quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Como convencer seu namorado a assistir a 'Cisne negro'

Diga para ele que é um filme sobre sexo entre duas mulheres disfarçado numa história de balé! Como você que gosta de cinema provavelmente já desconfia, “Cisne negro” – que tem ampla estréia nacional nesta sexta-feira – conta a história de uma bailarina, Nina (Natalie Portman), que sonha em pegar o grande papel principal de uma das mais importantes coreografias da história da dança clássica. Ou seja, um filme sobre balé, que só por ter esse tema já oferece uma resistência forte a milhares de namorados (e noivos e maridos) que acham que já gastaram sua cota para filmes, hum, “sensíveis” de todo o século 21 quando foram arrastados para assistir a “O segredo de Brokeback”.

(“Cisne negro” e “Brokeback” não poderiam ser filmes mais diferentes, eu sei – tanto na temática, como na condução e direção. Mas você sabe como essas coisas se confundem na cabeça de quem está acostumado a esperar por uma sequência de “Transformers” ou “Velozes e furiosos” – que já está, acredite, na sua quinta reencarnação – como se fosse o grande acontecimento cinematográfico da temporada… Mas eu, claro, divago).

 

Enfim, antes de elogiar “Cisne negro” – que merece sim, muitos elogios -, quero bater palmas para os executivos da Fox Searchlight (a produtora do filme), que certamente, ao se darem conta de que estavam diante de um “filme de arte” que tinha tudo para se tornar uma superprodução, a não ser pelo fato de que ele girava no limitador universo do balé – que, potencialmente, teria mais apelo ao público feminino -, decidiram “apimentar” o roteiro com uma cena de sexo entre Nina e uma rival sua na companhia, Lily (Mila Kunis), uma sequência de fazer inveja a Stephen Dorff em “Um lugar qualquer” (mais sobre esse filme, daqui a pouco).

Com essa “isca” – devem ter pensado os executivos -, todo mundo sai contente do cinema: ela viu um filme de superação de uma fantasia tipicamente feminina (que garota nunca sonhou, nem de leve, ser uma “prima ballerina”?), e ele teve de aguentar longas sequências de pontas e tutus, mas por outro lado viu um outro tipo de fantasia sua ser recompensada. E com louvor…

Acontece que “Cisne negro”, que vi numa pré-estréia na última terça-feira, não é um filme tão simplesmente bidimensional como estou propondo neste começo de texto, explicitamente para provocar. Na verdade, quem quer convencer alguém de ir ao cinema para ver “Cisne negro” tem bem mais do que um simples argumento para isso. Essa produção – que é uma das mais cotadas para o Oscar de melhor filme (a conferir no próximo dia 27) – deve agradar não apenas aos amantes do balé, ou de cenas de belas mulheres ensinando aos homens “como se faz”, mas também a quem gosta de um bom filme de suspense (até de terror!); ou de um bom “thriller” psicológico; ou de uma boa história de manipulação (Nina tem que driblar duas, a da sua mãe e a do diretor da companhia); ou de uma trama que confunde alucinação com realidade; ou ainda, quem admira uma boa direção de arte e fotografia na tela grande.

São, na verdade, tantos motivos para gostar do filme que eu seria incapaz de dizer o que realmente me fisgou em “Cisne negro”. Numa sinopse rápida, ele narra a luta de Nina para ser não apenas uma bailarina tecnicamente perfeita, mas também insuperável na emoção ao dançar. Thomas (o diretor da companhia, numa boa interpretação de Vincent Cassel – quando ele não é bom?) acha que ela é perfeita para dançar o cisne branco, mas não o negro – e parte para uma série de provocações para desabrochar seu lado mais obscuro, sem saber que em casa, Nina já tem sua cota de loucura por conta da obsessão de sua mãe (que deixou a carreira de balé para cuidar da filha) em vê-la brilhar nos palcos.

Nina – que é uma travação só – vai atrás dessa sua “outra personalidade”, com consequências ao mesmo tempo desastrosas e triunfantes. Dirigido por Darren Aronofsky – de quem só vi “Pi” (genial) e “Réquiem para um sonho” (impressionante) -, “Cisne negro” é, enfim, um filme sobre uma obsessão. E, com tal, é melhor você estar preparado para imagens fortes. Que tipo de imagens fortes? Pense numa mistura de sangue, pele e pena – você não vai se decepcionar…

Dito isto, a sessão de “Cisne negro” é uma maratona. Não tanto emocional – uma vez que as transformações de Nina são quase previsíveis (e eu diria que Natalie Portman, de quem sou fã, não nos fornece as nuances necessárias para que possamos acompanhar sua evolução – não vou aplaudir se o Oscar de melhor interpretação feminina for para ela, como alguns estão prevendo). Mas uma maratona visual, um desafio para seus olhos (não foram poucas as vezes que as mulheres do grupo que estava comigo viraram o rosto para evitar a grande tela…). E quem conseguir atravessá-la pode se considerar um vencedor!

(Falando nisso, não é curioso que outro forte candidato ao prêmio de melhor filme este ano, “O vencedor” – que também estréia nesta sexta no Brasil, mas não é tão poderoso assim -, seja justamente sobre um clichê de obsessão masculina, o boxe, fazendo um inesperado contraponto com “Cisne negro”? O quê? Você acha que eu estou divagando?).

Digo mais: quem atravessar a “maratona do Cisne” vai ter o prazer de sair do cinema discutindo o final do filme de maneira apaixonada, como não fazíamos desde de… bem, desde “A origem”! E, se possível – por exemplo, se o jantar depois do filme incluir alguns chopes e caipirinhas (ou mesmo algumas taças de vinho) -, você vai ser capaz de discutir até o sexo oral que Lily aplica em Nina… E se alguém na mesa tiver tido a chance de assistir a “Um lugar qualquer”, certamente fará piada com o fato de uma cena similar no novo filme de Sofia Copolla ter um desfecho tão diferente, quando seu protagonista, o ídolo hollywoodiano Johnny Marco (interpretado pelo ator Stephen Dorff), leva para cama uma mulher que acabou de conhecer numa festa e, depois de rápidas preliminares, adormece com a boca entre as pernas de sua presa…

 

Tudo a ver… Afinal, “Um lugar qualquer” registra o aborrecido cotidiano de um “mega star” do cinema – um universo que, como boa parte da crítica sempre lembra de colocar, é bem familiar à Sofia (filha de Francis Ford…). A vida de Johnny é chata. Chata assim: ele vive no Chateau Marmont, um dos hotéis mais sofisticados de Los Angeles, cenários de incontáveis aventuras da fauna hollywoodiana; seus passatempos são passear na sua Ferrari e assistir duas “pole dancers” (tradução: “dançarinas do queijo”) contratadas para fazer uma coreografia erótica privada no seu quarto, e eventualmente oferecer sexo, quando ele não dorme antes do fim da “performance”; ah, e acompanhar sua filha de 11 anos nas rotinas mais banais (a cena de maior “ação” no filme é quando os dois jogam “Guitar hero”!).

Sem nenhum charme, sem nenhum floreio, Sofia desenvolve sua história a passos lentos – em outro contraste radical com “Cisne negro”. Se neste filme temos câmeras frenéticas e cortes abruptos para ilustrar as coreografias, em “Um lugar qualquer” vemos Cleo (a filha de Johnny, interpretada por Elle Fanning – um sopro de vida numa história de semi-zumbis) fazer toda uma coreografia sobre patins de gelo num plano aberto, e os únicos cortes são para o pai, sozinho na arquibancada, trocando mensagens de texto no seu celular. Enquanto Nina cruza Nova York em sinistros trajetos de metrô, Johnny desfila monotonamente de Ferrari por Los Angeles (a cena de abertura de “Um lugar qualquer” é particularmente aborrecida); e enquanto o público que vemos em “Cisne negro” é uma sofisticada claque que sabe apreciar um bom balé em roupas elegantes, Johnny se vê diante de uma bizarra platéia numa premiação da TV italiana (onde ele é homenageado), composta de exageradas “madonnas” em Versace e velhos babões vestindo ternos semi-impecáveis, todos gritando como se aquilo fosse um bacanal.

Esta cena surreal de “Um lugar qualquer” é o único momento de maior barulho no filme. Fora o ronco da Ferrari, você mal lembra que os personagens conversam. Mas é nesse estranho vácuo sonoro que o filme de Sofia ressoa alto. Mesmo descontando possíveis pontos de identificação deste que vos escreve com o personagem de Dorff (afinal, guardadas as devidas proporções, eu tenho cá uma parte da minha vida que é pública), achei que o filme é uma interessante meditação sobre nosso mundo moderno em geral.

Poucos são, claro, os que vivem num patamar tão isolado (e ao mesmo tempo tão exposto) quanto Johnny Marco. Nem por isso, não podemos tirar belas lições da solidão do personagem – e quem sabe até achar no filme, enfim, um caminho para uma liberação maior de tudo que faz a gente pegar um telefone no meio da noite e dizer (exatamente com essas palavras ou não) para alguém que você ainda acha que ama: “Eu não sou nada”…

(No último post, esbocei o desejo de continuar o debate sobre a importância do refrão na música pop. Mas também alertei para os perigos de, numa temporada de Oscars como estamos agora, minha atenção ser desviada por um ou outro filme competidor. Assim, estou adiando a tal discussão para segunda-feira, pode ser? Se eu não for novamente abduzido por Hollywood!)

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