domingo, 27 de fevereiro de 2011

Cisne Negro (Black Swan)


por Fábio M. Barreto, de Los Angeles


Darren Aronofsky é um estudioso dos holofotes. Nenhum detalhe da vida constantemente sob escrutínio público, independente de seu tamanho, lhe escapa. Cada momento de terror, cada sorriso vencedor, cada lágrima que cai quando ninguém olha para aquele canto escuro onde a alma busca refúgio da luz onipresente e da necessidade de ser bem-sucedido; da perfeição. Esses detalhes o abastecem. Entretanto, para estudar brilho, é preciso reconhecer a sombra. 

Ela pode não estar presente de forma definida e constante, mas está lá. Essa é uma certeza da vida. Dois lados, duas facetas, luz e sombra, uma dualidade eterna representada no conto do Cisne Negro e, agora, subvertido pelo estudioso Aronofsky, numa visita incômoda ao lado mais escuro da consciência: aquele que não reconhece limites ou ameaças. E é na penumbra do palco, sempre solitário e opressivo, que o balé soturno de Natalie Portman se inicia em Cisne Negro (Black Swan) dando origem a um ciclo intenso, mas possivelmente segmentado demais, de trevas. 
Embora muita gente vá invocar O Lutador para avaliar Cisne Negro, o que não deixa de ser uma referência válida e necessária, tendo em vista a proximidade dos trabalhos de Darren Aronofsky, outra linha de raciocínio cinematográfico pode ser envolvida nesse debate: a metalinguagem apresentada por Christopher Nolan em A Origem, isso sem contar uma referência ou outra à comunicação de Tarantino com seu público em Bastardos Inglórios

Há duas forças maiores em conflito: a busca pela perfeição e o autoconhecimento. Seria simples, até mesmo prático, encarar essas duas motivações como elementos complementares e, se colocados na ordem [auto-conhecimento e busca pela perfeição], como a trajetória natural e produtiva do processo de amadurecimento. Porém, processos levam tempo. E o tempo é escasso, ou melhor, inexiste em Cisne Negro. Um acontecimento está em progresso, ou melhor, O acontecimento. Mas sua natureza é dúbia e propositalmente confusa numa ininterrupta mescla de realidade, realismo, super-realismo e devaneio descarado. 
Entretanto, o engodo não tem por objetivo gerar uma reviravolta grandiosa aos moldes de Clube da Luta, por tratar-se de uma ferramenta dramática, quase uma dimensão paralela acontecendo simultaneamente à trama principal. Diferente de seus personagens, Aronofsky nunca mente ou tem dúvidas como todo comandante ideal. Atravessar a tormenta de Nina, personagem de Natalie Portman, é tarefa árdua em todos os aspectos da criação – desde a estrutura até a forma manifesta de seus conflitos – e o simples fato de concluir a jornada sem perder o rumo é algo digno de elogios.
Restringir os acontecimentos ao mero dualismo soa simplista demais, mas, de fato, é a pura verdade dessa dinâmica. A face pública que todos vêem contrapondo-se à face escondida, revelada apenas nos poucos momentos de solidão; no banheiro, na cama, numa rara tentativa de prazer ao se masturbar. Ambas buscando reconhecimento e satisfação, seja com a admiração pública, seja com a simples chance de existir. Duas personas no mesmo espaço físico. 

Esse é o dilema do Cisne Negro – apaixonadamente apresentado por Vincent Cassel, brilhando como o diretor teatral no roteiro, mas, na verdade, a personalização do juiz e carrasco do entretenimento. Seus olhos direcionam o desejo das platéias com a mesma arrogância com a qual decide quem morre e quem sobrevive no seu palco. Tamanha presunção tem sua função, pois ela é fundamental para instigar e provocar, confrontar e desequilibrar, exigir e exigir mais ainda. 

Sua postura é o elemento transformador, a fagulha que determina a liberação de uma energia devastadora em Natalie Portman. Espera-se violência de homens, glorifica-se o surto esquizofrênico de Tyler Durden, idolatra-se o sacrifício “saco cheio” de Randy The Ram, mas o assombro causado por uma delicada bailarina pode ser maior que a queda de um bruto. Perde-se tudo quando a mente se perde.





E tudo por causa das luzes. Dos holofotes. Nolan e Aronofsky parecem compartilhar do desejo pela discussão da importância da estrutura cinematográfica e sua influência na sociedade moderna. Enquanto Nolan cria um castelo de idéias sobrepostas para maximizar os efeitos de um conceito simples, fazendo da jornada algo memorável, Aronofsky não mede esforços para construir um calabouço de mágoas e, pouco a pouco, apresenta os elementos de uma bomba-relógio. Diferente do dilema dos sonhos, Cisne Negro é a realidade manifesta – em diversos níveis de compreensão – e com conclusão incontestável, cujas feridas vão além da transformação imposta sem dó nem piedade (seja por Cassel ou pelos holofotes que atraem a juventude). 
Entrar em contato com a natureza instintiva e desregrada da versão sombria da personagem corrompe ideais e propõe uma realidade mais crua e sem limites. Nina tem um sonho e idolatra a bailarina que substitui. A nova e jovial promessa que idolatra a estrela decadente e autodestrutiva vivida por Wynona Rider, procurando meios de retraçar seus passos e repetir sua glória. Como encontrar sanidade se o objetivo em si é algo corrupto e falho por natureza? 

É um dos perigos da busca por um momento de satisfação e brilho intenso, mas momentâneo. Crítica social mais que válida, entretanto bastante afetada pela escolha de um meio já repleto de preconceitos e dramas pessoais, o balé feminino. Nina entra na espiral decisiva em sua vida, já devidamente marcada pelas privações do ofício, da paranóia pela concorrência e da piedade depreciativa pela mãe, ex-bailarina afastada pela gravidez precoce, mas ainda maravilhada pelo poder do palco.

“Perfeição técnica não supera a necessidade da emoção.”

Constantemente pontuado pela incisiva trilha de Clint Mansell, Cisne Negro levanta várias discussões e questiona uma sociedade de exageros – mentais e físicos. Mostra as reações desconexas de uma mente decida a criar sua própria versão da realidade, liberando desejos reprimidos, sonhos selvagens e atitudes impensáveis. 

Natalie contribui com fragilidade ímpar e explosão arrebatadora de sensualidade, enquanto Mila Kunis não foge muito de suas limitações. Barbara Hershey é a grande surpresa como a mãe devota e esperançosa. Trabalho admirável e digno de mais atenção que a alardeada cena de sexo entre Portman e Kunis. Natalie consegue ser mais sensual sozinha, ou numa mescla de sedução e dança com Cassel do que no rompante de luxúria com Mila.





Entretanto, para que tudo isso se encaixe, é necessário aceitar o pano de fundo. O balé e suas demandas, muito mais conhecidas na base do preconceito que no contato com sua realidade. É um cenário mais ficcional que a própria fábula para os desavisados. Conversava com o escritor Douglas Marques Comito [autor do romance Necrópolis, da Editora Draco] quando ele mencionou um possível paralelo ao “Clube da Luta para mulheres”, mas as semelhanças são pontuais. 


Embora provoque efeitos físicos, a violência de Cisne Negro é outra; muito mais resultado de pressão exagerada que da mente dividida do filme de David Fincher. Aronofsky mostra a queda de cada mecanismo de defesa, de cada passo em direção à treva. São duas histórias simultâneas colaborando para o final apoteótico. Tudo isso proveniente da dança com sua carga elitista e sonhos frágeis. Como se compadecer pela jovem bailarina que, diferente de outros dramas, consegue o que busca? Sua conquista é sua ruína. É o cão que finalmente mordeu o próprio rabo ou o pneu do automóvel que perseguiria. “E agora o que eu faço com ele?”, perguntaria o Coringa. 

Nina optou pela busca da absoluta perfeição permitindo que a ficção tomasse conta de sua vida. Seu desfecho é grandioso e, como mencionado, apoteótico. Perfeito por suas próprias palavras. E assim poderia ser Cisne Negro – perfeito –, mas a chave está na principal fala de Cassel: “perfeição técnica não supera necessidade a emoção”, ou algo assim. Aronofsky leva o espectador a buscar a perfeição e deixa a emoção nas mãos de Natalie Portman, que permanece meramente técnica até o final. O julgamento fica nas mãos da platéia. E da posteridade.
A música deixou de tocar. Os holofotes não se apagam. The show must go on.

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