sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

HITCHCOCK - ANOS 40




Rebecca, a Mulher Inesquecível
Rebecca, 1941

A primeira obra americana de Hitchcock ganhou o Oscar de Melhor Filme daquele ano, fato notável que pode ser considerado um prenúncio da nova fase que se configurava a partir daí. Foi David O. Selznick quem levou Hitchcock para os Estados Unidos e produziu Rebecca, a Mulher Inesquecível. Àquela altura, Selznick já era um respeitado produtor independente, com passagem por grandes estúdios e que, no ano anterior, havia produzido … E o Vento Levou. Hitchcock vinha de uma prolífica carreira na Inglaterra que incluía alguns bons filmes realizados, mas nada que chegasse perto do que estava por vir. Rebecca foi a primeira dessas reviravoltas.
O suspense contido no filme tem como mote as fraquezas de ordem psicológica de seus personagens principais, tema que retornaria em Sob o Signo de CapricórnioPsicose alguns anos depois. Em Rebecca, a questão que inevitavelmente se coloca é: seria mesmo Rebecca, a personagem morta, a vilã? Ou seria antes a insegurança patológica da personagem de Joan Fontaine. Ou ainda a apatia de Laurence Olivier perante os caprichos da primeira mulher, do amor que lhe é devotado pela segunda e ainda das demonstrações de crueldade de sua governanta? Afinal, os fortes continuarão a subjugar os fracos até o momento em que esses não puderem reagir.
Com Rebecca, Hitchcock dá um passo importante em direção ao panteão dos mestres do terror psicológico e o faz em grande estilo, já apontando e delineando as importantes premissas que seriam essenciais para o desenvolvimento do gênero.
Liciane Mamede
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Correspondente Estrangeiro
Foreign Correspondent, 1940

O astro dos faroestes Joel McCrea muda um pouco de ares, para estrelar este segundo longa-metragem feito por Alfred Hitchcock em terras estadounidenses, lançado no mesmo ano do oscarizado Rebecca – A Mulher Inesquecível. McCrea interpreta John Jones, um repórter convocado para atuar como correspondente estrangeiro na Europa, onde a guerra está prestes a começar graças ao constante aumento de poder de Hitler e da Alemanha nazista. Usando o estranho pseudônimo de Huntley Haverstock, o confiante repórter vai cobrir uma recepção realizada por Stephen Fisher (Herbert Marshall), líder do Partido Universal da Paz em homenagem ao velho diplomata Van Meer (Albert Bassermann).
Nessa mesma ocasião, Haverstock começa a flertar com a filha de Fisher, Carol (Laraine Day), sem se preocupar com a súbita partida de Van Meer antes mesmo de discursar. O mesmo diplomata estará mais tarde numa conferência importante em Amsterdam, apenas para ser morto à queima-roupa em frente de Haverstock. O americano persegue o assassino com a ajuda de Carol e do repórter inglês Scott ffolliott (George Sanders), que abdicou da letra maiúscula de seu sobrenome em honra a um antepassado. Chegando até um moinho suspeito, Haverstock descobre o verdadeiro Van Meer está sendo mantido prisioneiro e que um sósia havia sido assassinado em seu lugar. No local, a polícia não encontra nenhum vestígio que possa confirmar a história do americano. Desacreditado, Haverstock começa a investigar por conta própria o paradeiro de Van Meer, que conhece segredos que podem ajudar a deflagrar a guerra em solo europeu.
Correspondente Estrangeiro é um típico filme da fase inglesa de Hitchcock, agora produzido em Hollywood. Pouco lembrado pelos críticos, coloca-se facilmente entre as melhores obras do mestre do suspense na década de 1940. Marca ainda a união dos talentos de Alfred Hitchcock e de William Cameron Menzies, lendário diretor de arte e designer de produção, aqui creditado como produtor de efeitos especiais e responsável pelo magnífico cenário do interior do moinho e da sequência da queda do avião em pleno alto mar.
Leandro Cesar Caraça
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Um Casal do Barulho
Mr. & Mrs. Smith, 1941

Em 1941, ao menos nos EUA, Alfred Hitchcock ainda não era uma grife, um cineasta imediatamente associado ao gênero que o consagrou. Portanto, não seria de se estranhar o convite vindo de Carole Lombard, a melhor atriz cômica da época, para dirigi-la em uma comédia romântica, uma vez que o elemento humorístico se fazia vislumbrar com frequência na fase inglesa. Visto hoje, Um Casal do Barulho parece ter todos os ingredientes necessários a uma screwball comedy: boa interação entre o casal de protagonistas (além de Lombard, Robert Montgomery, outro ótimo ator hoje pouco lembrado), um roteiro leve e movimentado, direção ágil.

No entanto, algumas coisas em cinema são inexplicáveis, e o que falta ao filme é aquela magia que os grandes mestres imprimem e que gera momentos inesquecíveis. Em parte podemos atribuir esse fato à carência de um terceiro elemento consistente entre os personagens, uma vez que o futuro noivo vivido por Gene Raymond é desprovido de qualquer sombra de carisma, além do fato de nunca nos convencermos que os protagonistas em algum momento deixaram de se amar, esses estariam vivenciando mais um capricho em sua relação. Não é transmitido ao publico o risco real de que eles não poderão reconciliar-se, elemento fundamental para as chamadas comédias de “recasamento”.
Ainda assim divertido, Um Casal do Barulho permanece como uma espécie de E.T. na obra de Hitchcock, que preferiu retornar a sua zona de segurança, deixando o terreno da comédia romântica para seus próprios mestres, como Howard Hawks ou Leo McCarey.

Gilberto Silva Jr.


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Suspeita
Suspicion, 1941

Lina McLaidLaw (Joan Fontaine) é uma solteirona tímida, vinda de uma boa família, que se apaixona pelo sedutor Johnny Aysgarth (Cary Grant). A atração entre os dois acaba em casamento, mas que o inicialmente parecia um conto de fadas, logo se transforma em um pesadelo. Johnny se revela um malandro e pobretão, com queda para apostas em corridas de cavalo e nenhuma disposição para arrumar um emprego. O comportamento cada vez mais imprevisível do marido faz com que Lina passe a suspeitar das verdadeiras intenções de Johnny. Estaria ele armando um plano para matá-la (e herdar o dinheiro de seu pai) ou seria apenas a sua imaginação? “Atores ingleses, ambientação inglesa, romance inglês”.
Era dessa forma que Alfred Hitchcock descrevia Suspeita, o seu quarto filme realizado nos EUA e novamente estrelado por Joan Fontaine depois do sucesso de Rebecca – A Mulher Inesquecível. Como na parceria anterior, a atriz interpreta outra personagem atormentada por uma dúvida, beirando a paranoia. Alguns filmes de Hitchcock desse período se apegavam fortemente à psicanálise, quando esta ainda era vista como uma ciência exata – e por isso, estas obras acabaram envelhecendo mais do que outras. Além disso, o grande problema de Suspeita é a relação forçada do casal: mesmo com Johnny apresentando todos os sintomas de um indivíduo bipolar, Lina não ser parece capaz de abandoná-lo. Pior do que isso, quando ela tem a certeza plena de que o esposo pretende envenená-la, aceita o seu destino em nome do amor que sente por ele.
A produção foi complicada (Hitchcock adoeceu durante as filmagens) e teve seu roteiro reescrito várias vezes, o que acabou fazendo com que o desfecho pretendido pelo diretor fosse deixado de lado por um final feliz e totalmente inverossímil.
Leandro Cesar Caraça
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Sabotador
Saboteur, 1942

Sabotador é o quinto filme realizado por Hitchcock nos Estados Unidos, o primeiro pelos estúdios da Universal. No entanto, é em uma de suas mais bem sucedidas produções inglesas, Os 39 Degraus, que podemos encontrar sua origem: uma trama de perseguição na qual, após uma falsa acusação, o herói deve provar-se inocente e, ainda, ao longo do caminho, conquistar sua desconfiada parceira.
No limite, sabemos este ser o mote não apenas dos dois títulos referidos, mas de boa parte da filmografia do cineasta. Mas se aqui ligamos os dois filmes, é menos pelo fato da ação em seus roteiros serem acionadas por um equívoco, de que pela estrutura com a qual o cineasta optou por contá-las, ou seja, na forma de um “filme itinerário”.
E aí concordamos em colocar Sabotador como a segunda parte de uma trilogia involuntária, concluída em 1959, com Intriga internacional. Também não vemos razão para polemizar: dos três, Sabotador é, de fato, o único irregular. Quando lembrado, é normalmente por sua conclusão: a “seqüência na estátua da liberdade”.
Sem dúvida um momento memorável, mas longe de ser o único (ou o melhor): por entre cegos sábios (esta sim, sequência de antologia), mulheres barbadas, navios afundados e planos malignos em noites de gala, mais um herói hitchcockiano sofre as amarguras de um mundo movido pelas aparências, buscando retomar uma vida justa, iluminando outro esquema obscuro.
Mas para um filme como Sabotador, nenhuma dessas redundantes investidas parece importar; afinal, em qual outro filme do diretor encontraremos, a certa altura, montanhas ao fundo em uma manhã ensolarada, o herói sendo laçado após uma perseguição a cavalo? Dura poucos segundos, é verdade, mas como tantas outras coisas, está lá, descompromissadamente, em Sabotador.
Bruno Cursini
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A Sombra de Uma Dúvida
Shadow of a Doubt, 1943

No início do filme, vemos imagens da paisagem de Nova York sendo aos poucos substituídas por imagens de um bairro, depois de um prédio, depois de uma janela e, finalmente, de tio Charlie deitado, com dinheiro espalhado pelo chão. Na apresentação da sobrinha Charlie, a mesma coisa. A câmera mostra Santa Rosa (cidade da Califórnia) do alto, aproximando-se aos poucos do bairro e do quarto onde ela está deitada, em posição semelhante à do tio. Está criada a duplicidade, a sintonia fatal entre esses dois personagens. Como que por encanto, nenhum deles será o mesmo após essa simetria. A cada tentativa de assassinato de seu duplo, a cada enfrentamento entre esses dois personagens que não podem ocupar o mesmo mundo (o mesmo filme), A Sombra de Uma Dúvida revela-se uma obra implacavelmente construída.
A imagem inicial, durante os créditos, já traduz o ensaio sobre o duplo que Hitchcock promove: diversos casais dançam a valsa A Viúva Alegre (parte de uma opereta composta por Franz Lehár, compositor que, para sua infelicidade, caiu nas graças de Hitler). O tio chega em Santa Rosa em um trem que solta uma fumaça preta e enche de sombras a estação. Comentário visual perfeito: o mal está chegando.
Mais tarde, já na segunda metade do filme, quando Teresa Wright descobre que seu tio é o procurado assassino de viúvas, Hitchcock coloca a mesma música da abertura, enquanto a câmera faz uma panorâmica pela notícia reveladora do jornal.
É o longa de que o próprio Hitchcock mais gostava, e podemos entender por quê. Dos cinco primeiros feitos nos EUA, Sabotador é o primeiro em que o ritmo está afiado, com Hitchcock controlando perfeitamente o tempo de cada cena, o momento do corte. Com A Sombra de uma Dúvida, o longa seguinte, pôde realizar algo mais pessoal, em que a marca do gênio é perceptível em todas as sequências. Além disso, é o primeiro filme em que mostra uma típica cidade pequena dos EUA. Sentia que havia, finalmente, conquistado a América.
Sérgio Alpendre
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Um Barco e Nove Destinos
Lifeboat, 1944
Um Barco e Nove Destinos é a fábula de Alfred Hitchcock para a Segunda Guerra Mundial, então em andamento: após terem seu navio afundado por um submarino alemão, um grupo de civis americanos e ingleses encontra-se em um pequeno bote salva-vidas. Entre eles, Willie, o capitão da embarcação inimiga que coordenou o combate.
Baseado em uma história originalmente escrita por John Steinbeck, temos aqui um complexo thriller psicológico, no qual as personagens devem – cada uma, muito claramente -, representar uma classe, um país, uma função. Assim, temos a mãe com o filho inocente morto pela guerra, o milionário capitalista, o comunista, a jornalista e, claro, o soldado nazista – sem dúvida, entre os maiores vilões do diretor.
O primeiro entre os “filmes desafio” de Hitchcock (aqueles passados em uma locação restrita, como Festim Diabólico e Disque M para Matar), causou controvérsia quando de seu lançamento, pois ao mesmo tempo em que podia ser lido como propaganda de guerra (afinal, a maldade pura e irracional do inimigo nunca é questionada), este conto moral também se mostrava dúbio, pois expunha às claras a falta absoluta de rumo das democracias em frente às metas nazistas. Nas palavras do próprio Hitchcock, em sua famosa entrevista a François Truffaut: “[...] quisemos mostrar que naquele momento havia no mundo duas forças em presença, as democracias e o nazismo. Ora, as democracias estavam em absoluta desordem, ao passo que todos os alemães sabiam aonde queriam chegar”.
Com a alegoria amarrada, faltava algo que fizesse dramática e cinematograficamente a história se resolver e, isso, o cineasta fez com a crescente importância do vilão no enredo: no momento em que Willie, sozinho, com a força de toda a natureza, conduz, remando, as vidas restantes no bote – absolutamente pleno da situação -, cantarolando, sabemos estarmos sendo guiados por um mestre onipotente, Sir Alfred Hitchcock.
Bruno Cursini
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Quando Fala o Coração
Spellbound, 1945

É bom conhecido o gosto de Hitchcock por elementos psicanalíticos na elaboração de seus personagens, e Quando Fala o Coração é a primeira incursão do diretor neste assunto. Mas diferentemente dos filmes posteriores, nos quais esses elementos infundem um aprofundamento psicológico da narrativa, aqui o inconsciente serve de base para uma eficiente intriga policial – ele é algo a ser desvendado, uma porta a ser aberta (como diz um dos personagens a respeito dos sonhos, numa metáfora ainda mais clara: “um quebra-cabeças a ser montado”). Ingrid Bergman é uma psicanalista cuja frieza profissional se confunde com a frigidez de sua vida pessoal. Ela tenta ajudar Gegory Peck a sair de um quadro de completa amnésia – enquanto ela própria, apaixonada, começa a enxergar as coisas por um olhar menos clínico. Dois polos perfeitos de um roteiro onde o inquérito policial se cola à investigação médica, numa trama de suspense redonda e bem regulada. É preciso que os dois “desvendem” o inconsciente dele – quebrando sua amnésia e seu complexo de culpa – o mais rápido possível, antes que ele seja preso acusado de um assassinato.
Hitchcock nunca foi exatamente um grande autor de tramas redondas, e parece ser justamente essa “eficiência” do roteiro que põe o filme atrás de outras obras mais célebres do diretor (os esboços pretensiosos e bobos assinados por Salvador Dalí não são páreos para Marnie, onde apenas o piscar de uma luz vermelha é necessário para que Hitchcock instaure um mistério eterno). O que não quer dizer que não haja bons momentos: a trama guarda suas surpresas (como grande diretor de suspense, Hithcock sabe segurar como poucos viradas de roteiro que na mão de outros soariam estapafúrdias), e nesta investigação que se volta para o interior dos personagens sobram alguns bons momentos dos atores: alguns bonitos closes de Bergman e os momentos de fragilidade de Peck, com sua fobia diante de sinais que para ele são como uma kryptonita.
Calac Nogueira
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Interlúdio
Notorious, 1946

A faceta de cineasta experimental foi sempre presente ao longo da carreira de Hitchcock. Já estabelecido em Hollywood, a partir de meados da década de 1940, dedicou-se a realizar trabalho onde explorava as limitações espaciais (Um Barco e Nove Destinos), o plano sequência (Festim Diabólico), o surrealismo e a psicanálise (Quando Fala o Coração). Dessa forma, é até certo ponto surpreendente que seu melhor filme na década seja o mais contido. Interlúdio é um dos momentos culminantes da carreira de Hitch, obra-prima incontestável, mesmo que não tenha sido valorizado de imediato. Sua mise-en-scène prima quase sempre por uma objetividade contrastante com o exibicionismo narrativo que impregnava Quando Fala o Coração, seu antecessor imediato.
Não que aqui o mestre tenha esquecido os planos elaborados, como podem comprovar o memorável beijo entre Cary Grant e Ingrid Bergman ou o plano que parte do conjunto do salão de baile e se aproxima da chave nas mãos de Ingrid. Só que aqui eles funcionam não como demonstrações isoladas de virtuosismo, mas operam sempre a favor do conjunto naquele que talvez seja o mais redondo e coeso dos filmes do mestre, escrito por um dos melhores roteiristas da época: Ben Hecht.
A narrativa é sempre direta, desde a apresentação dos personagens ainda nos EUA, seguindo-se ao andamento que equaciona à perfeição os elementos romance-espionagem-suspense, num Rio de Janeiro surpreendentemente em nada caricato ou folclórico. A dupla de astros Grant-Bergman se entrega com a precisão de um relógio suíço a seus personagens não muito simpáticos, sentimento que acaba reservado ao patético vilão interpretado por um Claude Rains em estado de graça. É pelo destino dos três que nosso coração bate cada vez mais acelerado, mesmo a cada nova revisão da mágica descida da escadaria, que tanto pode parecer durar um segundo como uma eternidade, num daqueles momentos de exploração dos limites da temporalidade dos quais só Hitchcock era capaz.
Gilberto Silva Jr.
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Agonia de Amor
The Paradine Case, 1947

Dois anos após o irregular resultado obtido em Quando Fala o Coração, Alfred Hitchcock e o astro Gregory Peck uniram forças novamente. Em entrevista a François Truffaut, o diretor inglês creditou o fracasso do filme à escolha do elenco. O americano Peck não seria gentleman suficiente para interpretar um advogado britânico, entre outras reclamações. A verdade é que o controle excessivo do produtor (e aqui também roteirista) David O. Selznick prejudicou o resultado final. Ele obrigou Hitchcock a refazer cenas e a cortar alguns minutos da duração, e, por causa disso, Agonia de Amor, a terceira parceria entre Selznick e o cineasta que ele trouxe para os EUA, também acabou sendo a derradeira.
Na trama, Anthony Keane (Gregory Peck) é um brilhante advogado escolhido para defender Maddalena Paradine (a italiana Alida Valli), acusada de matar seu marido cego e milionário. Keane se apaixona à primeira vista por sua cliente e, uma vez acreditando na inocência dela, transforma o caso numa busca pessoal pelo verdadeiro assassino. Seu alvo é o cavalariço Andre Latour (Louis Jourdan), um fiel empregado do falecido Sr. Paradine e que sempre manteve com a patroa uma estranha relação.
O ponto fraco do roteiro é o personagem de Keane, uma vez que o público precisa comprar a ideia de que o advogado se apaixona por Maddalena ao vê-la uma única vez. Com isso, ele não apenas irá comprometer o caso, como ainda colocará em risco o seu casamento com a esposa Gay (Ann Todd). Se o próprio Hitchcock reconhece que não deu muita importância ao episódio do assassinato em si (que afinal nunca é mostrado), será no tribunal que o filme alcançará alguns de seus principais momentos. Os outros serão reservados para Charles Laughton como o juiz Lorde Thomas Horfield, personagem lascivo e que se mostrará implacável em relação ao veredito reservado a Sra. Paradine.
Leandro Cesar Caraça
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Festim Diabólico
Rope, 1948

Brandos e Phillip formam a dupla de assassinos. O primeiro é frio e calculista e nutre um enorme prazer pelo ato (matemático) de planejar e executar um assassinato, se considerando ainda um gênio do crime. O segundo é seu assistente inseguro e com dúvidas morais em relação ao ato que eles cometem logo no primeiro minuto de filme. Já Rupert é uma espécie de “detetive”, ou seja, o único convidado da festa pós-crime que desconfia de que algo estranho aconteceu antes da celebração. Esse é o triângulo que serve de base dramática e estrutural ao filme.
O uso do termo “triângulo”, uma figura geométrica, não é à toa. Hitchcock teceu seu filme de modo matemático, meticuloso e racional. Assim como Brandon o faz com seu crime. Brandon, portanto, é o “diretor”, aquele que encena. Tanto filme quanto o crime podem ser considerados obras de arte ou objetos-eventos vulgares ao extremo, mas independentemente da maneira mais ou menos romântica de se ver as coisas, ambos funcionam com base no mecanismo de “esconder-revelar”, sendo a revelação sempre uma simulação de descoberta da verdade, e não necessariamente a verdade em si.
A opção por filmar Festim Diabólico em 10 planos-sequências, com apenas 8 “cortes mascarados” no filme inteiro, foi uma grande novidade na obra de Hitckcock. Tal opção formal diminui os efeitos hiper-significantes que uma montagem tradicional envolvendo vários planos tende a criar. Com o fluxo contínuo das imagens, as pistas têm de ser procuradas na própria imagem (raciocínio sensorial), e não no “entre-imagens” (raciocínio intelectual). Logo, Festim Diabólico nos permite desfrutar do prazer de ver melhor não a verdade por trás das aparências, mas a simulação das aparências elas mesmas.
Fernando Watanabe
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 Sob o Signo de Capricórnio
Under Capricorn, 1949

Quando conheci Sob o Signo de Capricórnio, o filme tinha a fama de fraco, um dos menores do mestre. Não se entendia o que Hitchcock pretendia indo à Austrália do século XIX. Mesmo assim, pensei ser um dos melhores trabalhos do diretor, pelo menos nos anos 1940.
Uma coisa é certa: é um dos maiores exercícios em plano-sequência de que se tem notícia. Bazin escreveu que Festim Diabólico poderia ter sido filmado com a decupagem clássica, mantendo intacta sua grandeza. É possível. Mas a opção de Hitchcock é plenamente justificável: acompanhar o fluxo ininterrupto de ação, durante uma recepção para convidados seletos.
Em Sob o Signo de Capricórnio a opção parece mais polêmica, mas penso ser igualmente justificável: Hitchcock queria privilegiar uma jornada de descoberta, não só do novo mundo, como dos personagens que ali estão, já que todos se revelam outros durante o filme. Joseph Cotten está excelente como o falso culpado exilado na Austrália (na época, o país era uma espécie de presídio continental para onde os britânicos mandavam seus indesejados). E Ingrid Bergman, em seu terceiro e último trabalho com o diretor, arrasa como a desequilibrada esposa de Cotten.
As filmagens foram conturbadas. Bergman relata em sua autobiografia, reproduzindo a carta para uma amiga: “Outro dia eu explodi. A câmera devia seguir-me durante onze minutos sem parar, o que significava que tínhamos de ensaiar um dia inteiro com paredes ou os móveis desabando ou sendo afastados à medida que a câmera passava, e é claro que isso não podia ser feito depressa. (…) Como detesto essa nova técnica dele”. Um mês depois, em carta para a mesma amiga, ela já pensa de outro modo: “Algumas dessas malditas cenas longas funcionam muito bem. Numa tomada de nove minutos e meio, eu falava o tempo todo; a câmera nunca me deixava e funcionou muito bem. Devo reconhecer que é muito melhor do que ser cortada e montada…”
É uma ótima defesa desse filme ainda subestimado.
Sérgio Alpendre

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