sábado, 17 de dezembro de 2011

Quilômetros de História

De objeto indesejável a utilitário de guerra, a motocicleta cravou uma impressão definitiva e profunda na cultura popular 
 
 
por Paulo Cavalcanti

Os primeiros protótipos de motocicletas surgiram no final do século 19, mas levou um bom tempo – já século 20 adentro – para que o veículo realmente fosse assimilado pela massa. É curioso pensar que por um longo período elas foram consideradas “pouco práticas”: veículos superiores ao cavalo, mas sem o potencial de um automóvel. A explosão da Segunda Guerra Mundial mudou o conceito. Veículos mais leves e funcionais foram criados para rodar nos desertos e em lugares pouco acessíveis. E também para serem transportados por aviões. Nos Estados Unidos, a Harley-Davidson, que tinha sido criada no começo do século 20, foi uma das duas únicas companhias de moto que tinham resistido à Grande Depressão. Logo, a empresa começou a fabricar veículos para o exército norte-americano. Mas foi a própria Harley-Davidson que voltou a difundir entre os consumidores máquinas mais potentes e leves. No pós-guerra, o uso da moto era difundido nos quatro cantos do planeta, especialmente na Ásia e em países como Índia e Vietnã.
Nos Estados Unidos, a cultura das duas rodas também explodiu no pós-guerra. O país era ideal para ser explorado pelos motociclistas – de costa a costa, sua paisagem era rasgada por enormes autoestradas, que foram muito bem aproveitadas. Em 1948, foi fundado, em Oakland (Califórnia), o notório Clube de Motociclistas Hells Angels. Apreciadores das Harley-Davidson, os Hells Angels tiraram seu nome de uma divisão que lutou na Segunda Guerra Mundial. A gênese e a identidade dos criadores dos Hells Angels até hoje são envoltas em polêmica e controvérsia. As versões variam, mas o fato é que aos poucos o clube foi crescendo em termos de influência e número de membros e atingiu seu apogeu nos anos 60.

Uma década antes, no começo dos anos 50, os chamados greasers apareceram no sul e no sudeste dos Estados Unidos. Eles se tornaram estereótipos do jovem dos anos 50, principalmente por causa do cabelo encharcado de brilhantina e das jaquetas de couro. Jovens urbanos sem muito dinheiro, muitas vezes filhos de imigrantes italianos ou hispânicos, os greasers adoravam a velocidade. Os jovens logo adotaram as motocicletas, não só por uma questão de estilo, mas também por uma necessidade econômica.

O cinema foi essencial para plantar no inconsciente coletivo a imagem do motoqueiro rebelde e desafiador do sistema. O filme O Selvagem (1953) causou uma verdadeira comoção. Na produção dirigida por Laslo Benedek, um bando de motoqueiros liderados pelo irascível Johnny (Marlon Brando) invade uma cidadezinha dos Estados Unidos e toca o terror. No final, o anti-herói rebelde acaba se revelando um sujeito vulnerável e até um pouco sensível. Mas o que contou na época foi a imagem de durão, que até foi parodiada nos anos 60 por Harvey Lembeck, que vivia o atrapalhado líder de gangue Erick Von Zipper nos filmes da Turma da Praia dos anos 60. O Selvagem foi considerado tão chocante que ficou proibido de ser exibido na Inglaterra durante anos. James Dean, outro ícone da imagem e outro grande rebelde dos anos 50, também ficou conhecido como um adepto fervoroso das motos.

Os maiores nomes do rock surgidos nos anos 50 adotaram o traje de blusão de couro e a postura greaser no começo de sua carreira. Todos, assumidamente, adoravam uma moto. Gene Vincent foi um dos que levaram a atitude e o visual de biker ao extremo: chegou até a sofrer um acidente quando estava no exército. Elvis Presley sempre foi louco por motos – o Rei do Rock era colecionador e as pilotou até sua morte. No filme Carrossel de Emoções (1964), ele vivia um piloto que arriscava a vida no Globo da Morte (a cena, aliás, era o auge do longa). Elvis, na vida real, também gostava de modelos Harley-Davidson, mas no filme ele é visto pilotando uma Honda 305 Superhawk. Em Graceland, o acervo de motos de Elvis permanece aberto para a visitação pública.
Com a virada para os anos 60, a cultura Greaser foi desaparecendo nos Estados Unidos, mas ganhou força na Inglaterra com outro nome: rockers. Os inimigos deles eram os mods, que se vestiam na estica e de uma forma imaculada, preferindo estilos musicais como o da Motown e o ska, em vez do rockabilly ou do R&B, a paixão dos rockers. O modo de transporte dos mods eram as vespas e lambretas. Os mods e os rockers se confrontavam ocasionalmente, mas motos e lambretas eram as principais vítimas, muitas vezes sendo destruídas no litoral britânico de Brighton.

Brian Wilson, líder do Beach Boys, tinha abandonado as canções sobre surfe e já escrevia sobre carros. Em 1964, ele escreveu “Little Honda”. A canção foi um hit para o grupo The Hondells, idealizada por Gary Usher, colaborador de Wilson e que só gravava canções sobre motocicletas. Um dos grandes hits de 1964 foi “Leader of the Pack”, com o grupo feminino The Shangri-Las narrando a história de um líder de gangue de motoqueiros na linha de Johnny de O Selvagem, que morre em um terrível acidente.

A contracultura começou a dar as cartas no meio dos anos 60. Os hippies, na Costa Oeste dos Estados Unidos, rejeitavam os padrões da sociedade. E a motocicleta, por ser um meio de transporte barato em todos os aspectos, foi amplamente adotada por eles. Os Hells Angels começaram a ser reconhecidos como ícones da contracultura quando, em 1965, o notório jornalista gonzo Hunter S. Thompson publicou uma matéria sobre a gangue. A repercussão foi tanta que encomendaram a ele que escrevesse um livro inteiro sobre os chamados “Anjos do Inferno”. Em 1966, saiu o esperado Hell’s Angels: The Strange and Terrible Saga of the Outlaw Motorcycle Gangs, fruto do convívio de mais de um ano do escritor com a gangue. Na obra, o autor não deixou o lado escabroso de fora, relatando histórias cabeludas de abuso de drogas, violência e delinquência. “As ruas de cada cidade dos Estados Unidos estão cheias de homens que pagariam todo o dinheiro que conseguissem para serem transformados, mesmo que só por um dia, em brutos cabeludos e de pulso firme que desprezam policiais, extorquem bebidas de bartenders e rugem cidade afora em motos gigantes, depois de terem estuprado a filha do banqueiro”, escreveu a pena afiada de Thompson, eterno colaborador da Rolling Stone EUA, que se suicidou em 2005.

No final de 1966, a produtora AIP lançou o filme Wild Angels, estrelado por Peter Fonda e Nancy Sinatra e dirigido por Roger Corman, mostrando o dia a dia de uma gangue de Hells Angels. A crítica massacrou o longa, condenando o niilismo e a violência dele, mas isso não impediu que ele se tornasse um sucesso de bilheteria (e, posteriormente, um sucesso cult). Os filmes sobre motoqueiros tinham baixo orçamento e não necessitavam de muitos recursos para se sustentar: os cenários externos eram desnecessários e os atores geralmente desconhecidos (mas que em breve se tornariam astros). O impacto de Wild Angels foi enorme, abrindo as portas para o ciclo de filmes sobre os fora da lei das duas rodas e também ajudando a glamurizar a cultura dos Hells Angels. Na esteira de Wild Angels foram lançados títulos como Devil’s Angels, The Savage Seven, Angels from Hell, Hellcats e muitos outros.

O ápice do cinema sobre duas rodas aconteceu em 1969, com o lançamento de Easy Rider – Sem Destino. Além de grande sucesso de bilheteria, o filme se tornou um marco cultural, sendo considerado o princípio da Nova Hollywood. Dirigido e estrelado por Peter Fonda e Dennis Hopper, o longa-metragem mostrava as desventuras de Wyatt e Billy, dois motoqueiros que rodavam os Estados Unidos sem rumo. No caminho, conhecem um advogado alcoólatra (Jack Nicholson). Depois de encontro com hippies, viagens de ácido e confronto com caipiras conservadores, um final meio amargo mostra que a contracultura iria sofrer, em breve, duros reveses. A trilha de Easy Rider também se tornou um marco. “Born to Be Wild”, interpretada pelo Steppenwolf, é até hoje considerado o hino máximo dos motoqueiros. Com sua letra recheada de atitude – “Coloque seu motor pra funcionar / vá direto para a rodovia” –, a faixa é uma ode à vida on the road. Na outra estrofe da canção, quando o vocalista John Kay entoava “eu gosto de raios e fumaça / do trovão do metal pesado”, ele já antecipava a essência da turma das motos. “Quando você vê o filme, a história é contada pelas músicas, não pelo diálogo”, declarou Hopper, anos após o lançamento de Easy Rider.

A lua-de-mel do mainstream com os Hells Angels terminou em 6 de dezembro de 1969, com o infame show gratuito na Altamont Speedway (Califórnia), estrelado e organizado pelos Rolling Stones. O evento foi um “obrigado” aos fãs norte-americanos, mas, desde o começo teve problemas de organização. O Grateful Dead recomendou aos Stones que os Hells Angels fizessem a segurança – e o pagamento foi feito em cerveja, a ser consumida durante o trabalho. O dia foi marcado por violência generalizada e uso indiscriminado de drogas, e os seguranças da ocasião logo encrencaram com quem estava perto dos artistas, espancando os fãs sem dó, alegando que eram eles quem causavam confusão (ou mexiam nas motos deles, que estavam estacionadas logo em frente ao palco). No show de Mick Jagger e companhia, no momento em que a banda tocava “Under My Thumb”, um rapaz negro chamado Meredith Hunter sacou uma arma. Os Hells Angels viram a movimentação e espancaram o rapaz, matando-o na hora. Todo o tumulto foi capturado no filme Gimme Shelter. Um dos Angels, chamado Alan Passaro, foi indiciado como o autor do crime, mas depois acabou inocentado.

Após o evento, os Hells Angels foram marginalizados e até hoje enfrentam problemas com a Justiça. Assim mesmo, a organização ainda resiste não só nos Estados Unidos, como em boa parte do mundo. O grupo alega que é apenas um coletivo de pessoas de alma livre que se juntam para curtir a paixão por motocicletas. Apesar da imagem negativa projetada pelos Hells Angels, reuniões de motoqueiros em shows de rock se tornaram uma norma nos anos 70. Naturalmente, muitos deles rumavam às intermináveis apresentações do Grateful Dead, em São Francisco. Bandas de southern rock, como Allman Brothers e Lynyrd Skynyrd, também levavam sua cota de adeptos das duas rodas aos shows. Mais tarde, por uma macabra coincidência, Duanne Almann, líder do Allman Brothers e apaixonado por motos, morreria em um acidente, depois de bater na traseira de um caminhão. O Steppenwolf, autor de grandes hinos do gênero, seguiu com a moral alta entre os motoqueiros. A eles vieram se juntar nomes de hard rock como Grand Funk Railroad, Crow e Iron Butterfly.

A cultura do Heavy metal também influenciou e foi influenciada pelo culto às duas rodas. O surgimento da New Wave of British Metal, no final dos anos 70, aproximou o estilo da cultura motociclística. Velocidade, barulho e potência eram elementos que a nova música oferecia, algo que batia forte no coração dos bikers: as bandas e os fãs abusavam de roupas e adereços cheios de tachas, couro, aço e brilho, algo que tinha muito a ver com o universo das duas rodas. Um dos grandes hits do Saxon foi justamente “Motorcycle Man”. Rob Halford, o frontman do Judas Priest, sempre teve sua imagem associada a possantes motos. No final de cada show do Judas, quando a banda executa o hit “Hell Bent for Leather”, Halford costuma aparecer no palco montado em uma Harley-Davidson Cross Bones.

O cinema dos anos 80 retomou o gosto pelas motos. O Selvagem da Motocicleta (Rumble Fish, 1983), dirigido por Francis Ford Coppola, tinha um elenco all star com Matt Dillon, Nicolas Cage e até Denis Hopper, fazendo a ligação entre as gerações de motociclistas das telonas. Mickey Rourke interpretava o Motorcycle Boy, contribuindo para que produção resgatasse um pouco da atmosfera dos filmes clássicos de motoqueiros. Até os atores brucutus, como Arnold Schwarzenegger, entraram nessa: o ator transformou em referência a Honda CB750 Four, de 4 cilindros, um modelo mais antigo e que foi devidamente costumizado para ganhar ares futuristas em O Exterminador do Futuro, clássico apocalíptico de James Cameron. Na continuação da saga, em 1990, o ator austríaco pilotou uma Harley Davidson Fat Boy ao som de “You Could Be Mine”, do Guns N’ Roses. Outro ícone da época, o cantor Prince, migrou para o cinema com sucesso Purple Rain, no qual roda em uma Hondamatic Honda CB400A adaptada.

Neste novo milênio, a cultura das motos está em todo lugar e já não é mais associada a rebeldia ou a gangues de arruaceiros. A customização de motos é um fenômeno popular na televisão, principalmente em reality shows como American Chopper, que estreou na TV norte-americana em 2003. As estrelas são Paul John Teutul e o filho dele, Paul, proprietários da oficina Orange County Choppers, em que vivem em conflito constante, já que cada um tem um jeito diferente de atuar. “Eu curto muitos programas como American Chopper. Eu até estou com um piloto pronto, onde minha equipe trabalha dando nova cara a carros e motos”, conta Tarso Marques, empresário e piloto paranaense, proprietário da empresa de customização TMConcept. “Já fizemos mais de 500 motocicletas. O público confia, sabe que fazemos os projetos com o maior cuidado e carinho. E esse mercado continua crescendo muito no Brasil”, afirma Marques.

Chrys Miranda, proprietário do Garage Metallica, empresa especializada em costumização, também sente que o mercado está num momento de ascensão, mas alerta: “É preciso haver menos ego e mais profissionalismo. É importante dar crédito aos pintores, aos ferramenteiros, enfim, às pessoas que metem a mão na massa. Recentemente aconteceu aqui em São Paulo a feira Brasil Two Wheels e lá a gente pôde perceber o quanto o mercado está se profissionalizando”, afirma

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