sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

HITCHCOCK - ANOS 60



Psicose
Psycho, 1960
Há duas originalidades fundamentais em Psicose:
1. A experiência adquirida com a série Alfred Hitchcock Presents é completamente assimilada a uma narrativa semelhante às de A Sombra de uma Dúvida e Pacto Sinistro: um personagem vê-se engendrado por outro ao ciclo interminável da culpabilidade. O essencial da técnica televisiva, seu aspecto primordialmente documental, faz com que a ação do filme explore minuciosamente, na duração de duas agonias, as culpas de Janet Leigh e de Anthony Perkins, as quais Hitchcock compartilha com o espectador. Uma, a de Leigh, breve e evidente; a outra, mais profunda e por isso impenetrável, de Perkins.
Através de um estilo voluntariamente econômico Hitchcock alcança a pura expressão. O céu nublado que não parece abandonar a mansão Bates, o carro rebocado do pântano são imagens inesquecíveis, que revelam os maiores talentos do cineasta: a paixão pela observação e a capacidade de simplificá-la em filme.
2. Essa capacidade fez com que Hitchcock compreendesse desde cedo as etapas da construção de um filme na sua totalidade. O apuro com que trabalhou seu Psicose fica ainda mais evidente se comparado aos muitos filmes que nele se inspiraram, como Prelúdio Para Matar e Vestida Para Matar, que na melhor das hipóteses podem ser descritos como inconcretos do ponto de vista da construção.
A segunda originalidade de Psicose deve-se à perfeita coerência de uma dramaturgia diabolicamente construída: o espectador tem a impressão de que o filme se afasta de sua narrativa principal quando na realidade Hitchcock a faz convergir desde o início ao seu centro. Esse tipo de estrutura não é incomum no cinema clássico, como se vê em Objective, Burma! e Contos da Lua Vaga, mas Psicose representaria algo semelhante a um desdobramento terminal, insuperável. A se notar, para tanto, a importância do personagem de John Gavin, o único que participa integralmente desse movimento da narrativa. Testemunha solitária das aflições que acometem Leigh na primeira parte do filme e Perkins na segunda, é ele quem faz o elo entre um e outro personagem. A elucidação final, objeto de inúmeras críticas, é justificada por uma necessidade interna do filme: é principalmente a presença de Gavin que a torna obrigatória, numa coincidência perfeita entre o seu papel e aquele que corresponde ao nosso de espectadores (numa última astúcia, Hitchcock revela sua extrema ironia: é ao personagem mais medíocre a quem somos identificados). Teria Hitchcock, por intermédio da televisão, sido capaz de unir Arthur Conan Doyle e Brecht, como quatro anos antes Fritz Lang fizera com Suplício de uma Alma?
Bruno Andrade
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Os Pássaros
The Birds, 1963
Do mesmo modo que Agora Seremos Felizes (Minnelli, 1944), O Intendente Sansho (Mizoguchi, 1954), Rastros de Ódio (Ford, 1956), ou mesmo Um Corpo que Cai, do próprio Hitchcock, Os Pássaros é um filme perfeito. E o que falar de um filme perfeito senão o mais óbvio e desavergonhado lugar-comum? Como encarar obra de tal magnitude em um texto curto, que serve para compor uma filmografia comentada do diretor? Corro aqui o risco de ser exatamente o oposto do filme: desmedido, deslumbrado, bobo-alegre, exageradamente superlativo. Mas talvez seja uma maneira, entre outras possíveis, de se curvar a essa autêntica aula de cinema, de admitir minha incapacidade de lidar com algo que de tão sublime e racionalmente belo torna-se intraduzível em palavras.
Posso começar pelo uso do som, brilhante em todos os aspectos, com o experiente Bernard Hermann supervisionando os efeitos eletrônicos que simulam barulhos de pássaros. Ou da relação estabelecida entre os personagens e o espectador desde que Melanie Daniels (Tippi Hedren) retribui um assobio com um sorriso em direção à calçada (no que Simsolo identificou como o lugar da plateia no cinema) para depois desviar os olhos para cima (a luz do projetor?) onde avistou uma estranha reunião de pássaros. Daí em diante, tudo estará disposto segundo regras que desconhecemos. E é por isso que os eventos estranhos não encontram explicação na narrativa.
Prossegue a aula de Hitchcock nas angulações de câmera (o ponto de vista de uma ave – ou de Deus? – é desses planos históricos do cinema), na decupagem radical (Melanie Daniels se assustando, em fragmentos, com o rastro de fogo no posto de gasolina), nos detalhes (os cabelos das mulheres, presos ou armados em forma de ninhos de pássaros) e, sobretudo, nos olhares entre as mulheres, enquanto ao homem cabe defender a família dos ataques vindos de cima (e da natureza).
Truffaut tinha toda a razão quando disse que o cinema foi feito para que um filme como Os Pássaros existisse.
Sérgio Alpendre
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Marnie, Confissões de uma Ladra
Marnie, 1964
Marnie ocupa aquele limbo da obra de Hitchcock situado depois do fim de sua fase mais brilhante (1958-1963) e antes de seus dois magníficos últimos filmes, Frenesi (1972) e Trama Macabra (1976). O período 1964-70 é complicado não só para Hitchcock, mas para toda a indústria hollywoodiana, que se via numa crise ao mesmo tempo econômica, estética e moral. A sociedade passava por mudanças, e o cinema, é claro, ia junto.
Dos três filmes realizados por Hitchcock naquele período, Marnie é o que mais divide opiniões. Se Topázio é unanimemente considerado menor (quiçá ruim) e Cortina Rasgada é sempre visto como um bom filme (embora não brilhante), Marnie possui adeptos fervorosos e detratores idem. A disparidade das reações se deve, em grande parte, ao fato de que o filme realmente fica indeciso entre uma estética do passado e uma textura do presente, tentando extrair novos efeitos de velhos materiais ou vice-versa. Alguns procedimentos (como a imensa tela pintada que fica de pano de fundo nas cenas ambientadas na região portuária em que a mãe de Marnie mora) não contam mais com a cumplicidade do público, agora acostumado a um novo parâmetro de realismo, mas Hitchcock lança mão desses procedimentos mesmo assim. Algumas formas estão defasadas, mas Hitchcock insiste nelas. O resultado é uma estranheza que, com o passar do tempo, apenas aumentou a potência do filme.
Visto hoje, Marnie revela uma força indiscutível, mesmo nos seus momentos mais desconjuntados. Hitchcock revisita as grandes personagens femininas de sua carreira, retomando elementos, sobretudo, de Rebecca, Interlúdio e Sob o Signo de Capricórnio. Há até espaço para aquilo que alguns chamam o “puro Hitchcock”, como na antológica cena em que, no meio de uma festa, a câmera atravessa o salão para buscar o personagem que poderá desmascarar Marnie na frente de seu marido, instalando um clima de desconforto e suspense.
Marnie é um dos filmes em que Hitchcock melhor representa a oposição entre a tranquilidade aparente da vida cotidiana e a desordem interna que as ações exteriores escondem e recalcam. Toda a narrativa caminha no sentido de desvelar o significado oculto, a motivação secreta dos furtos de Marnie. A partir desse jogo psicanalítico que pode parecer vulgar e datado, Hitchcock desencadeia, na verdade, uma crítica violenta à sociedade de consumo, da qual a mulher aparece como a grande vítima.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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Cortina Rasgada
Torn Curtain, 1966
Durante a viagem para uma convenção em Copenhagen, o físico e cientista de foguetes americano Michael Armstrong (Paul Newman), resolve desertar para a Alemanha Oriental com o intuito de conseguir fundos para seus projetos. Sarah Sherman (Julie Andrews), sua noiva e assistente pessoal, decide acompanhar o professor Armstrong (contra a vontade deste) na jornada, temendo nunca mais revê-lo. A verdadeira intenção de Armstrong logo será revelada: ganhar a confiança do brilhante cientista Gustav Lindt (Ludwig Donath) e roubar as complexas equações matemáticas referentes ao sistema antimísseis, que Lindt está desenvolvendo em conjunto com a União Soviética. Completada a missão, Armstrong terá que contar com a ajuda de uma organização secreta para poder escapar em segurança, ao lado de sua noiva, de Berlim Oriental.
Neste seu quinquagésimo longa, Alfred Hitchcock retorna ao mundo da espionagem, agora dentro do cenário da Guerra Fria. Graças a um roteiro repleto de problemas – e que causou grandes atritos entre o diretor e o astro Paul Newman – e um claro desinteresse por parte de Hitchcock, Cortina Rasgada, na maior parte do tempo, sequer almeja atingir o mesmo patamar das produções de primeiríssima linha do cineasta. Em meio a situações bastante forçadas (como a ineficiência da polícia e do serviço secreto comunista alemão) e de personagens por demais caricatos dentro do contexto (à primeira vista) sério do filme, o grande momento de Cortina Rasgada reside na sequência em que Armstrong e uma agente aliada precisam rapidamente liquidar um homem sem fazer barulho. O humor macabro de Hitchcock, então, reserva ao vilão alemão o mesmo destino de milhões de judeus inocentes: a limpa e eficaz morte por gás.
Leandro Cesar Caraça
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Topázio
Topaz, 1969
Topázio termina com uma manchete de jornal “Kruschev concorda em retirar os mísseis de Cuba: fim da Crise dos Mísseis”. Antes dessa imagem midiática derradeira, o filme inteiro se dedicou a mostrar um certo nível de funcionamento da política que não está estampado nos jornais. Topázio narra, de forma sóbria e analítica, as atividades e relações de agentes envolvidos na Guerra Fria.
Apesar do filme exalar (como em toda obra de Hitchcock) um grande prazer na demonstração de malícia e ironia que costumeiramente envolve todas as pequenas ações (por vezes as mais banais) de seus personagens, ao contrário dos filmes de James Bond sobre a mesma temática, Topázio não encerra-os em categorias estanques como “mocinhos” e “vilões”. O estatuto de cada um dos vários seres envolvidos nas intrigas varia ao longo do filme, dificultando assim nossa identificação intelectual definitiva com algum deles. O ser humano, enfim, é altamente corruptível, e o mundo é posto no filme como um tabuleiro de xadrez labiríntico já fatalmente corrompido.
Mais do que conferir novas dimensões a um objeto que tradicionalmente nos é apresentado como caricatura (A Guerra Fria), o grande feito do realizador foi saber conferir à uma trama de espionagem clássica um toque de sensibilidade humana. Por esse viés é possível se identificar emocionalmente com uma gama maior dos personagens, pois independentemente de ideologia e dinheiro, alguns deles são dotados de traços sentimentais marcantes, apesar das atuações contidas e da sutileza que embalam todo o filme. As paixões existentes entre os homens e mulheres é o que há de mais importante, assim como o ódio, o rancor e a vingança.
Fernando Watanabe

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