Avaliação: NOTA  10
 


Recordai-vos de março! Recordai-vos dos idos desse dia! O grande Júlio não sangrou com justiça? Que malvado pôr nele as mãos e o apunhalou, se a causa justa não defendia? Como! Dá-se que tenhamos matado o mais notável homem do mundo, só por haver ele protegido ladrões, e que ora os dedos tenhamos de sujar com vis presentes e de trocar o círculo imponente de nossa dignidade por uns poucos tarecos que na mão fechar podemos? Prefiro ser cachorro e uivar à lua, a ser romano de tão baixa marca“. (Bruto, em “Julio César”, de William Shakespeare).

Não, caro leitor, você está lendo realmente a crítica de “Tudo Pelo Poder”. Mas, tendo em vista que o título original do filme, “Os Idos de Março”, se originou da supracitada peça do bardo, é justo que Shakespeare seja lembrado aqui. Ora, o longa, escrito e dirigido por George Clooney, mostra conspirações, tramas, intrigas e assassinatos ideológicos dignos de serem inspirados pelo gênio inglês. Há algo de podre no reino democrata.

Uma das peculiaridades do sistema eleitoral americano é o sistema de primárias, onde candidatos do mesmo partido se engalfinham pela chance de concorrer àquele lugar de destaque no Salão Oval. Considerando que existem diferentes facções do mesmo partido em conflito quando, em tese, lutam pelos mesmos ideais, trata-se de um prato cheio para uma verdadeira guerra civil política.

O brilhante roteiro de Clooney, Grant Heslov e Beau Willimon, é baseado na peça “Farragut North”, de autoria deste último. Jamais esquecendo de suas origens teatrais, o texto é completamente voltado para seus personagens. O filme é centrado em Stephen Meyers (Ryan Gosling), um dos membros do staff do Governador Mike Morris (Clooney), que tenta alçá-lo à candidatura à presidência estadunidense fazendo-o vencer as eleições primárias do Partido Democrata. Stephen começa como um jovem idealista, mas logo percebe que, nesse jogo político, o idealismo é sempre a primeira vítima, principalmente quando um dos mais importantes cargos do mundo está em jogo, além dos egos e glória pessoal de muitas pessoas ditas “importantes”.

A fita já abre com um momento que remete a “Patton – Rebelde ou Herói”, com Stephen aparentemente discursando para a plateia sobre como a política é sua religião, para depois percebermos que ele está apenas “testando” o palco para um debate do qual Morris participará depois. A partir daí, temos uma visão de bastidores da luta comandada pelos chefes de campanha, com o leal Paul Zara (Phillip Seymour Hoffman) lutando a favor de Morris e o cínico Tom Duffy (Paul Giamatti) trabalhando para seu concorrente, o Senador Pullman. Além disso, Stephen começa a se envolver com Molly (Evan Rachel Wood), a bela e jovem filha de um cacique democrata que está trabalhando como estagiária em seu escritório.

Essa primeira metade da película é absolutamente irretocável, mostrando quão realmente sujo (e, ao mesmo tempo, viciante) o jogo político pode ser, com as alianças de interesse construídas dentro das diferentes alas do partido, a relação conflituosa dos assessores com os membros da imprensa (representada por uma implacável colunista política vivida por Marisa Tomei), as traições e campanhas de desinformação sendo esmiuçados de modo fascinante.

Isso chega ao público por meio de uma teia de diálogos afiados proclamados por atores maravilhosos, todos no ápice de suas carreiras, sendo injusto destacar alguém na multidão de talentos que surge na tela. No entanto, o próprio Clooney vai além e, ao lado do cinematógrafo grego Phedon Papamichael, ilustra tudo isso por meio de um jogo de luz e sombras que faz menção ao primoroso uso da escuridão na fotografia de “O Poderoso Chefão”.

No entanto, a partir de uma revelação que ocorre da maneira mais inesperada e ingênua  possível, o filme “sai” um pouco do estado de realismo no qual se encontrava e embarca, de fato, na descida ao inferno de seu protagonista, com o gradual assassinato de seu caráter e dos seus ideais. Essa segunda metade abandona um pouco o jogo político e se concentra mais na série de decisões que Stephen toma, apresentando a sua desconstrução e a do seu ídolo.

É inevitável não identificar traços de diversos líderes democratas nos últimos vinte anos em Morris, indo de Clinton à Obama (a referência mais óbvia). É triste perceber o quanto esse homem falho, repleto de ideias progressistas e ideais liberais, terá de abrir mão para tentar fazer a diferença.

Mais desolador ainda é ver como a desilusão pode afastar um bom homem do caminho tido como virtuoso e levá-lo ao apregoado “realismo cínico”, que parece ser regra hoje em dia. Clooney nos mostra que atingiu sua maturidade como cineasta ao resumir todos esses sentimentos com uma simples troca de gravata, encerrando a projeção em um plano incômodo e soberbo. Recomendado.
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Thiago Siqueira
 é crítico de cinema do CCR e participante fixo do RapaduraCast. Advogado por profissão e cinéfilo por natureza, é membro do CCR desde 2007. Formou-se em cursos de Crítica Cinematográfica e História e Estética do Cinema.