segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Kray – The Edge




Alguns rapazes gostam de brincar de carrinho – especialmente os possantes. Outros, de trem. Pois o filme russo Kray trata de contar a fixação de alguns homens por trens – e a importância que estas máquinas tiveram (e tem) para a Rússia. A história se passa em um ambiente isolado, pouco após o final da Segunda Guerra Mundial, e revela parte do sentimento e das carências dos soviéticos depois que eles venceram a batalha contra os alemães. Interessante como há pouca glória e muita cobiça, falta de esperança e disputa em cena.



A HISTÓRIA: Uma garota corre por um bosque enquanto se ouvem tiros. Ela chega até uma ponte de uma estrada de ferro, mas para ofegante. Parte de sua rota de fuga está destruída. A garota de tranças e vestido tenta escapar pelo rio, mas é levada pelas águas. Os tiros não param. Aparece a placa Kray, escrita em russo, enquanto um trem apita ao fundo. O trem para naquela estação, localizada na Sibéria, em setembro de 1945. Desembarca dele Ignat (Vladimir Mashkov), um homem que esteve na frente da guerra e, por isso, é considerado um “herói”. Ele é chamado para trabalhar ao lado do chefe do posto de trabalho da Gulag. Obcecado por trens, ele luta para adquirir novamente o direito de ser o maquinista de um deles.



VOLTANDO À CRÍTICA (SPOILER – aviso aos navegantes que boa parte do texto à seguir conta momentos importantes do filme, por isso recomendo que só continue a ler quem já assistiu a Kray): Equipamentos e pessoas são considerados troféus neste filme. Um paralelo interessante para uma reflexão sobre o que restou do “mundo” após os trágicos anos da Segunda Guerra Mundial. Kray tem uma levada de filme de ação mas, entre uma e outra cena impressionante de disputas de trens – e egos -, o espectador é convidado para refletir sobre uma sociedade corrompida e carente de valores.



Há tempos eu não assistia a uma autocrítica tão contundente. Kray é dirigido por Aleksei Uchitel e tem roteiro e história de Aleksandr Gonorovsky. Os russos se debruçam sobre um campo da Gulag, como ficou conhecido o “sistema de campos de trabalhos forçados” da extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Achei este texto curto e bastante explicativo sobre o assunto, publicado pela revista Aventuras na História. Mas não faltam fontes sobre este tipo de local.



As primeiras características que impressionam quando Kray inicia são a direção de fotografia de Yuri Klimenko e a trilha sonora dramática – e propícia para a história – de David Holmes. Este dueto continuará até o último minuto do filme, o que lhe garante parte da qualidade técnica que caracteriza esta grande produção russa. A dinâmica da direção de Uchitel também se destaca desde o princípio.



Há mil maneiras de uma mesma história ser contada. Uchitel e Gonorovsky optam pelo drama, com referências evidentes à história do cinema russo. Há relações com o cinema de Sergei Eisenstein, o maior cineasta daquele país, e até com uma crítica evidente ao cinema do “realismo socialista“, imposto por Andrei Jdanov a partir de uma determinação de Stalin.



No caso da referência à Eisenstein, ela não se apresenta através da forma, mas do conteúdo. O espectador não verá em Kray o “cinema intectual” ou “dialético” do mestre do cinema russo, mas uma simplicidade narrativa muito maior. A referência a Eisenstein está na mensagem, na dualidade entre homem e máquina e na forma com que os novos cineastas exploram o conceito repressivo do regime soviético. Mas as comparações terminam por aí.



Primeiro, porque a edição de Kray não é simbólica e cheia de dualidades como no cinema de Eisenstein. Feito para ser popular, a obra de Uchitel é linear, com cortes tradicionais e uma narrativa sem sobressaltos. Há drama e algumas surpresas no caminho, e a escolha de Vladimir Mashkov e outros atores com expressão marcante lembram um pouco as opções do próprio Eisenstein. Mas, claro, aqui não encontramos a genialidade do diretor de Bronenosets Potyomkin.



Mas voltemos ao filme… depois da direção de fotografia e da trilha sonora, o elemento que mais chama a atenção em Kray é a direção firme de Uchitel e a atuação de seu protagonista. Não demora muito para sabermos que os prisioneiros sob a administração de Fomitch (são “traidores” transferidos dos campos nazistas antes do final da guerra.



Isolados e distantes de tudo, eles vivem na miséria e no trabalho forçado. Mas também se divertem. Sem muito controle, homens e mulheres vivem de casos, de furtos e de trocas de favores. Neste cenário, a chegada de um sujeito que lutou do lado russo, ainda que tenha provocado um acidente com um trem por imprudência, quase é comemorada pelo administrador do campo da Gulag. Uma das prisioneiras, Sofia (Yulia Peresild) logo se joga na direção do “herói de guerra” para, literalmente, conquistá-lo como um troféu.



Obcecado pelo desejo de voltar a conduzir um trem, Ignat acaba personificando a ideia de herói. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). E o interessante desta produção é que este herói é imperfeito. Frustrado por não conseguir a admiração de seu “próprio povo” – ainda que seja um grupo considerado a “escória” da sociedade russa -, ele acaba se apoiando na única mulher que, como ele, procura uma nova chance: a alemã Elsa (Anjorka Strechel). O “herói” russo que não recebe o tratamento diferenciado que esperava de seu próprio povo encontra na também marginalizada Elsa o apoio e a admiração necessários. Ela depende dele e o admira, além de mostrar-se também uma mulher determinada e corajosa. O protagonista percebe que ele não é um troféu para a garota, mas o “seu herói”. Elsa, por sua vez, representa para ele uma redenção e a via de escape para uma nova vida – algo que poucos, naquele entorno, poderiam desejar ou alcançar.



Interessante a forma com que o roteiro de Gonorovsky aproxima e distancia personagens. Em Kray, a linha que separa “mocinhos” e “bandidos” é bastante tênue. Ainda que, no final, fique muito evidente a conclusão a que os espectadores devem chegar. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). São “mocinhos” aqueles que ignoram a origem da pessoa e não lhe maltratam pelo simples fato dela ser “diferente” (ou “estrangeira”, como acabam se configurando as figuras de Ignat e Elsa). Bandidos, claro, todos os demais que consideram mais forte a sua própria nacionalidade do que os acertos e erros que o indivíduo possa ter cometido. No cenário de Kray, as pessoas valem menos que uma máquina. Muito menos, aliás. São vistas como “escória”, peças que podem ser retiradas de cena com a mesma facilidade com que se mata um bicho para retirar a sua carne e devorá-la. Milhares de russos foram mortos durante o regime de Stalin por não serem considerados dignos de viver – seja porque essas pessoas eram apontadas como “traidoras” da pátria ou por qualquer outro motivo torpe e questionável.



Desta forma, de maneira bastante direta e sem rodeios, Kray faz uma crítica contundente ao fisiologismo e ao nacionalismo, resgatando os princípios do “realismo socialista” que foi empurrado goela abaixo a partir do regime de Stalin. A ideia dos heróis e do ufanismo está presente nos cartazes vistos em Kray, mas também na “aura” que circulava entre os russos enfocados nesta história – mesmo que eles fossem “traidores” e a “escória” do sistema.



A lavagem cerebral e a opressão, aliás, não faz distinção de classe social. Não importa em que local a pessoa se encontra na “pirâmide social”; o que interessa é que as ideias e comportamentos que podem ferir o sistema – seja ele injusto ou não – devem ser combatidas. A supremacia das máquinas, tão “endeusadas” quanto a figura do soldado heróico – desde que ele não se rebele contra as regras, isso é evidente -, fica evidente também na produção.



Estas reflexões e críticas propostas por Kray, além da tradicional intriga de “alcovas” e de um ritmo de aventura sobre trilhos fazem de Kray uma produção diferenciada, interessante e dinâmica. Sem contar que o filme traz detalhes da vida em um campo da Gulag pouco explorados pelo cinema russo. Apenas por estas razões, ele vale a pena.



Mas nem tudo são flores nesta produção. (SPOILER – não leia se você não assistiu ao filme). Ainda que impressionem as sequências de disputas entre os trens e, principalmente, a reconstrução precária da ponte destruída por Ignat e Sofia, algumas vezes o diretor e o roteirista exageram nas longas sequências com pouca inventividade. Uma edição mais dinâmica, por exemplo, poderia transformar alguns trechos da produção em um resultado mais dinâmico e eficaz. A dupla investe tempo demais também no romance fadado ao fracasso de Ignat com Sofia. E o final, em especial, deixa a desejar – afinal, como explicar o “sumiço” de Ignat e a captura tão “fácil” de Elsa (que, aliás, não é mostrada na produção, apenas mostram quando ela é jogada para dentro do trem)? Ok que alguém fala que ele foi “limpar a neve nos pontos de desvio”. Mas por que ele iria sem ela? E por que ela, ao ver a chegada de seu algoz, o superior russo Fishman (Sergey Garmash) não fugiu? Parece que os realizadores perceberam que o filme deveria terminar logo e descuidaram de explicar melhor alguns lances no final. Uma pena, porque ele vinha muito bem, no geral, até aquele momento – descontado algum dramalhão que poderia ter sido evitado. Um pouco mais de realismo teria feito bem para esta história.



NOTA: 9,2.



OBS DE PÉ DE PÁGINA: Kray estrou no dia 9 de setembro no Festival Internacional de Cinema de Toronto. Na ocasião, houve quem o comparasse à obra-prima de Buster Keaton de 1927 The General. No mês seguinte, o filme russo passou pelo Festival de Cinema de Warsaw e, em dezembro, pelos festivais de Thessaloniki e Les Arcs. Provavelmente o filme marcará presença em todos os eventos do “segundo escalão” no mundo – até pela data em que ele chegou ao mercado, dificilmente conseguirá emplacar uma exibição nos principais festivais de cinema do mundo.



Este deve ser um dos filmes mais caros da filmografia russa recente. Kray custou US$ 11 milhões e arrecadou, até o dia 24 de outubro, pouco mais de US$ 5,1 milhões na Rússia. Ainda falta um bocado para ele conseguir se pagar.



Os usuários do site IMDb não se empolgaram muito com o filme. Tanto que conferiram para ele, até o momento, apenas a nota 6,7. O site Rotten Tomatoes não abriga nenhum link com crítica para a produção – o que demonstra que ela tem sido um bocado ignorado pela crítica até o momento, um ponto negativo para o seu desempenho no próximo Globo de Ouro ou mesmo para conseguir emplacá-lo no Oscar.



Encontrei dois cartazes da produção. Um deles, o que publico aqui no blog, me chamou a atenção por seguir a linha do material de propaganda daqueles tempos de Stalin, ou seja, ele segue na direção de transformar um homem em herói. E não sei se foi só impressão minha, mas a figura de Ignat, com aquela calça larga – mais do que o normal – não lembra a de um minotauro? Para mim, mais um elemento para transformá-lo em ser mitológico, viril e imbatível – algo que casa com a ideia que querem dar dele em boa parte do filme.



Falado em russo e alemão, Kray é um filme com algumas paisagens fantásticas. Fiquei impressionada com elas e, consequentemente, com a direção de fotografia, bastante iconográfica, atenta aos melhores ângulos e também na captura das imagens mais significativas.



Entre os atores secundários que merece destaque está Aleksandr Bashirov. Ele interpreta o “encarregado” da música do campo de trabalho que, ao mesmo tempo, é o ladrão comerciante do pedaço e o informante das autoridades russas sobre o que acontece no acampamento. Ele encarna o melhor estilo de “bobo da corte” que sabe tudo e que tem uma importância muito maior no lugarejo do que, inicialmente, sua posição e comportamento podem sugerir.



CONCLUSÃO: História ambientada no cenário de um campo de trabalho forçado da URSS após o final da Segunda Guerra Mundial, Kray reflete sobre a vida nestes locais e mais que isso, sobre o tipo de sociedade corrupta e em crise de valores em que se transformou a URSS com o regime de Stalin. Repressão, violência, corrupção e furto fazem parte do cotidiano, assim como o fascínio dos homens pelas máquinas – no caso, trens. Fazendo referências à algumas das escolas de cinema russas anteriores, Kray se mostra um filme interessante, rico em informações, mas simplista na forma. Faltou inventividade e ousadia na edição e mesmo em parte do roteiro que, voltado para o grande público, investe tempo demais em um triângulo amoroso que pouco acrescenta para a história. Mas vale por algumas sequências belíssimas e eletrizantes, assim como por apresentar uma reflexão importante sobre um cenário e um tempo pouco explorados pelo cinema. Justamente uma era em que as máquinas valiam muito mais que as pessoas – algo que continua ocorrendo hoje, em alguns lugares e situações? – e quando o nacionalismo justificava formas ultrajantes de exclusão social e crimes variados. Esta produção tem, assim, valor histórico e de reflexão sobre a formação dos mitos heróicos, e de como é fácil desconstruí-los quando assumimos um olhar mais cuidadoso e crítico.



PALPITE PARA O OSCAR 2011: Kray deu o primeiro passo para entrar como um dos fortes concorrentes no próximo Oscar: foi selecionado entre as cinco produções finalistas do Globo de Ouro de 2011. Claro que uma coisa, necessariamente, não leva a outra, mas é fato que ao ser selecionado para o Globo de Ouro, Kray ganha uma evidência que não teria caso tivesse ficado de fora.



Interessante observar que alguns dos concorrentes de Kray no Globo de Ouro não estão na lista de pré-indicados ao Oscar. Biutiful, minha aposta para ganhar o Globo de Ouro, por exemplo, não foi indicado por seu país (México/Espanha) para o Oscar. Mas, provavelmente, a produção entrará na disputa – mas em categorias principais e não na de Melhor Filme Estrangeiro.



Io Sono L’amore e Le Concert, ambos premiados, também estão fora da disputa pelo Oscar. Concorrem diretamente com Kray por uma das cinco vagas no prêmio da Academia e também no Globo de Ouro apenas Haevnen. Não assisti a nenhum dos outros concorrentes, mas pela qualidade da filmografia da diretora Susanne Bier, de Heavnen, posso apostar que ela é uma das fortes concorrentes ao prêmio – junto com Biutiful, no caso do Globo de Ouro.



Kray mereceu chegar entre os finalistas ao Globo de Ouro – ainda que, cá entre nós, eu prefira a Carancho. Tem qualidade técnica e um bom foco de roteiro. Mas lhe falta um pouco mais de ousadia e de profundidade. Se ele realmente tivesse se inspirado nos melhores exemplos do cinema russo, teríamos um produto melhor em mãos.



No Globo de Ouro, dificilmente ele conseguirá levar a melhor tendo Biutiful e Heavnen como concorrentes. Consequentemente, no Oscar, seu desafio é ainda maior. Talvez ele chegue entre os cinco finalistas, mas dificilmente conseguirá ganhar a estatueta. Se levar a melhor, será mais por um “incentivo” de Hollywood para o cinema russo, tão esquecido nos tempos atuais – e, também, será uma decisão injusta.

FONTE:
http://moviesense.wordpress.com/

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