domingo, 27 de fevereiro de 2011

[Análise] O Discurso do Rei

por Fábio M. Barreto, de Los Angeles





Acompanhar a pequena caminhada subjetiva da câmera de Danny Cohen, com seus ruídos visuais saudosistas dos tempos pré-filme digital, é o suficiente para determinar os princípios fundamentais de O Discurso do Rei (The King’s Speech, Tom Hooper, 2010, UK), um dos favoritos ao Oscar de Melhor Filme nesse ano. Por trás da descoberta da amizade tratada abertamente pelo filme, está a busca pela segurança, seja ela pessoal ou nacional, numa época de incerteza, transições pesadas e inevitáveis e, acima de tudo, violentas. Essa trajetória só se torna atraente e relevante graças à ligação improvável, mas real, entre os dramas da Família Real Britânica e seus súditos, os dois extremos do império que já foi um dos maiores do planeta. E tudo começa com um príncipe gago.



No início da década de 30, duas figuras antagônicas começavam a ser esmiuçadas pela imprensa européia. Na Alemanha, Adolph Hitler subia ao poder como Chanceler em 1933 e acelerava as maquinações que resultariam na Segunda Guerra Mundial, enquanto isso, na Inglaterra, a sucessão do Rei George V se tornava preocupante. De um lado o playboy Príncipe Edward, do outro o gago Duque de York, Príncipe Albert.



Começava ali o embate entre uma nação certa de si contra um superpoder vacilante. E mais inseguro que o Albert (Colin Firth, em interpretação irreparável) não existe. Segundo na fila para o trono, gago e, normalmente, motivo de piadas, no fim das contas, ele precisou ser o líder da nação em seu pior momento. De certa forma, o paralelo se faz válido também para sua trajetória cinematográfica, que o insere entre os dez melhores filmes do ano no Oscar, onde representa o cinema mais tradicional – ao lado de O Vencedor – frente a devaneios sonhadores, transformações soturnas e ótimas viagens visuais.







Essencialmente um buddy movie, ou seja, focado na amizade entre dois homens, O Discurso do Rei retrata uma época exaustivamente retratada no entretenimento por meio de seus personagens. Os cenários ingleses permanecem imutáveis, obviamente, logo, apostar em atores competentes e figurino adequado é mais que suficiente para promover essa viagem no tempo. Sem grandes cenas públicas ou efeitos complexos, os embates dramáticos entre Colin Firth e Geoffrey Rush – que formam o principal núcleo narrativo – assim como as demais dinâmicas de atuação soam como uma luxuosa montagem teatral beneficiada pela meticulosidade e edição sempre bem-vinda do cinema.



Mas sem obviedades, tanto que Tom Hooper foi criativo o suficiente para disfarçar uma montage no segundo ato, intercalando momentos da vida pública do príncipe com seus sessões de terapia, sem parar o filme para demonstrar evolução acelerada. O efeito é o mesmo: vemos a efetividade do tratamento. Entretanto, seu modo sutil evita a obviedade da construção. Quem disse que o cinema não pode ser inventivo?



Os personagens são constantemente inseridos em cenários internos ricos em cores em contraste com o cinza londrino, seja na vistosa parede laranja da casa de Lowe (Rush) ou os tons desgastados de seu consultório. O mundo lá fora é assustador e exigente, tanto para o Príncipe quanto para o seu súdito australiano; do mesmo modo, dentro de casa, suas vozes… ou melhor, suas emoções podem vir à tona por conta do número menor de máscaras que são forçados a usar. Por mais paradoxal que soe, Firth precisa lutar para vestir uma máscara. Enquanto a Hollywood moderna e o mundo da música pop pregam a busca pelo diferencial e a necessidade pelo extraordinário com seus super-heróis e ídolos mais visuais que relevantes, O Discurso do Rei empurra todo mundo na contramão com o sofrimento de um homem que precisa cumprir um papel, incorporar uma persona desprovida privacidade e, em vários aspectos, individualidade.



Com esse inusitado, e único, objetivo, vemos Firth sofrer, explodir, retrair, questionar e, inevitavelmente, dar um basta em sua aparente auto-sabotagem num roteiro sem pontas abertas e cheio de propósito. O final é conhecido, mas menos óbvio do que aparenta. Não estamos em Hollywood, não se trata de um blockbuster – embora, em menos de 12 semanas já se aproxima da marca limite dos US$ 100 milhões nos cinemas norte-americanos para alcançar tal classificação; já faturou cerca de US$ 181 milhões no total, incluindo mercados internacionais –, logo, não sofre de seus vícios e demandas dos executivos de estúdios. Isso sem contar o principal fator que permitiu a narrativa limpa: trata-se de um filme pequeno, com custo estimado em US$ 15 milhões, mais um ótimo exemplar dessa geração de filmes baratos presentes no topo qualitativo do cinema em 2010. Cisne Negro e 127 Horas estão na mesma faixa, mas é impressionante notar o baixíssimo custo de Namorados para Sempre (Blue Valentine, US$ 2 milhões) e Inverno da Alma (Winter’s Bone, US$ 1 milhão!!!!).



É a vitória do bom senso cinematográfico, não necessariamente autoral, mas devoto a um produto final mais longevo que o sucesso descartável do verão. Trata-se de um filme autoconsciente de sua função, sem tendências megalomaníacas e, assim como deseja seu protagonista, simples. Mas nem por isso fraco ou desmerecedor do título de franco-favorito à estatueta. Difícil se esquecer dos lampejos de liderança de Albert, da triste insegurança (e inerente desespero) ao se mostrar incapaz de contar uma história de ninar para as filhas – entre elas, Elizabeth II, atual regente da Inglaterra – e o carisma e ousadia de Lowe, o homem que ousou confrontar o Rei. Grandes cenas, resultantes de um power trio irresistível: Firth, Rush e Helena Bonham Carter, sempre mais contida e eficaz longe das alucinações do marido. Menção honrosa para Timothy Spall, um coadjuvante de luxo com uma interessante versão para Winston Churchill, pouco parecido visualmente, mas fiel em postura e presença de espírito. Boa, mas não comparável ao trabalho definitivo de Brendan Gleeson em Into the Storm. Vale notar que o Rei George VI aparece no telefilme da HBO, porém, não demonstra sua gaguice.



Colin Firth deve levar o Oscar de Melhor Ator e, como de costume, Geofrey Rush merece ser reconhecido, entretanto, não suplanta o ápice da carreira de Christian Bale em O Vencedor, sem dúvida, o mais emocional dos concorrentes. O Discurso do Rei vale o ingresso, firma-se como pilar da atuação da nova década e já nasce como filme de referência, ganhando Oscar ou não – já levou o BAFTA –, missão cumprida. O Príncipe Albert começou sozinho, enfrentando seus medos, mas, diferente de Hitler, terminou coroado e acompanhado por um amigo.



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