quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

‘Vicky Cristina Barcelona’, o antídoto

por Zeca Camargo
 
Eu ainda estou interessado em explorar o improvável debate entre o que é melhor: assistir ao BBB ou ler um livro? – como propus no post anterior. Fui atrás de mais detalhes e parece – como qualquer polêmica que surge na internet, eu sempre desconfio… – que ela começou com um texto supostamente atribuído a Luis Fernando Veríssimo, no qual o escritor, indignado com a qualidade do programa (que, só a título de atualização, no momento em que escrevo este texto “comemora” o primeiro beijo entre duas mulheres desta edição), conclamava para um grande protesto na linha “desligue a TV e abra um livro”…

Aparentemente indignados com a proposta, um grupo de “twitteiros” respondeu com um levante, acusando a ideia de ser, hum, elitista – imagino, baseado na retrógrada ideia de que “apenas a elite lê” (supostamente num país de ignorantes…). Ou, pior, baseado no preconceito de que leitura é uma coisa difícil, só para pessoas com alta educação, algo que poderia significar – baseada na enorme fúria da resposta (e que resposta não é furiosa hoje em dia na internet?) – que a sugestão de Veríssimo (se foi dele mesmo) só deveria ser entendida como algo que fosse “de escitor para escritor”. Ou – ainda pior! – em cima de um preconceito imbecil de que o público que assiste o BBB não teria capacidade de ler um livro (e vice-versa)…

Todas essas suposições me deixaram tão incomodado, que eu queria mesmo abrir espaço para este assunto aqui – quem pode me provar que essas duas coisas são incompatíveis, leitura e BBB? Porém, reconheço, pelo menos por enquanto, eu não seria capaz de propor uma discussão equilibrada pois, embora meus argumentos em favor da leitura estejam bem sólidos (no momento, leio um curioso livro que fez algum sucesso nas listas de melhores do ano de 2010, “Skippy dies”, de Paul Murray, e mais um guia de como viver melhor baseado na obra de Montaigne, “How to live”, de Sara Bakewell), confesso que até agora não pude me dedicar a este BBB ainda com atenção suficiente para me sentir apto a escrever sobre ele – viagens e trabalho interferiram nessa atividade. Mas, como aparentemente boa parte dos fãs de BBB – entre os quais, claro, me incluo -, devo começar a me envolver mais com o programa nas próximas semanas, proponho que a gente retome esta discussão mais para frente (o que não impede que você desde já contribua com sua opinião…).

Até porque, como você que acompanha cultura pop sabe bem, na última terça-feira a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood anunciou os candidatos ao Oscar deste ano – o que tornou este assunto mais urgente. Assim, vamos a ele. Mesmo sem poder assistir ainda a todos os indicados – alguém pode me explicar o que passa na cabeça das distribuidoras ao decidirem que uma bomba como “Zé Colméia” deve passar em 25 salas de cinema, além de outras quatro com a versão em 3D (estou me baseando em São Paulo, capital), enquanto favoritos como “O vencedor” e “Cisne negro” ainda nem estão em cartaz (devem estrear sexta que vem, aparentemente); ou por que um filme notoriamente ruim como “O turista” (que foi alvo de uma das melhores piadas de Rick Gervais na última cerimônia do Globo de Ouro) está em exibição em 26 cinemas paulistanos, enquanto “O discurso do rei”, que levou o maior número de indicações este ano só vai estar disponível para o público brasileiro na semana que vem (e duvido que em tantas salas quanto o “clássico” de Johnny Depp e Angelina Jolie)? -, enfim, mesmo sem poder ainda assistir a todos os indicados deste ano, acho que já vale um comentário…

Afinal, quatro indicados (entre 10!) para o Oscar de melhor filme já passaram por telas brasileiras – viva! E cá e lá, já tivemos pelo menos a chance de ver algum outro título indicado a uma categoria que não está entre as principais. Como a única “participação” brasileira entre as indicações, “Lixo extraordinário” – se você não viu, pergunte-se se andou acompanhando os lançamentos de documentários recentemente… Talvez você tenha conferido “Alice no país das maravilhas” (indicado para melhor direção de arte, figurino, efeitos visuais), ou “Homem de ferro 2″ (efeitos especiais), ou “Incontrolável” (edição de som), ou “Harry Potter e as relíquias da morte: parte 1″ (direção de arte e efeitos visuais).

Eu de minha parte, sem saber ainda das indicações, tenho assistido ao que está disponível com avidez. Desde uma pré-estréia de “O vencedor”, que concorre a sete Oscars, e que pretendo comentar aqui em breve (mas só para adiantar, tudo bem que o filme é baseado em uma história real, mas será que a distribuidora no Brasil precisava mesmo contar o final logo no título?), até um insignificante (quase insultuoso) Clint Eastwod, “Além da vida” – que honrosamente foi indicado para o prêmio de melhores efeitos visuais, certamente menos pelas imagens “do além” (honestamente, até “Nosso lar” fez melhor!) do que pela impressionante sequência do tsunami no seu início.

 

Mas o filme que quero mesmo discutir hoje aqui é um que foi indicado em duas categorias: melhor filme estrangeiro e melhor ator… Meia palavra basta para você que gosta de cinema, portanto, se você juntou a informação anterior com o título do post de hoje, talvez já tenha matado a charada: vou falar sobre “Biutiful”, de Alejandro Gozáles Iñarritu, que concorre como produção mexicana e tem sérias chances de dar a Javier Bardem seu segundo Oscar.

Para quem não viu “Vicky Cristina Barcelona”, um dos melhores trabalhos recentes de Woody Allen, vale esclarecer que eu estava só brincando: a únicas coisas que este filme tem em comum com “Biutiful” é a cidade onde a história se passa, e o ator principal. De resto, os dois filmes não podiam ser mais distantes. Se os amores na obra de Allen são descontrolados (quem se lembra de Penélope Cruz entrando em cena totalmente descabelada), eles pelo menos terminam bem em suas confusões. Já os amores do trabalho de Iñarritu, que são ainda mais indomados, só encontram desfecho em desastres catastróficos. Bardem, um artista plástico sedutor em “Vicky”, frequentador de sofisticados restaurantes catalães, nas mãos do diretor mexicano é o miserável trambiqueiro Uxbal, que tenta convencer o filho de 5 anos que o cereal que ele come todo dia é hambúrguer com batata frita… Se, no primeiro filme, Barcelona funciona como um cartão postal, no segundo a cidade é quase uma anti-propaganda para seu turismo – a igreja da Sagrada Família, por exemplo, só aparece em “Biutiful” como silhueta, contrastando com a brutal arquitetura das áreas mais pobres da cidade, e contra um céu poluído…

É preciso ter estômago para assistir “Biutiful” – felizmente em cartaz em saudáveis 11 salas paulistanas! É preciso deixar também seu coração na bilheteria do cinema porque – anote meu aviso – se você entrar com ele na sessão, você vai se machucar. Afinal, o filme começa com a notícia de que Uxbal está com câncer de próstata – intratável, já que foi detectado num estágio bem avançado. A melhor perspectiva, com um tratamento quimioterápico “barra pesada”, é de dois meses de vida. E se você pensa que essa é a única notícia ruim que Uxbal vai ter de encarar ao longo do filme, prepare-se para outras “surpresas” terríveis…

Separado de sua mulher bipolar, alcoólatra e drogada, Marambra (vivida pela ótima Maricel Álvarez), Uxbal tenta criar um casal de filhos (Ana e Mateo) sozinho. O problema é que sua “fonte de renda” vem do comércio ilegal de bolsas de grifes falsificadas, vendidas por um exército de ambulantes senegaleses – que, por sua vez, são imigrantes também ilegais. As bolsas vêm da outra ponta do “negócio” de Uxbal: fábrica clandestinas onde imigrantes chineses (preciso dizer que são também ilegais?) trabalham em condições sub-humanas. A polícia não dá sossego aos senegaleses e, para dizer pouco, o dia-a-dia dos chineses só deteriora… Lembra do câncer de Uxbal? Pois é… um “detalhe”…

Com a “sentença de morte” rondando cada pensamento seu, Uxbal tenta ser um bom homem na reta final da sua vida. Mas como fazer as coisas certas em um cotidiano onde tudo – tudo! – está errado? A tentativa de fazer com que os chineses tenham uma acomodação mais decente sai totalmente pela culatra. O senegalês com quem Uxbal mais conta é preso e deportado (sua mulher e filho de menos de dois anos ficam para trás). E a “última chance” que ele dá para seu casamento tem uma consequência tão desastrosa que, sem entregar demais, resulta na cena mais insuportável de ver de todo o filme – um pai arrancando (literalmente) o filho dos braços da mãe. Aliás, deixe-me reformular: essa é uma das cenas mais difíceis de ver de toda a história do cinema!

Aos que adoram me acusar de contar muito coisa de um filme nos meus comentários, um aviso: não se preocupem! Tudo que descrevi aqui empalidece e se transforma quando você vê essas cenas interpretadas por Javier Bardem. Imagine que todas essas coisas estavam já no roteiro que Iñarritu ofereceu ao ator (parece que o diretor concebeu o filme pensando especificamente nele para o papel) – apenas palavras, como aqui no meu texto. O que Bardem fez foi elevar tudo isso a uma outra dimensão, mergulhando no personagem até que ele não tivesse mais espaço para respirar – nem sobreviver. O resultado, claro, é uma performance que, se não ganhar o Oscar, vai exigir da Academia de Hollywood uma redefinição do que significa o trabalho do ator. Se não for o que Bardem mostra em “Biutiful”, então eu não sei mais o que é…

Iñarritu é geralmente acusado de “carregar nas tintas” ou “forçar uma barra” em seus filmes. Eu discordo… Até hoje não vi “Babel” – eu sei, uma falha. Mas tenho verdadeira adoração por “Amores perros”, e já entrei em inúmeras brigas defendendo “21 gramas” como um filme genial. Pelo visto devo enfrentar novas discussões ao levantar aqui uma bandeira para “Biutiful”, mas sei que não vou me arrepender.

O filme me fez chorar em cenas inesperadas – não quando uma tragédia está sendo explicitamente mostrada, mas nos raros momentos de alegria, como quando a filha Ana pergunta a Uxbal como se escreve “beautiful” (daí o nome do filme), ou no seu próprio aniversário de dez anos. Mas eu já colocaria esse trabalho de Iñarritu como um dos melhores do ano (categoria “filme estrangeiro” ou não), nem que fosse apenas pela belíssima simetria entre as cenas do início e no final. Qualquer pessoa que já colocou um anel no dedo de outra e a chamou de “meu amor” vai me entender.

Bem, mas eu divago – e temos dias cheios pela frente, com “vencedores”, “cisnes negros”, “reis gagos” e quejandos. Para não falar da própria festa do Oscar lá para frente! Quanto assunto…

FONTE:
http://g1.globo.com/platb/zecacamargo/2011/01/

Nenhum comentário:

Postar um comentário