sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Trechos da entrevista que Rogério Ferraraz fez com David Lynch nos Estados Unidos






RF: Em Cidade dos sonhos, para convencer sua nova amiga que elas deveriam ligar para a polícia para descobrir se houve um acidente de carro em Mulholland Drive, Betty diz para Rita: “Vamos! Será apenas como nos filmes: nós fingiremos ser outra pessoa.” Este é um comentário irônico a um determinado tipo de filme ou o cinema é, em geral, a arte do fingimento?
DL: Atuar... Bem, em primeiro lugar, o cinema é a mais importante mídia já inventada, ele é muito poderoso. E mesmo que já tenha mais de 100 anos, eu sempre tenho a impressão de que há muito mais coisa a ser descoberta ainda. E é basicamente contar estórias, um jeito de contar estórias. Mas também tem o poder de mostrar abstrações e alcançar sentimentos que não podem ser obtidos de outra forma. Mas é, de certa maneira, fingimento; atuar é fingir. O cinema é cósmico, atuar é cósmico, porque é uma espécie de símbolo de uma verdade, que está acontecendo, independente se nós percebemos ou não. Como Shakespeare disse, somos todos atores num palco. E o que isso significa, você pode pensar a respeito, certo!? Então, quando você atua, você diz adeus a sua personalidade e pega uma outra – e isso é cósmico. E o quão bom você vai atuar, depende, na minha opinião, do quão profundo você sente, de quanta realidade você consegue obter na profundeza. Em outras palavras, se você atuar a partir da profundidade, quando aquilo emerge, vai significar alguma coisa. Mas aquilo vai empreender uma nova persona e esse processo é um negócio complicado. Atores e atrizes estão pegando outra pessoa e a tornando real. Então, “será apenas como nos filmes” poderia ser uma coisa mais superficial ou uma coisa mais profunda. Os filmes são parte de nossas vidas agora, então, essa frase significa várias coisas.

RF: Você acha que é fácil perceber a separação entre ilusão e realidade?
DL: Se é fácil perceber?! Bem, não. Realmente, não. Existem muitas pessoas chamadas de con artists e elas enganam as pessoas todo o tempo. As pessoas contam mentiras e estas são aceitas como verdades. Há muita ilusão, há muita representação no mundo real. Há muitas coisas que são tomadas como reais e que não são. Há ilusões, dentro de ilusões, e de outras, e de outras... E você vai ao cinema e há mais ilusão. Mas tem algo especial naquilo: quando você senta-se, as cortinas abrem-se, as luzes apagam-se e o filme começa, você entra num mundo novo, que tem uma certa realidade naquilo. Você vai adiante e essa experiência pode ser muito poderosa, tão poderosa quanto qualquer experiência em sua chamada “vida real”. É uma coisa linda.

RF: Eu poderia dizer que, para entender sua obra, deve-se prestar atenção aos fragmentos e às abstrações?
DL: Você deve prestar atenção sim, e, para mim, quando você faz um filme, todo elemento é crítico. Então, falando sobre absurdo, é absurdo pensar que você pode levantar no meio de um filme, sair para comprar uma Coca-Cola, ir ao banheiro e voltar à sala e dizer que você viu o filme. É absurdo pensar que o filme está passando, você vai à cozinha, faz um café para você ou come um donut, volta e diz que viu o filme. Nesses dias, especialmente a televisão é feita dessa forma, em que você pode sair, ouvir a trilha, parar, depois voltar e realmente não sentir que você perdeu alguma coisa. Isso para mim é de uma grande tristeza e não é a forma. O modo ideal é como nos velhos tempos, em que você ia ao cinema e tudo era desenhado para não te distrair. Quando o filme começava, todo o seu foco estava lá. Você entrava naquele mundo e era como uma estória de detetives. Porque todos nós somos como detetives. Nós temos que ver cada coisa, pois cada coisa pode ser uma pista. Mesmo que não seja uma estória de detetives. Para tudo ser sentido apropriadamente, todos os frames devem ser vistos, todos os sons devem ser ouvidos. E quanto mais e melhor você vê e escuta, mais você pode dizer que realmente viu, escutou, experimentou aquele filme.

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