brasileiros o herói nunca consegue fazer nada sozinho. A idéia do herói auto-suficiente, que se basta e consegue resolver todas as situações, casa muito bem com uma ideologia da nação americana, mas sempre que um brasileiro tenta fazer o mesmo, não resiste à tentação de colocar o que eu chamo de “assistente do herói”. Se você assistir a qualquer um dos filmes de cangaço, aos faroestes rurais ou aos épico-regionalistas (como “Um Certo Capitão Rodrigo”, dirigido pelo Anselmo Duarte em 1971) até existem alguns heróis que prescindem dessa figura, mas a grande maioria conta com um ajudante.

E quanto aos vilões?

Rodrigo –
O vilão do western feijoada é sempre o que chamo de “vilão patriarcal”. Essa figura também existe nos faroestes americanos e italianos, mas não é obrigatória: se você pensar em um filme como “Shane”, por exemplo, o vilão interpretado pelo Jack Palance é um pistoleiro que vem com a missão de pegar o Shane, não é um grande proprietário ou algo parecido. Mas, no caso do western brasileiro, o vilão é sempre um tipo de coronel que tem um séqüito enorme de seguidores e protetores. Tanto é assim que o herói brasileiro só enfrenta esse vilão no momento final, quando já foram eliminados todos os capangas do cara, e ele não tem mais para onde fugir. No faroeste brasileiro não há nada parecido com um duelo na rua principal da cidade quando o sol se põe. O estilo “homem a homem” não existe no western feijoada.

Mas há alguma referência aos conflitos de terra e à desigualdade social?

Rodrigo –
Não, isso nunca está presente. Só o esteriótipo.

O que mais?

Rodrigo –
Outra coisa comum, que aparece muito no filme de cangaço, é a mulher violentada. Mesmo em “O Cangaceiro”, vocês devem lembrar de uma mulher que é laçada e marcada com ferro de gado. Claro que, como estamos nos anos 50, não tem a cena de estupro, muito comum nos filmes posteriores da Boca dos anos 70/80, com mulheres sem roupa e tal. Mas essa idéia está presente desde “O Cangaceiro”. Além da moça marcada e da professorinha seqüestrada, o filme tem uma fala exemplar do personagem interpretado pelo Adoniran Barbosa. Conversando com uma mulher que vive entre os cangaceiros, ele diz: “quando você nos chutava, a gente até gostava, mas agora é só encostar, e melancia de beira de estrada ninguém quer”. Fica claro, então, que aquela era uma mulher que havia sido violentada várias vezes, mas foi ficando entre eles e, por isso, deixou de ser interessante.

E como essa questão da mulher aparece no western clássico?

Rodrigo –
Os faroestes americanos tinham uma estrutura básica que opunha a mulher do saloon à mulher pioneira. Se você observar esses filmes, verá que a moça do saloon gosta do herói, até o ajuda muitas vezes, mas no final ele vai ficar com a mulher pioneira, com quem vai constituir família e colonizar o lugar. A mulher do saloon é sempre aquela com quem o herói não fica, pois ela não é pura para a construção uma civilização. Até existem mulheres violentadas no western, mas é muito pouco. Já no western feijoada, a questão sempre aparece.

Isso se deve a uma questão histórica brasileira?

Rodrigo –
Sim, e também é preciso lembrar a famosa frase do Paulo Emílio Salles Gomes sobre a incapacidade brasileira de copiar. Quando o brasileiro tenta filmar um gênero que não lhe pertence (policial, terror , western etc), mesmo tendo tenha todas as condições necessárias pra copiar, não faz igual. O western, por exemplo, é um gênero muito claro. Se a pessoa tem uma fazenda, alguns cavalos e espoleta, pode fazer um western. Mas, no Brasil, você vai lá, constrói o cenário de uma cidade do velho oeste, uma diligência, tem atores (canastrões ou não) em quantidade necessária, e faz um western como você entende que seja um. Mas, quando você o assiste, mesmo que o filme que seja dublado em outra língua, você vai ver elementos específicos (a mulher violentada, o assistente do herói, o vilão patriarcal) que caracterizam o western brasileiro. Assim, o fato da produção ser brasileira determina diferenças em relação ao modelo original. É inevitável. E isso vale não só para o cinema, mas também para a música e outros produtos culturais.

A que você credita essa opção recorrente pelo western na produção do cinema popular no Brasil durante trinta anos?

Rodrigo –
Minha teoria sobre isso é complicada de provar, mas tenho uma intuição muito forte que é a seguinte: em entrevistas com todos os diretores e atores envolvidos com faroeste no Brasil, você nota um pensamento do tipo “os gringos fazem faroeste, dá dinheiro, eles vêm pra cá e ocupam o nosso espaço, então devemos reagir ocupando esse mesmo espaço e fazendo a mesma coisa”. Assim, enquanto você tem pessoas que optam por combater a hegemonia do cinema estrangeiro (e particularmente norte-americano) através de um cinema de protesto, de guerrilha, você também tem essas pessoas de formação cultural muito limitada que entendem que ocupar espaço é fazer a mesma coisa que os gringos fazem. É interessante lembrar que “O Cangaceiro” e “Da Terra Nasce o Ódio” surgem no mesmo momento daqueles congressos do cinema brasileiro nos quais toda a discussão (que ainda persiste) girava em torno da reserva de mercado para o filme nacional. Assim, a opção pelo western pode ter sido em função de conseguir exibir os filmes. “O Cangaceiro” é um exemplo disso, pois foi um sucesso gigantesco. Outra coisa importante a esse respeito é o chamado circuito secundário, o cinema de periferia que existia naquela época. Os críticos dos jornais iam aos cinemas do centro, que tinham os grandes lançamentos, mas o povão pagava mais barato para ver programa duplo nos cinemas populares – que exibiam esses westerns. A morte desse circuito secundário no começo dos anos 80 ajuda a explicar a parada na produção: não havia mais onde passar os filmes.

Mas não havia também uma razão estética para essa escolha?

Rdrigo –
Sem dúvida. Tento imaginar o que pensava o diretor de um faroeste brasileiro, sabendo que teria de enfrentar a indústria de Hollywood num gênero que era a sua especialidade. Isso, de alguma forma, também corresponde à imagem do faroeste feijoada: um herói que enfrenta um vilão cheio de tentáculos e, para isso, precisa de um ajudante meio bobo – nesse caso, o público, que, em vez de comprar ingressos para ver um filme do John Ford, compra para ver o Tony Vieira. A própria mulher violentada também tem a ver com isso, ela é como uma propriedade que o vilão chega aqui e toma. É uma estrutura simplória, eu admito, mas me parece coerente com o papo dos caras. Essa questão de “a gente fazia filme para atrair o público porque os gringos vinham aqui e pegavam o que era nosso” é muito forte. Você conversa com um cara como o Maurício Morey, que nunca passou pela experiência da Boca, e com o Heitor Gaiotti, que trabalhou na década de 1970, e eles repetem a mesma coisa: “você fazia filme e não tinha onde passar, os americanos sabotavam a gente” etc. O Candeias também retoma freqüentemente essa questão no seu livro de fotos “Uma Rua Chamada Triumpho”. Então, me parece que as características específicas do western feijoada vêm dessa obsessão. Afinal, o western é um gênero em que a questão de querer competir de igual para igual com o produto importado é muito presente.

Você acha que a decadência do western no Brasil a partir dos anos 80 tem relação com a decadência desse gênero no resto do mundo?

Rodrigo –
É evidente que sim. O western, hoje, é um gênero extinto. O que se faz agora em filmes como “Os Imperdoáveis” é um estilo muito mais metalingüístico. Filmes como esse falam mais sobre o gênero western do que sobre a história dos EUA – o que teve início no western spaghetti durante década de 1960. Essa morte do faroeste se deve a mil e um fatores, sobretudo ao cinema de efeitos especiais inaugurado em 1977 por “Guerra nas Estrelas”, que levou toda a estética do western para o espaço sideral. A partir daí, começou o monopólio do efeito especial no cinema, algo que não tem lugar no western. Esse também é um período em que os mitos fundadores dos EUA já estão bem consolidados, ao mesmo tempo em que a derrota do país na Guerra do Vietnam dilui aquela visão positiva. Na Itália, nos anos 60/70, foram feitos quase 400 westerns spaghetti, e isso chegou a um ponto de total esgotamento. Mas, no Brasil, quando o gênero “morreu”, já estava praticamente extinto lá fora. Então, acho que o que mais conta aqui é o fechamento das salas de bairro, o advento do cinema pornô, o fim absoluto da reserva de mercado - aspectos que garantiam mais ou menos o retorno financeiro aos produtores de westerns feijoada. Eles tinham certeza de que, se colocassem os filmes no cinema de bairro, o povão não-alfabetizado, que não sabia ler legenda e gostava daquele tipo de filme, ia comparecer. A partir de momento em que a reserva de mercado pára de funcionar e as salas de exibição só ficam em bairros chiques, morre o western feijoada.

E o esquecimento a que esses filmes estão relegados se deve a quê?

Rodrigo –
Pois é. Ao mesmo tempo em que adoro a historiografia do cinema brasileiro, como os livros do Fernão Ramos e da Maria Rita Galvão, é preciso reconhecer que esses trabalhos acabam sendo marcados por um recorte muito parecido, voltado aos momentos clássicos, divisores de águas, e não dão conta da questão do cinema de gênero no Brasil, e nem do fato de que os filmes tidos como artisticamente mais importantes foram assistidos, na maioria das vezes, por poucas pessoas. O próprio Glauber teve a sua maior bilheteria com “O Dragão da Maldade”, que é um filme mais próximo do cinema de gênero. Acho que é preciso recolocar as coisas nos seus devidos lugares. No caso específico dos westerns feijoada, houve sucessos de público absolutamente ignorados pela nossa historiografia. Essa mesma historiografia não gosta de admitir a influência externa sobre o cinema brasileiro. Existe uma preocupação em construir uma versão do nosso cinema como se ele pudesse ter tido um trajeto totalmente independente, mas isso jamais seria possível quando se trata do cinema de gênero, em particular do western feijoada.

Falamos muito sobre western feijoada até agora, mas não perguntamos de onde surgiu o termo.

Rodrigo –
Talvez uma das coisas mais problemáticas, mais difíceis de convencer ao meu orientador e à banca, é de que esse título se justificava. Mas tenho um carinho tão enorme por esse título que fiz questão de que ele constasse na dissertação. E espero que, depois do livro publicado, as pessoas comecem a usar o termo de maneira mais tranqüila, como acontece com o western spaghetti. É assumidamente uma catalogação a posteriori, porque o “feijoada” teoricamente só pode surgir depois que o western spaghetti surge, ou seja, depois de 1964. Teoricamente. Mas eu o aplico inclusive para os filmes dos anos 50, pois a pesquisa está sendo feita agora, então não vejo problema em me apropriar de um termo que surgiu depois. Mas não fui eu que o inventei. A partir do final dos anos 60, a imprensa brasileira começou a usá-lo em tom depreciativo para identificar os faroestes da Boca do Lixo. Tenho uma crítica do filme “Pedro Canhoto – O Vingador Erótico”, escrita pelo Rubem Biáfora no Estadão, em que ele fala em “mais um western feijoada paulista”. Aí, com o tempo, os próprios realizadores começaram repetir o termo também.

É evidente que isso não legitima mais ou menos a sua pesquisa, mas é natural que se tenha uma curiosidade a respeito da qualidade cinematográfica dessas obras. Houve bons faroestes no Brasil?

Rodrigo –
Começo dizendo: há muitos filmes ruins. Mas essa afirmação serve para qualquer gênero cinematográfico de qualquer país do mundo. A gente costuma escrever a história do western assim: o John Ford fez “No Tempo das Diligências”, depois o Howard Hawks fez “Rio Bravo”, o Sergio Leone fez “Era Uma Vez no Oeste”, e assim por diante. O que as pessoas muitas vezes esquecem é que sempre houve muita gente fazendo westerns B, como o Roy Rogers, que fazia aqueles filmes pavorosos em que ele parava para cantar. Se você pegar todos os westerns já feitos, vai constatar que a maioria é lixo. Então, posso dizer que, dos faroestes brasileiros aos quais assisti, há alguns que eu simplesmente adoro. Em primeiro lugar está “Meu Nome é... Tonho” (1969), do Ozualdo Candeias, um filme bárbaro, selvagem. Coisa digna de Leone. Lembra muito o “Bang-Bang”, do Andrea Tonacci, na maneira absolutamente consciente com que trabalha os clichês do gênero. Mas também é preciso levar em conta o seguinte: durante muito tempo, fui viciado em cinema europeu, nos grandes clássicos. Só que, para a minha pesquisa, tive que “desaprender” a ver os filmes com esse olhar de “cinema de arte”. Afinal, quando você vê um western feijoada, precisa imaginar isso sendo exibido num cinema poeira, em que o ingresso custava a metade do preço dos cinemas de centro, com uma platéia que não conseguia ler legendas e que estava interessada na ação, na violência, na mulher nua, nas coisas acontecendo num ritmo rápido. E ainda assim, tem coisas ali... Só para citar um exemplo. No primeiro filme que o Tony Vieira dirigiu, chamado “Gringo – O Último Matador”, há uma cena maravilhosa em que ele, o Heitor Gaiotti e a Claudette Jaubert (o trio básico dos filmes dele) estão andando por um deserto feito em Sabaúna, no interior do estado. A noção que você tem de que aquilo é mesmo um grande deserto é enorme. Eles andam, andam, transpiram, caem, e aí há uma coisa genial: eles olham para cima e vêem urubus voando sobre eles. Então, corta-se para um plano da perspectiva do urubu! É uma coisa meio inusitada, que tem elaboração. O Carlão Reichembach trabalhou como ator nesse filme, e contou outra cena interessante, que o deixou maravilhado: nela, o Tony Vieira joga uma faca no José Lopes, que a segura e finge que ela acabou de entrar. Essa cena foi feita com um zoom recuado, e a sensação é a de que a faca entrou mesmo. Um truque óptico, na verdade. O Carlão viu aquilo e perguntou de onde ele havia tirado a idéia. O Tony respondeu: “eu estava assistindo A Fonte da Donzela, daquele sueco, e vi uma cena igualzinha”. Ele não sabia o nome do sueco, mas era o Ingmar Bergman.

E quais são os planos agora com relação ao lançamento de sua pesquisa em forma de livro?

Rodrigo –
Tenho uma proposta da Pandemonium, uma editora de Jundiaí, do jornalista Carlos Primati. E isso é interessante para ver como as coisas mudaram: o interesse dele surgiu porque a gente batia papo numa lista de discussão na Internet. De fato, com a Internet, cresce muito a possibilidade de se trocar idéias e viabilizar projetos.

Você acredita que há futuro para pesquisas como a sua no meio acadêmico dos estudos de cinema no Brasil?

Rodrigo –
Felizmente, estamos vivendo um momento propício para esse tipo de pesquisa, pois o meio acadêmico começa a perceber a necessidade de renovar os temas. Em 1999, houve uma mostra sobre o Cinema Marginal no CCBB de São Paulo cujo catálogo, de alguma maneira, já apontava para isso. Nesse catálogo, o texto escrito pelo Jean-Claude Bernardet começava dizendo o seguinte: “Há três, quatro décadas que nos acostumamos a pensar o cinema dos anos 60-70 em termos de Cinema Novo e Cinema Marginal – no caso do cinema culto, porque no comercial, o ciclo do cangaço, que era o que o público via, não pensamos muito”. Acho que os teóricos da academia já estão percebendo que trabalhos como o meu não invalidam outros em outras direções, pois a idéia é justamente a de que as coisas se somem.

E, afinal, trata-se da história do nosso cinema.

Rodrigo –
Exatamente. Adoro, por exemplo, ler livros norte-americanos, porque eles têm um conhecimento muito grande de tudo o que foi feito no cinema de lá. Recentemente, ganhei um livro maravilhoso, superbem escrito, sobre os filmes de terror da chamada “rua da pobreza”, em Hollywood, estrelados por figuras como o Bela Lugosi em final de carreira, e produzidos pelos estúdios B como o Monogram e o Republic. Esse livro, chamado “Poverry row horrors”, do Tom Weaver, traz coletâneas do que se publicou, análises dos filmes, reconstituições de época, contando o que aconteceu com cada uma das pessoas envolvidas naquilo – e tudo com um respeito admirável. Tem histórias maravilhosas, como a de um cara cuja especialidade era interpretar gorilas em filmes B: como ele bebia muito, um dia caiu desmaiado na calçada, e roubaram a fantasia dele. O problema é que era aquela fantasia que lhe garantia o emprego, então, como não tinha dinheiro para comprar outra, morreu na miséria. Esse tipo de fato faz parte da história de Hollywood tanto quanto a parte das vênus platinadas. A idéia é a de que possamos contar também essas histórias sobre o nosso próprio cinema, sem nenhum constrangimento ou preconceito.


(Entrevista concedida à Laura Cánepa, Cesar Zamberlan, Rogério Ferraraz, Márcia Frojuello e Raquel Marinho.)

(Edição: Laura Cánepa.)


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