sábado, 17 de dezembro de 2011

LENINE - Homem de bem

Com a calma de um monge, Lenine vive baseado no equilíbrio a sua volta. Agora, ele se aventura pela música concreta, unindo suas três paixões: o som, a família e as orquídeas 
 
 
Homem de bem
 
por Bruna Veloso

No Parque Lage, Rio de Janeiro, Lenine desce do carro com ar etéreo: olhando para todos os lados do local, como se ainda não o conhecesse, sai caminhando sem se preocupar com seus acompanhantes. Deveríamos ir para a direção oposta, mas o homem magro e alto (mais do que quando visto no palco), de 52 anos, nem se perturba – segue no caminho contrário, sem escutar quando tento, timidamente, chamá-lo de volta. Ali, em uma tarde de julho, no meio do verde sem podas simétricas do parque, Lenine está em casa. A natureza, que tanto se faz presente em suas letras, fascina o músico – profissão: compositor, como define – a ponto de ele deixar disperso o pensamento. Mas o quê de hippie e a suposta desatenção são características que, depois de poucos minutos de conversa, dissipam-se na clareza e coesão com que Lenine coloca suas opiniões – sempre com convicção, mesmo que seja, paradoxalmente, para expressar algo sobre o que ainda não tem total certeza.

Apesar de pernambucano, Lenine abraçou há mais de 30 anos o Rio de Janeiro como lar. “Acho que viver no Rio realmente me formatou como cantor, como artista, como intérprete”, acredita. “É até engraçado, é tão evidente essa coisa nordestina que eu tenho. Mas, em todos os sentidos, a profissionalização do meu trabalho se deu no Rio. Sou um cidadão carioca realmente convicto.”

É na cidade que Lenine trabalhou em seu próximo disco, Chão, previsto para este mês, um dos assuntos sobre os quais falava, antes de o álbum ficar pronto, com resolução “cautelosa”. “A gente não para de criar até a industrialização. Enquanto não finalizar, não temos certeza, o que é muito bom. Essa incerteza é um benefício pra fazer o melhor”, ele acredita. Embora Lenine goste de frisar a constante busca por mudanças entre um trabalho e outro, este álbum deve causar uma surpresa maior a quem o conhece mais como um prolífico criador de trilhas sonoras de novelas (“Aquilo Que Dá no Coração”, por exemplo, serviu de abertura para Passione). Em Chão, não há bateria; a gravação e a produção são assinadas por Lenine ao lado do guitarrista JR Tostoi, parceiro musical de longa data, mas com um terceiro e novo elemento, o filho Bruno, 22 anos; e uma das inspirações para o álbum é a música concreta, que busca criar melodia a partir de sons cotidianos, não instrumentais. A faixa-título, por exemplo, tem o barulho de passos que percorre toda a estrutura da música; “Se Não For Amor Eu Cegue” é introduzida por batimentos de um coração marcando o ritmo. “Estou buscando caminhos diferentes, métodos diferentes. Talvez até a maneira de fazer tenha vindo em decorrência dessa procura de estímulo. Afinal de contas, eu só faço isso, há muitos anos”, divaga Lenine, explanando o porquê de um projeto tão distinto – e, também por isso, ousado – em sua carreira. “Eu acho que quando fica tudo muito fácil é hora de começar a desconfiar. Quando você faz com facilidade, quando fica muito cômodo...”


Opa, estamos aqui, já pode descer”, brinca Lenine ao ouvir o som de um helicóptero passando próximo ao estúdio de Tostoi, no Jardim Botânico. O discurso sempre bem colocado e o português correto escondem, de início, essa que depois se revela uma faceta importante do músico: a cômica. Tanto que ele já chegou a trabalhar como roteirista de Os Trapalhões. “Eu não fui [roteirista]”, ele corrige, “eu estive. Na época, o José Lavigne, que estava dirigindo o programa, queria mudar e chamou um bocado de gente que nunca tinha escrito para a TV, mas que ele intuía que tinha essa verve. Convidou a mim, Bráulio Tavares, Juca Filho. Não é uma coisa de me esquecer, não. 

É que foi um momento passageiro”, reluta o músico ao relembrar o assunto (anos depois, ele chegou a ser convidado para trabalhar em A Grande Família, mas recusou). Sempre calmo, Lenine só parece perder a paciência quando Tostoi ameaça me mostrar faixas do Xarada, projeto que teve com Lula Queiroga, e cujas músicas chegaram a aparecer em Os Trapalhões (infelizmente para ele, ainda há registros do trabalho no YouTube).

Foi com o dinheiro ganho como roteirista que Lenine gravou Olho de Peixe (1993), ao lado do percussionista Marcos Suzano. O trabalho o posicionou como músico, e abriu as portas para shows em outros países. Embora muita gente o conheça a partir daí, esse é o segundo disco dele – o primeiro, Baque Solto, com Queiroga (que ele descreve, rindo, como “disco espinha na bunda, só você sabe que tem”) saiu dez anos antes.

Na década em que passou sem gravar, Lenine intensificou o trabalho como compositor, graças à ajuda da esposa, Anna, 50, com quem está há mais de 30 anos. “Eu passei algum tempo sendo cafetão da minha mulher”, ele brinca, gargalhando, com Anna a seu lado. “No início de nossas vidas juntos, eu só pude me dedicar à composição porque tinha um sustento. Ela já era uma produtora [de TV] bem-sucedida, tinha a carga de trabalho dela, e, portanto, eu ficava meio em casa, cuidando das crianças. 

Mas me dava também essa garantia de poder investir na composição.” É difícil não crer na possibilidade de relacionamentos duradouros – mesmo quando, só em São Paulo, a propósito, a taxa de divórcios tenha aumentado em 149%, em julho de 2010 – ao ouvir Lenine se derretendo ao recordar como conheceu a esposa (desta vez, sem ela por perto), em festas no Baixo Gávea, na década de 80. Assim como quando ele vagueia sobre o amor. “O amor é a somatória de sentimentos que você tem. Mas eu acho que, pra começar alguma coisa e pra essa coisa realmente ter concretude, tem que ter um trato entre as partes. E isso tem que ser muito claro, o que se quer.

Quando existe um objetivo bacana e real e que você tem a certeza de que está construindo junto com cumplicidade, com delicadeza, com admiração, com tesão pra caralho, você vai preservando.”

Pai de três filhos – João, 31 anos, vocalista da banda Casuarina, Bruno e Bernardo, 17 –, Lenine cita a família como sua primeira e absoluta paixão na vida, antes da música. Ele nasceu e cresceu em Recife, depois que o pai, socialista, fez a família se mudar de Campina Grande, Paraíba, para a capital pernambucana. A dicotomia em casa – o pai, José Geraldo, 89, abandonou o seminário para ficar com a católica dona Daisy, 86 – também ajudou a formar a personalidade do jovem Lenine. 

Ele diz não gostar de se repetir em entrevistas, mas não pode deixar de contar uma história recorrente. “Como papai nunca viu a sociedade naquele sonho que ele imaginava, igualitário, ele tinha plenário em casa. No jantar, todas as questões eram jogadas na mesa”, relembra. “Ele instigou a gente a conversar sobre as coisas. Ele chegava ao cúmulo de... [Se você perguntasse] ‘Pai, como é Drummond?’, ele respondia: ‘Drummond é bacana, mas você conhece João Cabral [de Melo Neto]? Pra gente conversar sobre Drummond, você tem que ler João Cabral e Augusto dos Anjos’. Sempre era uma maneira de fazer que a gente fosse mais curioso sobre as coisas.”

O sonho socialista do pai interferiu até no nome do filho (no registro, Oswaldo Lenine Macedo Pimentel), uma homenagem ao revolucionário russo Lênin. Posteriormente, Lenine levou Seu José a Moscou, para vê-lo chorar ao se deparar com uma loja de fast-food diante da Praça Vermelha. “Ele tinha um conceito simplista, mas muito coerente. Achava que a diferença entre o cristão e o socialista é só a morte. 

O cristão acredita que depois que morrer vai para o paraíso, ele trabalha na vida para chegar ao paraíso, e o socialista quer o paraíso aqui, agora, neste exato momento”, explica. “Tem uma aproximação com a figura histórica do Cristo como um cara socialista, um cara que estava atrás da igualdade. Minha mãe não gosta muito, mas eu digo, para sintetizar: papai é um cristão ateu e mamãe é uma católica macumbeira.” Assim como o pai, Lenine não acredita em Deus (“Acredito no divino, o tempo todo”), nem em vida após a morte (“Ninguém voltou pra me dizer como é”, diz, rindo) ou em religião. “O palco é como se fosse a minha religião, acho que o palco é a minha igreja. Apesar da miopia, do calor, você vê como as pessoas reagem. Isso é impagável.”

Os olhos verdes de Lenine sempre se fixam com segurança a quem ele dirige suas palavras. De início, ele pode até rebater questões com novas perguntas, chegando a causar insegurança (ele é criterioso com sua obra, e mostra desconfiança se alguma pergunta indica dúvida por parte de quem questiona). Porém, é fácil se sentir à vontade quando ele e Anna abrem as portas da casa onde moram, na Urca; ou quando ele diz não gostar de fazer fotos, se deixando, mesmo assim, à disposição para fazer o que a equipe de fotografia pedir; ou na hora em que ele diz não saber o número das roupas que veste, deixando a responsabilidade pelo figurino nas mãos de Anna, olhando passivo a esposa definir o que lhe cai melhor no corpo. Lenine é indiscutivelmente inteligente, posicionado, ao mesmo tempo em que é ouvinte e se deixa guiar por Anna (que por vezes se mostra quase como uma assessora pessoal do marido).

Mas quando ele fala sobre política, por exemplo, é o lado resoluto que aparece. “Muita coisa me incomoda, mas cada vez mais eu estou aprofundando o projeto ‘vista grossa’: o que não me interessa, eu não vejo. Tudo bem, isso é um paliativo, mas com isso eu limito as coisas”, diz, explicando-se em seguida. “Sou um cidadão, cara. Eu tenho assinatura de jornal, e é inacreditável o que está acontecendo agora. Eu abro o jornal e é o segundo ministro que cai. 

Me incomoda a mudança do código florestal como uma moeda de barganha por causa do Palocci! Sim, eu estou muito descontente com muita coisa, como qualquer cidadão. Mas o que me resta? Mudar pelo menos o que está em volta de mim. Isso eu faço.” Lenine fala sobre problemas ambientais e sociais em suas composições, como em “A Mancha”, de Labiata (2008), e também apoia grupos como SOS Mata Atlântica, WWF e Projeto Tamar (sobre o qual é capaz de falar por longos minutos, citando maravilhado a reprodução e o aumento do número de tartarugas).

O mar, aliás, é uma memória de infância sempre presente. “Tem umas coisas que marcam, como você achar que vai morrer num caldo. Durante aquelas frações de segundo você acha que vai morrer no meio da onda, e sai jogando água por todos os poros, com a adrenalina lá em cima. Aí tem umas coisas que são depois dessa infância, que foram realizar os sonhos de ir a paraísos litorâneos. Conhecer o Atol das Rocas foi uma das experiências mais incríveis”, ele conta.

“Dá pra ter uma noção muito clara de quanto a gente é pequenininho no meio disso tudo. Foi muito forte mesmo.” Esse foi um dos sonhos que Lenine conseguiu realizar sendo músico – mas há outros ainda não atingidos, como o de ter uma música gravada por Roberto Carlos. “Já mandei música pra ele e tudo”, revela.

A França, onde só do disco Na Pressão (1999) Lenine atingiu o expressivo número de 40 mil cópias vendidas até o início da década passada, também faz parte dos planos futuros. Ele deseja se mudar para o país (não definitivamente), ainda que o meio de transporte que deve levá-lo até lá seja motivo de pânico. Depois de vivenciar um terremoto em Los Angeles, em 1996, enquanto estava hospedado na casa de Sergio Mendes, ele passou a temer aviões.

“Tem uma coisa com barulho e a frequência das turbinas que me lembra as baixas frequências que eu ouvi quando passei pelo terremoto. Para alguém que não tem a cultura do terremoto, acordar às 4h com o mundo caindo ao redor, foi uma experiência...”, ele diz, declarando-se conformado, no entanto, com o fato de que precisa de aviões também para trabalhar.

Lenine estudou química durante três anos e meio (trancou a faculdade para ir para o Rio) e talvez por isso compare a música a processos químicos. Como um professor, ele explica que “a ideia de ser homogêneo na química só é verdade se você souber ser heterogêneo na mistura. Isso eu transponho para a música: é você tentar ser homogêneo numa porrada de coisas que em tese podem não dialogar”. É um jeito quase acadêmico de relatar, em palavras, a profusão de gêneros que surge em seu trabalho, fazendo com que um disco dele possa ser encaixado em diversas prateleiras de CDs de estilos diferentes.

Hoje, Lenine passa a segurança de um monge, graças a essa música, que, segundo diz, serviu como “um exorcismo”. Na adolescência, sofreu com as espinhas, que deixaram marcas em seu rosto; foi por meio dos graves que tira do seu violão e das letras que escreve que percebeu que podia “chegar às pessoas”. Ele cresceu em um ambiente politizado (lembra-se de ter visto a mãe queimando os livros socialistas do pai, com medo de que ele fosse preso – pela terceira vez – durante a ditadura), mas não tem partido (“Não acredito nas siglas. Acredito nas pessoas”).

Ainda assim, gosta de pensar que seu trabalho tem um lado político/didático. “Prefiro acreditar ainda que minha música é uma ferramenta de transformação, de tocar as pessoas. De uma maneira até romântica, penso que tem uma contribuição de reportagem jornalística, de dar a minha versão do que está acontecendo. De achar que um dia, quando pegarem um disco meu, vão tentar materializar o universo que estava em volta de mim naquele momento.”

Depois da família e da música, Lenine tem uma terceira paixão: as orquídeas. O que leva a outro grande sonho: o de registrar o banco genético das orquídeas brasileiras. A obsessão interfere até nas turnês, já que ele tende a passar por determinadas cidades para encontrar plantas específicas e conversar com colecionadores como ele. Nos últimos anos, tem documentado as flores que encontra Brasil afora a partir das turnês que realiza, o que no futuro também deve render um projeto, incluindo um livro. Se tiver a chance, ele falará durante horas sobre o orquidário que tem em sua chácara no Vale das Videiras, onde não usa “nada químico”, apenas rãs para controlar a população de insetos.

Agora, com Chão, as três paixões de Lenine devem estar mais unidas do que nunca. A música; a família, já que Bruno sairá pela primeira vez em turnê com o pai; e as flores, que continuarão tendo espaço na hora de decidir seu roteiro de shows. Com o gravador ligado, Lenine limita-se a falar bem de Bruno como profissional, fazendo questão de enfatizar que a parceria não tem a ver com corujice ou exacerbação paternal. Então, sem o gravador: “Agora que você desligou, eu posso dizer: o cara é fodão. O cara é fodão”, ele desmancha-se, enquanto Anna sorri.

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